Eduardo Molan Gaban
Em recente e inédita decisão proferida no julgamento do Recurso Especial n. 1.937.989/SP, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que configura concorrência desleal o fato de empresa anunciante utilizar a marca registrada de empresa concorrente como palavra-chave no sistema de links patrocinados da Google como meio de obter resultados privilegiados nas buscas e captar clientela[1].
Segundo a autora da ação, empresa de turismo cujo principal produto são viagens para a Disney, em que pese detentora do regular registro dos direitos relativos à sua marca junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), o resultado da pesquisa do nome completo de sua marca junto à Google mostrava como primeiro resultado empresa concorrente do ramo de turismo, prestadora do mesmo tipo de serviço, requerida na demanda.
Em primeira instância, o juiz monocrático reconheceu que a empresa requerida utilizou indevidamente a marca da autora como palavra-chave para fins dos mecanismos de busca remunerados da Google, condenando-a ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 15 mil. O valor da indenização foi reduzido para R$ 10 mil no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP).
No Recurso Especial, em que pese a empresa ré tenha argumentado que a prática se trata de exercício da livre demanda e prática comum de captação de clientela no e-commerce, o STJ manteve a decisão de segunda instância.
O Ministro Relator Luis Felipe Salomão pontuou que a utilização indevida de nome empresarial e marca alheia perpetrado pela empresa ré configura crime de concorrência desleal, conforme condutas coibidas pelo artigo 195, incisos III e V, da Lei de Propriedade Industrial e pelo artigo 10 bis da Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial.
O artigo 195 da Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.297/1996) traz rol de condutas tipificadas como crime de concorrência desleal, dentre as quais o emprego de meio fraudulento para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem (inciso III); e usar expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos (inciso IV).
Para melhor entender o funcionamento do mecanismo dos sites de busca e como eles podem ser empregados para práticas de concorrência desleal a partir do uso indevido de marca como palavra-chave, destaca-se a definição dada pelo CADE, em Nota Técnica expedida no âmbito do Processo Administrativo n. 08700.005694/2013-19[2], em que é apontada a diferença entre a busca gratuita e a busca patrocinada:
[…] de um lado – os sites de busca permitem que internautas digitem palavras-chave e recebam – em troca e gratuitamente – uma lista de sites cujo conteúdo seja relacionado ao texto que o usuário digitou. Assim, a plataforma presta aos usuários da busca o serviço de coleta, ranqueamento e apresentação de resultados para uma determinada busca do internauta. Outro lado gratuito da plataforma é o lado que estabelece a relação entre os sites que são listados no Google e a própria plataforma, que presta e eles o serviço de exibi-los para potencial audiência, na página de busca do Google. Por sua vez, tais sites permitem que o seu conteúdo seja rastreado pelos crawlers do Google, que copiam o seu conteúdo, para então indexá-lo e ranqueá-lo, em seguida apresentando-o ao usuário do Google Busca. Esse lado é gratuito porque os sites listados no Google não pagam nem recebem quaisquer valores para serem listados no buscador. Por fim, há o lado pago da plataforma, conhecido como “busca patrocinada”, reservada à publicidade virtual. Os links pagos ou patrocinados são colocados em lugares estratégicos do site de busca, normalmente acima da busca orgânica, ou na sua lateral direita. Usualmente, os mecanismos de busca são remunerados quando os internautas clicam nos links patrocinados, forma de remuneração conhecida como CPC, ou custo por clique. Há também outras formas de remuneração pela publicidade e links patrocinados, utilizadas em menor escala. Por exemplo, os sites de busca podem receber uma “taxa de sucesso” (taxa de conversão) por vendas realizadas pelos anunciantes, se tais vendas forem decorrentes de tráfego do site de busca”.
Assim, utilizando o “lado pago” do mecanismo de busca da Google, a empresa requerida adquiriu palavra-chave equivalente à marca registrada / nome empresarial de sua concorrente, a fim de que os consumidores que buscassem por ela recebessem, em primeiro lugar da busca, o site da requerida.
No caso em tela, é possível observar que o ponto essencial para a configuração da conduta de concorrência desleal foi a existência de marca registrada / nome empresarial equivalente à palavra-chave cadastrada pelo concorrente no mecanismo de busca patrocinada. Tal parâmetro também foi adotado em decisões proferidas por outros tribunais, em casos semelhantes[3].
Diversas situações semelhantes à do Recurso Especial n. 1.937.989/SP vem sendo submetidas ao crivo do Poder Judiciário brasileiro. Ganhou destaque o caso de duas ações judiciais[4] envolvendo as empresas Magazine Luiza e Via Varejo (Casas Bahia e Ponto Frio) em que se discute suposto uso indevido do nome empresarial da concorrente como palavra-chave no Google Search.
Em primeiro momento, a Magazine Luiza ingressou com ação, apontando que a concorrente estava utilizando o nome exato de sua marca como palavra-chave remunerada no Google Search, às vésperas da Black Friday, o que lhe causaria sérios efeitos de desvio de clientela. Foi concedida liminar determinando à Via Varejo que se abstivesse de fazer uso dos termos “Magazine Luiza” ou “Magalu” no prazo de 2 horas após o recebimento da intimação, sob pena de multa fixada em R$ 5 milhões.
Já no caso da ação movida pela Via Varejo, ajuizado posteriormente, a autora alegou que a Magazine Luiz estaria utilizando termos semelhantes aos nomes empresariais do grupo, porém, com pequenas variações/erros de digitação: “pontu friu”, “casa baia”, “caza bahia”, entre outros.
Também foi concedida liminar determinando a abstenção do patrocínio de tais termos para fins de palavra-chave no Google Search, embora a Magazine Luiza tenha negado o emprego de tais práticas e a impossibilidade de controle, dada a incalculável probabilidade de variações diversas.
Ambos os casos ainda pendem de julgamento em primeira instância. Assim, ainda não há decisão que reconheça que a utilização de termos muito semelhantes à marca registrada / nome empresarial, ou com erro de digitação, configure crime de concorrência desleal previsto no rol do artigo 195 da Lei de Propriedade Intelectual.
Como pontuado pelo Ministro Luis Felipe Salomão no julgamento Recurso Especial n. 1.937.989/SP, “embora seja lícita a contratação do serviço de priorização de resultados de pesquisa, a inexistência de parâmetros ou proibições de palavras-chaves nas ações publicitárias pode resultar em conflitos relacionados à propriedade intelectual”[5].
No atual ambiente digital, cuja virtualização se intensificou a partir da pandemia, os mecanismos de busca online têm representado para as empresas importante meio de oferta, pois é a partir deles que o consumidor geralmente inicia a busca por produtos e serviços. Neste cenário, sistema de links patrocinados representa uma das mais importantes ferramentas do e-commerce que vem sendo cada vez mais utilizado pelas empresas como meio de propaganda e de competição.
É preciso considerar que, desde o ano de 2020, a Google ocupa o primeiro lugar na concorrência entre mecanismos de busca globais[6], sendo que, no ano de 2022, a empresa (Alphabet Inc.) está em 4º lugar mundial entre as companhias de maior valor[7], sendo, portanto, o mecanismo de busca online mais utilizado no Brasil e no mundo.
Logo, o uso de tais mecanismos, sobretudo o Google Search, por players com objetivo de prejudicar os concorrentes através do emprego de meios fraudulentos e/ou ilícitos é passível de acarretar efeitos negativos ao ambiente da livre concorrência.
Contudo, especificamente na questão do uso indevido de marca e/ou nome empresarial como palavra-chave nas buscas patrocinadas, há quem entenda pela impossibilidade de imputar responsabilidade civil à Google, na medida em que é apenas o prestador de serviço.
Neste sentido, recente decisão proferida pela 1ª Vara Empresarial do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo/SP[8], foi julgada improcedente a ação movida pela empresa autora em face da Google, sob alegação de que, a partir da busca de sua marca registrada no mecanismo de busca da Google, estaria ocorrendo o direcionamento para anúncios de empresas concorrentes a partir do Google Ads.
Inicialmente, o juiz monocrático havia concedido medida liminar para que a Google se abstivesse de veicular os anúncios. Contudo, proferida sentença, o magistrado modificou seu entendimento, ao entender que, no caso, não haveria verdadeira violação da marca da autora. Para além disso, pontuou que, na contratação de palavra-chave com terceiro, “[…] não compete à Google exercer o controle prévio ou a fiscalização do conteúdo (lícito ou ilícito) do anúncio do produto”.
A fundamentação da decisão cita o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014), que determina:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
Sob tal entendimento, a responsabilidade da plataforma Google não é direta e só se iniciaria após a comunicação da existência de irregularidade no anúncio veiculado.
Assim, a partir da primeira decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, não há dúvidas quanto à possibilidade de responsabilização civil e penal da empresa anunciante pelo uso indevido de marca registrada ou nome empresarial de concorrente em links patrocinados, nos termos do artigo 195 da Lei de Propriedade Intelectual. Já sobre a responsabilidade da Google, com a evolução das discussões sobre o tema, não tardará para que seja apreciada pelo Tribunal Superior.
[1] QUARTA TURMA vê concorrência desleal no uso de marca alheia em link patrocinado do Google. Superior Tribunal de Justiça, 2022. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26082022-Quarta-Turma-ve-concorrencia-desleal-no-uso-de-marca-alheia-em-link-patrocinado-do-Google.aspx>. Acesso em: 16 set. 2022.
[2] CADE. Nota Técnica nº 16/2018/CGAA2/SGA1/SG/CADE. Processo Administrativo nº 08700.005694/2013-19. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?dz2uweayicburzefhbt-n3bfpllu9u7akqah8mpb9ypu6wevpqsd71wzh_uxehbwngimcevh_dwu20vj-yrkhn0rsauy_vzle-vw6lie0jkiptmdqrdz40fqukwedxd2>. Acesso em: 19 set. 2022.
[3] Por exemplo: Processo n. 0082836-06.2019.8.16.0014, julgado pela 9ª Câmara Cível do TJ/PR; Processo n. 1016104-20.2018.8.26.0196, julgado pela 1ª Câmara de Direito Empresarial do TJ/SP; Processo n. 0120484-07.2021.8.19.0001, julgado pela 3ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro/RJ; Processo n. 5630287-26.2020.8.09.0051, julgado pela 31ª Vara Cível de Goiânia/GO.
[4] Processo n. 1128548-85.2021.8.26.0100, movido por Magazine Luiza S/A contra Via Varejo S/A. e Processo n. 1130874-18.2021.8.26.0100, movido por Via Varejo S.A. em face de Magazine Luiza S/A, ambos em trâmite perante a 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo.
[5] QUARTA TURMA vê concorrência desleal no uso de marca alheia em link patrocinado do Google. Superior Tribunal de Justiça, 2022. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26082022-Quarta-Turma-ve-concorrencia-desleal-no-uso-de-marca-alheia-em-link-patrocinado-do-Google.aspx>. Acesso em: 16 set. 2022.
[6] THE 100 LARGEST companies in the world by market capitalization in 2020. Statista, maio 2020. Disponível em: https://bit.ly/32A1hV2. apud LEURQUIN, P.; ANJOS, L. Condenações da Google pela aplicação do Direito da Concorrência da União Europeia. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 9, n. 1, p. 104-124, 2021. DOI: 10.52896/rdc.v9i1.903. Disponível em: https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/903. Acesso em: 19 set. 2022, p. 104.
[7] THE 100 LARGEST companies in the world by market capitalization in 2022. Statista, abril 2022. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/263264/top-companies-in-the-world-by-market-capitalization/. Acesso em: 19 set. 2022.
[8] Processo n. 1105759-92.2021.8.26.0100, movido por CONSTRUCOLOR COMÉRCIO DE TINTAS LTDA. contra GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA., cuja sentença foi disponibilizada em 06 set. 2022. Disponível em: < https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/abrirDocumentoEdt.do?nuProcesso=1105759-92.2021.8.26.0100&cdProcesso=2S001H4H80000&cdForo=100&baseIndice=INDDS&nmAlias=PG5JM&tpOrigem=2&flOrigem=P&cdServico=190101&acessibilidade=false&ticket=AWXAW1RVACSqXqfRnHC1XAnusAIbAwRw%2F457agFUiTreBxdKdyk%2FYfy%2FDhiHd%2BmJdZxOn4AsukCSGF6nhVRpc%2BOiCmnwD082Bhwt7VI69S2iUEcHmbHPc5dZDXQxN9dhSSa%2FaaSwdKVZgUo3VY5mVJXav8I0xIIxnkJKU8XBAhT1vZtkMsMoTCfZC2FQSIsdpu5I0oERzG8vZnF6zX%2B3tUL81nfhQe%2FCT7MZM4YD4xJAiwSG8E4VI2hXBpD4DGoZBRcr3B2VjNyFT8loyDcfiVzfeXyiKKtZpGxBKXxfzJFvYQir7tuyYEYht%2F6Io9SuWwjS%2BbRTrNm8dOPywDY4kdEPAfFUiTSXwv4%2BER5J8N%2Br5IjtULuOkeL3cBEjmB2HOdvVvwzaRjstzQwL9VAcNqCy2IHiQDY9l5Ghi7KYm5sRIIHBahPxevP9h%2BMI%2FW5XvJY7qfv79NFB%2BQUdoj6TXI7fayeeA%2FMPN0uCqS9y7fo7SCIb2SFCyHJLhS8PmEWB98h%2F0eP%2Bfr6VKCi4ANP3bA%3D%3D>. Acesso em: 16 set. 2022.