Vanessa Vilela Berbel
Escrevo esta coluna para lhe dizer que, do ano passado para cá, avançamos no judiciário brasileiro em relação à pauta da mulher. Lembra-se de que, neste mesmo período do ano anterior, escrevi sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5422, que estava aguardando alguns dos onze detentores de reputação ilibada e notável saber jurídico do nosso STF ter um tempinho para olhar a causa das mães que pagavam imposto de renda sobre a pensão de seus filhos e filhas? Pois bem, não bastasse arcar com a maior parte das responsabilidade dos cuidados, ainda passavam por mais essa…nada bom. Enfim, essa luta se foi, julgada, em 23/08/2022, favoravelmente às mulheres.
É, de fato não precisava uma decisão judicial arrastar por tanto tempo essa discussão se houve a mínima sensibilidade institucional do órgão arrecadador. Será mesmo que a própria Receita Federal não poderia ter resolvido uma questão tão banal, que agudizava a desigualdade entre homens e mulheres deste país, por meio de um instrumento administrativo? Para mim sempre pareceu bem óbvio que alimentos ou pensão alimentícia oriundos do direito de família não se configuram como renda nem proventos de qualquer natureza do credor dos alimentos, mas montante retirado dos acréscimos patrimoniais recebidos pelo alimentante para ser dado ao alimentado. No julgamento da ADI, o ministro Luís Roberto Barroso recordou que a tributação não pode aprofundar as desigualdades de gênero. Assim, sendo certo que o dever de cuidado é atribuído primordialmente às mulheres, fazê-las ainda pagar, como se renda fosse, os valores destinados pelo genitor à manutenção da prole, enquanto o pagador (em regra, o pai) poderia abater da base de cálculo de seu imposto a integralidade desses valores, era de fato anacrônico. Agora resta saber quem reparará o dano e restituirá os mais de 6 bilhões injustamente expropriados destas mulheres, visto ter Tribunal negado o pedido da União para que a decisão não tivesse efeito retroativo.
Justamente para se evitar essas distorções causadas pela legislação e interpretações oficiais é que a Ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conclamou todos a revisarem práticas e políticas que reproduzam a desigualdade entre homens e mulheres na sociedade e, em especial, no Poder Judiciário.
Esforços coletivos ainda são necessários para reafirmar o direito das mulheres à igualdade de tratamento, tornando concreta a chamada “imparcialidade” e “neutralidade”, corrompidas por padrões discriminatórios insculpidos nos desenhos institucionais.
Neste aspecto, no âmbito do Poder Judiciário, foi elaborada a Recomendação 128/2022, que orienta os órgãos do Poder Judiciário a adotarem o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, visando avançar na efetivação da igualdade e nas políticas de equidade. Dentre as orientações dispostas em suas 132 páginas, evidencia-se a convocação a se desmistificar a neutralidade do direito, comprometida em razão da involuntária e inconsciente reprodução de estereótipos forjados pela nossa peculiar e desigual construção social. Ideais de neutralidade, imparcialidade e objetividade, tão caros ao direito liberal, dependem da correção destas distorções para seu império.
O que de fato nada tem de neutro é o Protocolo. Navegando entre Ideologia e Utopia[1], adota uma perspectiva valorativa clara, que não lhe eximirá de críticas dos opositores. Porém, ainda que você discorde destas posições, não poderá desprezar as contribuições da Segunda Parte do documento, que serve como um “guia para magistrados e magistradas”, um ferramental para auxiliar os julgadores a “interpretar o direito de maneira não abstrata, atenta à realidade, buscando identificar e desmantelar desigualdades estruturais”. Uma metodologia para que os julgadores se atentem ao contexto no qual o conflito está inserido, o que, diante de sentenças pré-prontas (quem nunca recebeu uma destas, escrita no cabeçalho “Modelo X”), julgamentos televisionados e pressões por produtividade é, independentemente da posição política, muito bem vindo.
Talvez você se questione se de fato isso seria necessário. Digo-lhe que sim. Notícia de 12 de abril de 2023, site Migalhas: ”Após negativa, advogada grávida de 9 meses terá audiência remarcada: em 1º grau o pedido foi negado sob o argumento de que a advogada já sabia do seu impedimento para a prestação dos serviços.” A funesta decisão de primeira instância[2] denegatória do pedido de adiamento, proferida, pasme, pela Excelentíssima Senhora Juíza Substituta da 17ª Vara do Trabalho da Comarca de Fortaleza, afirmou, ainda, que: “o pedido beira a litigância de má fé, no sentido de trazer uma oposição ao andamento do processo criada pela própria parte ao buscar profissional que não poderia estar presente à audiência”. Certamente essa julgadora é um dos que precisam seguir a Recomendação 128/2022.
É por isso que, neste dia das mães, desejo às nossas leitoras uma dia mais feliz do que o de 2022 e menos feliz do que o de 2024.
[1] alusão à obra de Karl Mannheim, cuja noção de ideologia corresponde a um conjunto de representações que se orientam para a estabilização da ordem estabelecida, enquanto, por Utopia, entende-se a aspiração de outra realidade ainda inexistente, e,portanto, t subversiva da ordem vigente.
[2] processo nº 0000087-79.2023.5.07.0017