Editorial
As famosas pinturas do período da Renascença apresentam os anjos como seres desprovidos de gênero. O renascentista Gregório Lopes ao pintar o quadro denominado “A Virgem, o Menino e Anjos” [1], retrata Nossa Senhora e o menino Jesus sendo cortejados por anjos que prestam as suas reverências independentemente de serem meninos ou meninas.
Da mesma forma, a Constituição Federal iguala homens e mulheres a uma só espécie quando afirma no inciso I do art. 5º (Direitos Fundamentais) que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
Se no plano celestial os anjos não têm gênero e se no mundo terrestre brasileiro a carta maior estabelece que todos são iguais perante a lei, por que no mundo do trabalho deveria ser diferente?
Não, não deveria ser diferente!! O problema é que é!! A literatura econômica empírica está ai para demonstrar que homens e mulheres recebem salários distintos ao desempenharem funções idênticas[2], situação que piora bastante quando se faz o recorte por raça. As mulheres negras recebem salários menores que as mulheres brancas e muito menores que os homens brancos.
Camposa et al. (2021) apresenta, em sua revisão da literatura, uma série de explicações para a desigualdade salarial entre gêneros (hiato de gênero), dentre as quais: a baixa participação feminina em ocupações ligadas às ciências, engenharias e computação (Barth et al. (2017)[3]); maior poder de barganha dos trabalhadores do sexo masculino que do sexo feminino (Card, Cardoso e Kline (2013)[4]); e o fenômeno conhecido como “teto de vidro (Powell; Butterfield (2015)[5]).
De todas as explicações apresentadas, nenhuma chama mais a atenção que àquela apresentada por Powell e Butterfield (2015), de que o gênero feminino percebe um salário menor do que o gênero masculino porque tem o famoso “teto de vidro”. Cimelli et al. (2021)[6], ao fazer um estudo empírico a respeito do hiato salarial entre gêneros para 25 países europeus, trazem resultados sugerem que, em média, “sitcky floors” relacionados a normas sociais, estereótipos de gênero e discriminação representam 40% da diferença salarial de gênero, enquanto o “teto de vidro” relacionado à penalidade de maternidade é responsável por cerca de 60%[7].
Além de Cimelli et al., alguns outros estudos têm demonstrado que a produtividade feminina fica afetada a partir do nascimento do primeiro bebê. Cullen e Perez-Truglia (2019)[8] apontam que após o nascimento da primeira criança, as mulheres tendem a tirar licença de maternidade e fazer a transição para o trabalho de meio período em uma proporção maior que os homens. Como consequência, elas podem não desenvolver as habilidades e redes profissionais que lhes permitiriam subir a escada salarial[9].
Espera ai!!! Então, só o fato de a mulher poder gestar um ser humano durante 9 meses já justifica salários menores? Será que a probabilidade de engravidar afeta a produtividade esperada da mulher e, por isso, afetado fica também o salário esperado do sexo feminino?
Quer dizer, não seria o diferencial de produtividade que faria com que a mulher em idade fértil sem filhos recebesse salários menores do que o homem em funções idênticas, mas sim o efeito esperado sobre a produtividade futura resultante da probabilidade de engravidar?
Nada mais cruel do que isso!! O mercado de trabalho tem gênero, e este gênero é o masculino!!!
[1] A Virgem, o Menino e Anjos é uma pintura a óleo sobre madeira de carvalho, de c. 1536 – 1539, do pintor português do Renascimento Gregório Lopes (c. 1490-1550), obra proveniente do Convento de Cristo, em Tomar e que está actualmente no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa.
A pintura é uma representação simbólica do culto mariano surgindo a Virgem Maria com o Menino Jesus em primeiro plano rodeados pelos anjos. [A Virgem, o Menino e Anjos (Gregório Lopes) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)]
[2] CAMPOSA, Vinícius Thomaz de; SILVA, Maria Micheliana da Costa; CARDOSO, Leonardo Chaves Borges. Evidências do hiato de gênero e produtividade na indústria de transformação brasileira. Revista de Economia Contemporânea (2021) 25(2): p. 1-2. Disponível em: 25691 (ufrj.br). Acesso em: 08 de março de 2023.
[3] BARTH, E. et al. The effects of scientists and engineers on productivity and earnings at the establishment where they work. Cambridge: National Bureau of Economic Research, 2017.
[4] CARD, D.; CARDOSO, A. R.; KLINE, P. Bargaining, sorting, and the gender wage gap: Quantifying the impact of firms on the relative pay of women. The Quarterly Journal of Economics, v. 131, n. 2, p. 633-686, 2015.
[5] POWELL, G.; BUTTERFIELD, A. The glass ceiling: what have we learned 20 years on? Journal of Organizational Effectiveness: People and Performance, v. 2, n. 4, p. 306-326,
[6] CIMINELLI, Gabriele; SCHWELLNUS, Cyrille; STADLE, Balazs. Sticky floors or glass ceilings? The role of human capital, working time flexibility and discrimination in the gender wage gap. Economics Departament Working Papers No. 1668. 2021. Disponível em: 02ef3235-en.pdf (oecd-ilibrary.org). Acesso em: 08 de março de 2023.
[7] Tradução livre do trecho: The findings suggest that, on average, “sticky floors” related to social norms, gender stereotyping and discrimination account for 40% of the gender wage gap, while the “glass ceiling” related to the motherhood penalty accounts for around 60%.
[8] Cullen, Z. and R. Perez-Truglia (2019), “The Old Boys’ Club: Schmoozing and the Gender Gap”, NBER Working Paper Series, No. 26530, National Bureau of Economic Research, http://www.nber.org/data-appendix/w26530 (accessed on 28 January 2021).
[9] Tradução livre do trecho: [a] after the birth of the first child women tend to take maternity leave and transition to part-time work in a larger proportion than men. As a consequence, they may not develop the skills and professional networks that would allow them to climb the wage ladder.