Para onde vai o Direito Concorrencial Constitucional?

Angelo Prata de Carvalho

Findo o carnaval e vindas as cinzas da quarta, venceu na Marquês de Sapucaí o desfile da Imperatriz Leopoldinense em homenagem a Virgulino Ferreira, em enredo no qual narra a aporia de Lampião: enviado ao inferno, o diabo não o quis; ao tentar ir para o Céu, São Pedro não o deixou entrar. Com entrada negada tanto abaixo quanto acima, Lampião vai a algum lugar – e Pelos cantos do sertão… Vagueia, vagueia / Tal qual barro feito a mão misturado na areia.

Com a já anunciada morte do Antitruste, ainda se há de pensar o que fazer da livre concorrência com estatuto constitucional, consagrada pela Carta de 1988, mas aparentemente fadada a vagar pelas reflexões dos concorrencialistas como figura quase folclórica, como se oriunda do cordel. Não por acaso, ainda sob a égide da Lei nº. 8.884/1994, o saudoso Conselheiro Luis Fernando Schuartz já anunciava a Desconstitucionalização do Direito da Concorrência[1], ao perceber com perplexidade que “apesar das óbvias conexões semânticas entre as “partes” constitucional e infraconstitucional da afirmação da defesa da concorrência no direito brasileiro, bem como da aparente semelhança estrutural entre as formas desta afirmação nos arts. 170 e 173, §4o da CF, e 1o e 20 da Lei 8.884/94, os processos de decisão das autoridades responsáveis pela implementação da Lei Antitruste têm permanecido impermeáveis a argumentos substantivos de natureza constitucional”.

Constata o autor, nesse sentido, que, por mais que a livre concorrência conste do texto constitucional e por mais óbvia que seja a relação entre a legislação de defesa da concorrência e sua base constitucional, as decisões sobre casos concretos têm sido altamente resistentes a argumentos constitucionais, na medida em que se abrigam na técnica oriunda da econômica neoclássica sub-repticiamente introduzida no Direito da Concorrência pela Escola de Chicago. Ainda segundo Schuartz, operou-se no Direito da Concorrência uma colonização sem paralelo em qualquer outra seara jurídica por uma teoria extrajurídica, no que chamou de “revolução discreta e silenciosa” ocorrida especialmente em nível metodológico, oferecendo ao critério consequencialista supremacia sem precedentes.

As principais repercussões de tal fenômeno podem ser classificadas em duas componentes: uma descritiva, que preconiza a demonstração instrumental das consequências como resultado de uma lógica universal ou erga omnes; e uma normativa, que, apesar de não estar juridicamente sistematizada ou institucionalizada, determina a aplicação do Direito da Concorrência por critérios declaradamente não-jurídicos. Não se ignora, por evidente, que a construção institucional do Direito da Concorrência brasileiro e do próprio CADE estão fortemente calcadas nessas premissas, resultando em um ramo do direito com linguagem própria – tão própria que muitas vezes sequer parece direito.

A desconstitucionalização, dessa maneira, constituiria em verdadeiro subproduto da chamada Revolução do Direito da Concorrência brasileiro, que, abrigada na aparente coerência científica oferecida por critérios consequencialistas da economia neoclássica, achou por bem abandonar a axiologia da norma constitucional que lhe oferece fundamento. O Direito da Concorrência, com isso, confortavelmente isolou-se da abarcante força normativa das normas constitucionais preceituada por Konrad Hesse e contentou-se em conferir poder meramente simbólico à inserção da livre concorrência na ordem econômica constitucional. Tal postura traz consigo uma importante consequência prático-institucional: o declínio da competência de interpretação das normas constitucionais por uma sociedade aberta, conforme propõe Peter Häberle, para reduzir a análise concorrencial a uma análise normativa daquilo que não é verdadeiramente norma.

A perplexidade de Schuartz é ainda mais justificável quando se constata que o estatuto constitucional do Direito da Concorrência constituiria peculiaridade marcante desse ramo do direito no Brasil, capaz de diferenciá-lo das empedernidas posturas da jurisprudência norte-americana e mesmo de autorizar maior proficiência de argumentos substancialmente constitucionais que, no contexto europeu, devem ser articulados com o arrojo de quem não conta com disposições normativas tão autoevidentes. O Direito Concorrencial Constitucional, por conseguinte, não encontra guarida entre as malfadadas posições neoclássicas, que dificilmente abrem espaço para qualquer direito – quem dirá o constitucional.

De outro lado, a desconstitucionalização o Direito da Concorrência pode projetar repercussões ainda mais nefastas por isolar o Antitruste da própria discussão constitucional nos órgãos mais classicamente habilitados para interpretar a Constituição. Seja a dogmática de Direito Constitucional, seja o Poder Judiciário, muitas vezes acabam por pouco desenvolver discussões sobre a defesa da concorrência a nível jurídico-normativo para além de elementos procedimentais ou de digressões à legislação infraconstitucional – cuja leitura tende a ser conforme a um Direito da Concorrência livre de amarras constitucionais, e não conforme à Constituição. O Direito da Concorrência, por conseguinte, não raro fica órfão não de base constitucional, mas de leituras que adequadamente lhe coloquem no assento constitucional que o texto de 1988 lhe reservou.

Exemplo disso é a perspectiva de dogmatização do que se denominou por deferência pelo Poder Judiciário das decisões da autoridade concorrencial, que naturalmente se faz de rigor em termos organizacionais para mais adequadamente garantir a competência que se lhe atribuiu e evitar indevidas incursões no mérito administrativo (o que, aliás, a doutrina administrativista já preconiza há décadas), porém não é capaz de tornar o Direito da Concorrência indene ao controle de seu conteúdo constitucional. O Direito da Concorrência Constitucional, portanto, não sofre apenas pela colonização por parte da economia neoclássica, mas também por uma espécie de abandono por parte de uma dogmática e de uma jurisprudência aparentemente despreocupadas com um maior aprofundamento da reflexão sobre o sentido de se ter a livre concorrência constitucionalizada e inserida na ordem econômica constitucional junto de diversos princípios igualmente relevantes.

Produz-se para o Direito Concorrencial Constitucional, assim, paradoxo semelhante ao de Lampião: o órgão habilitado para interpretar o Direito da Concorrência o enjeita, e o guardião da Constituição pouco aprofunda o seu conteúdo e eventualmente remete-o de volta. Acontece que o estatuto constitucional da livre concorrência existe e, apesar da constante rejeição, segue vagando pelos cantos da reflexão jurídica, e há de ir a algum lugar.


[1] Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/1762/TpD%20007%20-%20Schuartz%20-%20Desconstitucionalizacao.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

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