Felipe Fernandes Reis
Não obstante o mandamento constitucional em prol da livre concorrência e os respectivos instrumentos da Lei de Defesa da Concorrência, a nova legislação do setor de gás natural não deixa dúvida a respeito da estrutura e diretrizes pró-competitivas que devem ser observadas e respeitadas por seus agentes e reguladores.
Apesar dos esforços intergovernamentais, diversas são as dificuldades para ingresso e competição no setor, especialmente no mercado de comercialização de gás à jusante[1]. Por isso, se fez necessário estabelecer premissas voltadas para a atuação das autoridades e dos agentes durante o período de transição para o ambiente concorrencial através da Resolução 03/2022 do CNPE[2][3], que trouxe diretrizes específicas ao agente com posição dominante.
No conjunto das medidas dedicadas ao período de transição, o enforcement da autoridade antitruste junto às práticas do agente incumbente é indispensável. E dentre as diversas condutas da Petrobras que despertam atenção concorrencial, o presente artigo analisa alguns aspectos do modelo de comercialização de gás recentemente adotado pela empresa.
Inicialmente, é importante explicar que nos contratos da Petrobras com as Distribuidoras (principal parcela da demanda do mercado) é estipulado uma quantidade mínima a ser retirada de gás (take or pay) que está relacionada à Quantidade Diária Contratada (“QDC”). Se o volume da Distribuidora for superior à QDC, o custo do gás será majorado, sendo aplicado o Preço de Gás de Ultrapassagem (PGU). Trata-se, portanto, de uma penalidade ao consumidor do gás.
As Distribuidoras, portanto, tendem a contratar volume significativo de sua demanda com a Petrobras, uma vez que a retirada abaixo da obrigação mínima não a isentará de pagar pela quantidade que não consumir, e qualquer oscilação para cima será duramente penalizada. Isso aumenta as dificuldades das Distribuidoras de criarem um portfólio com diferentes supridores, prejudicando, portanto, a liquidez e a diversidade de agentes ofertantes.
Ainda assim, as Distribuidoras e potenciais Consumidores Livres estão instituindo processos competitivos para contratarem seu volume de gás, com a esperança que novos agentes ofertantes consigam ultrapassar as diversas barreiras para tanto, em especial no acesso às essential facilities dos elos upstream e midstream (escoamento, processamento e gasodutos de transporte- majoritariamente controladas pela Petrobras).
Aos poucos, a entrada de novos players no mercado de comercialização de gás à jusante vem acontecendo, com propostas mais vantajosas e flexíveis em comparação às da Petrobras. Entretanto, nesse exato momento de transição, e com as dificuldades comuns da abertura do setor (historicamente concentrado e verticalizado no player dominante), é preocupante a celebração de contratos de longo prazo, especialmente na região sul e sudeste, entre a Petrobras e as Distribuidoras, como alternativa para que a incumbente não aumente expressivamente o preço do gás e encerre as disputas judiciais com esse objetivo[4].
Nota-se, inclusive, que a Petrobras vem inserindo nesses contratos trecho em que afirma que o volume contratado não representa mais de 2/3 da quantidade média da Distribuidora, de modo a atender ao princípio do inciso VII, art. 9 da Resolução 03/2022 do CNPE, permitindo, assim, que a CDL contrate com outros ofertantes, o que afastaria preocupações concorrenciais.
Além disso, também já se afirmou que a mera previsão de redução da QDC na hipótese de migração do consumidor ao mercado livre reduziria as preocupações dos efeitos à concorrência desses contratos de longo prazo, uma vez que pelo menos alguma parcela do volume contratado pelas Distribuidoras poderia ser reduzida se os usuários livres contratarem com outros comercializadores, não prejudicando a competitividade do mercado.
Entretanto, faz-se necessário explicar que a Petrobras apenas prevê a redução da QDC por parte das Distribuidoras no caso da migração de seu(s) usuário(s) para o ambiente livre, e, além disso, com algumas importantes restrições, vejamos:
- Se o usuário que migrar para o Mercado Livre contratar com a Petrobras: não haverá qualquer limite na redução da QDC da Distribuidora;
- Se o usuário que migrar para o Mercado Livre contratar com comercializador concorrente da Petrobras: haverá um limite da redução da QDC, geralmente de até 40% (quarenta por cento) ou – nos casos em que a Distribuidora também tem contratos com outros ofertantes- o limite poderá ser o mesmo percentual que a QDC daquele específico contrato representar em relação aos demais contratos da CDL com outros supridores.
Ademais, nos contratos recentes, a Petrobras não autoriza a redução da QDC da Distribuidora no caso do seu usuário livre contratar comercializador que já tenha contrato de suprimento com essa, criando, assim, significativa dificuldade ao seu concorrente. Isso porque, se esse concorrente da Petrobras vencer a disputa para atender o consumidor que migrar para o mercado livre, para as Distribuidoras restarão duas alternativas:
(i) se o contrato com esse supridor assim permitir, será reduzido o volume contratado desse; ou;
(ii) se não for possível tal redução, a migração do consumidor tende a ser obstaculizada pela Distribuidora, a qual buscará não arcar com tal prejuízo.
É extremamente necessário lembrar que tal previsão não permite a redução no caso da Distribuidora optar por contratar com outro supridor, mas apenas ao usuário que migrar ao mercado livre. A Resolução 03/2022 do CNPE, por sua vez, não faz tal distinção. Pelo contrário, o CNPE estipulou, observando experiências bem-sucedidas de abertura de mercado, que no período de transição para o ambiente concorrencial o agente com posição dominante observasse a seguinte medida:
VII – a oferta de contratos de compra e venda de gás natural com cláusula específica que possibilite a redução de quantidade contratada pelo adquirente, sem aplicação de qualquer penalidade, no limite mínimo de um terço do volume contratado.
Sob esse ponto, destaca-se que, conforme evidenciado pelos estudos e ranking regulatórios (como o RELIVRE[5]), a migração para o mercado livre é marcada por dificuldades de ordem regulatória e de mercado (inclusive relacionados às condutas da Petrobras, que criam dificuldades no ingresso de novos agentes aos mercado, como no acesso às suas essential facilities), tanto que são raros os consumidores que conseguiram tal objetivo. O que torna a previsão da redução apenas no caso de migração ao mercado livre pouco eficaz.
Além das limitações para a migração das quantidades contratadas pelas Distribuidoras, é preocupante a significativa parcela de mercado que está aprisionada ao agente dominante nos próximos anos. A alternativa a esses contratos de longo prazo seria o aumento significativo do preço do gás.
Nesse sentido, cita-se os recentes contratos da Petrobras com a Cemig e ES Gás, celebrados na esteira dos acordos para encerrar processos judiciais, que visavam impedir o referido aumento. Nas duas ocasiões, foram celebrados diversos contratos com durações, como: 2023-2025; 2024-2028 e 2024-2032, e/ou aditivos aos acordos em vigor. De modo geral, as Distribuidoras, que vinham contratando e negociando com outros ofertantes, aumentaram o volume contratado com a Petrobras nos próximos 03 (três) anos, além de terem que “reservar” parcela significativa dos próximos 05(cinco) e oito (oito) anos à Petrobras, senão vejamos:
*Com base em informações públicas do MME, ANP, CADE e relatórios das Distribuidoras
Pela sua inequívoca e histórica dominância, os efeitos do modelo de comercialização da Petrobras, ao fechar significativa parcela de mercado nos próximos anos, tende a reduzir a capacidade e incentivos para entrada de novos agentes e a esperada rivalidade no setor. Acrescenta-se que, no estágio de abertura e transição para um ambiente concorrencial de um setor com profundas dificuldades para tanto, o enforcement antitruste e regulatório sobre as condutas do agente incumbente requer atenção prioritária acerca de seus efeitos anticompetitivos.
Nesse sentido, pode ser citada a importante pesquisa doutrinária do Dr. Bruno Braz de Castro, apresentada em seu livro “A que(m) serve o Antitruste”, que destaca a importância da atuação da autoridade de defesa da concorrência nas seguintes hipóteses e com os objetivos[6]:
Como isso é especialmente marcante para antigos monopólios estatais liberalizados, uma política rigorosa quanto ao abuso de posição dominante deve ser vista como complemento essencial à liberalização, para prevenir que agentes com posições dominantes perpetuem seu poder através da criação de restrições privadas (HEIMLER; MEHTA, 2013, p. 04)
Além de ser necessário que a política de aplicação da lei de defesa da concorrência, em países em desenvolvimento, atribua atenção especial aos abusos de posição dominante, é necessário que essa análise se utilize de critérios substantivos comprometidos com a manutenção da rivalidade e proteção da estrutura da concorrência.
Em recente julgado, o Tribunal do CADE ressaltou a preocupação dos efeitos anticompetitivos de condutas praticados por firmas dominantes que induzem exclusividades, fechamento de parcela relevante de mercado e/ou inviabilizam a entrada e rivalidade, conforme pesquisa jurisprudencial consignada no voto do Conselheiro Victor Fernandes[7]:
Na vasta maioria dos casos, o CADE infere a lesividade da prática exclusionária a partir de evidências indiretas, notadamente o grau de cobertura do fechamento no “mercado-alvo”. Além disso, a prática jurisprudencial também se afasta de uma regra da razão em sentido estrito, na medida em que, em alguns precedentes, o CADE parece ter adotado entendimento muito restritivo acerca da comprovação de eficiências.
Por fim, ressalta-se que, pela sua natureza de indústria de rede, as medidas pró-competitivas do setor devem ser adotadas em harmonia nos diversos segmentos que o compõe, ou seja: enquanto se promove boas práticas regulatórias no acesso às essential facilities (upstream e midstream) e medidas para desconcentrar a oferta (gas release), é necessário também assegurar que o elo da demanda tenha condições e flexibilidades para contratarem com os novos agentes do setor, de forma a permitir o seu ingresso e os elevados investimentos necessários, conforme denominado como “customer release” no estudo “Gas Release Study for the Brazilian Natural Gas Market”[8] que avaliou o grau de concentração do setor de gás natural e medidas para a sua redução, e que será objeto de análise numa oportunidade futura.
[1] A respeito da delimitação do mercado relevante de comercialização, ver: Reis, Felipe F. “A OCDE e o novo mercado de gás: O Ponto Virtual de Negociação como mercado relevante no setor de gás natural”, Web Advocacy, 2022. Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2022/10/17/a-ocde-e-o-novo-mercado-de-gas-o-ponto-virtual-de-negociacao-como-mercado-relevante-no-setor-de-gas-natural/
[2] As informações sobre a Resolução podem ser acessadas no site: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/analise-de-impacto-regulatorio-air-e-avaliacao-de-resultado-regulatorio-arr/relatorios-de-air/air-relacionada-a-proposicao-de-minuta-de-resolucao-cnpe
[3] Em sua coluna neste portal, a Dra. Daniela Santos explica os motivos e objetivos dessa resolução, Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2022/05/04/o-cnpe-e-a-concorrencia-no-mercado-de-gas/
[4] Reportagem do portal especializado EPBR detalha os novos contratos da Petrobras e o contexto de suas negociações. Disponível em: https://epbr.com.br/petrobras-recorre-a-contratos-mais-longos-de-olho-na-abertura-do-mercado-de-gas/
[5] Iniciativa de Associações de Consumidores e Produtores de Gás. Para mais informações: https://relivre.com.br/
[6] Castro Bruno Braz de. “A que(m) serve o Antitruste”, São Paulo Singular, 2019. Pag. 205.
[7] SEI CADE: 1144189. Rec. Voluntário: 08700.005936/2022-65
[8] Estudo contratado por entidades representantes de consumidores e produtores de gás natural. A apresentação do estudo pode ser acessadas em: https://www.youtube.com/watch?v=cvS8Lq2VVcA