Polyanna Vilanova & Matheus Carvalho
Na série Billions, o coprotagonista Bobby Axelrod, em dado momento, afirma que se você não pode comprar a obra de arte, compre o artista. Transplantando a premissa para a realidade empresarial, surge uma ideia sempre presente para qualquer agente em processo de expansão: o controle das etapas do processo produtivo.
Em outras palavras, melhor do que negociar, muitas vezes é mais vantajoso adquirir um outro agente que esteja no mercado verticalmente relacionado. Quando isso acontece, a tendência é que o ente verticalizado passe a dar tratamento preferencial aos seus próprios produtos ou serviços, prática conhecida como self-preferencing.
Nesses casos, argumenta-se que é normal (até esperado) que as empresas que controlem diversas etapas do processo produtivo deem preferência aos seus próprios produtos em detrimento daqueles produzidos por concorrentes[1]. Trata-se de uma conduta em tese previsível e que muitas vezes é a pedra angular de uma concentração econômica. Contudo, em algumas situações, é possível que preocupações concorrenciais surjam a partir desse arranjo.
A grande questão, portanto, é estabelecer parâmetros confiáveis que possam indicar quando a conduta deve ser objeto de reprovação pelo ordenamento jurídico e qual o teste a ser aplicável para aferir a ilicitude.
Linhas gerais, para a caracterização da conduta, dois pressupostos são necessários. O primeiro pressupõe a existência de dois mercados que podem ser horizontais ou verticalmente relacionados[2]. Em segundo lugar, é preciso que haja algum mecanismo pelo qual o agente que atua no mercado “A” favoreça as suas atividades no mercado “B”[3].
Trata-se, conforme exposto, de uma estratégia pela qual um agente utiliza a posição dominante que dispõe em um mercado para alavancar sua posição em outro. Esta prática, conforme reconhecido pela OCDE, pode gerar eficiências para o consumidor além de proporcionar uma recompensa para o agente que inovou ou que adotou diferenciação competitiva[4].
Contudo, é possível que ao agir desta forma, o self-preferencing seja utilizado como instrumento de distorção do processo competitivo, comprometendo a livre concorrência e a contestabilidade do mercado.
Por esta razão, seguindo o que sugere a literatura econômica, a OCDE recomenda que a análise mais adequada de uma conduta de self-preferencing seja feita por efeitos, justamente por ser necessário analisar o que levou à conduta, quais os efeitos da prática no mercado analisado e quais as justificativas econômicas associadas à prática[5].
A grande questão é: quando a conduta é lícita e quando não é? Qual a teoria do dano aplicável? Nesse ponto, há quem diga que self-preferencing carece de balizas suficientemente claras na medida em que se sobrepõe a categorias legais distintas sujeitas a testes distintos, o que macula a justificativa econômica por trás da conduta[6]–[7].
Assim, advoga-se que não é propriamente o self-preferencing que deveria ser coibido – porque não haveria uma conduta autônoma a ser censurada – mas a consequência prática que ele traz no caso concreto (refuse to deal, tying, bundling etc.).
Ainda em termos de identificação da conduta, para alguns autores, o self-preferencing seria uma expressão da competição por mérito e que somente em hipóteses muito específicas, como no caso de essential facilities, é que haveria a obrigação de não discriminar[8]–[9]. Há, contudo, quem discorde frontalmente desta afirmação[10].
Na jurisprudência, o tema não é menos controverso. Na Europa, caso paradigmático foi a multa imposta ao Google por suposta violação ao artigo 102 do TFUE em razão do abuso de posição dominante (investigação semelhante foi instaurada nos EUA[11] com resultado diametralmente oposto).
No Brasil, recentemente, a Superintendência-Geral debruçou-se sobre o tema em, ao menos, 3 oportunidades no ano de 2022 (duas no setor portuário e uma no mercado de plataformas de delivery de refeições)[12].
De tudo quanto exposto (e não exposto), nota-se que há um vasto oceano a ser desbravado quando o assunto é self-preferencing. Longe do consenso, os debates são sofisticados e a tendência é o aprofundamento da discussão (para mercados tradicionais e digitais) no campo acadêmico e jurisprudencial.
Considerando que há efeitos pró-competitivos com a conduta, o desafio será identificar as exatas circunstâncias em que a conduta é anticompetitiva e qual a melhor forma de endereçar a discussão (via autoridade concorrencial ou regulação[13]) sem desestimular o incentivo à inovação e à diferenciação.
[1] No original: “Self-preferencing is an expected – if not inevitable – consequence of the integration of different activities under common ownership”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.
[2] No original: “First, the case involves two markets, which may be horizontally (for instance, two applications running on an operating system) or vertically related (for instance, an application and the operating system on which it runs). In: COLOMO, Pablo Ibañez. Self-Preferencing: Yet Another Epithet in Need of Limiting Principles (July 17, 2020). Forthcoming in (2020) 43 World Competition. Disponível em https://ssrn.com/abstract=3654083
[3] No original: “Second, there must be a (unilateral or contractual) mechanism through which a firm favours its activities on one of the markets at the expense of others.” In: COLOMO, Pablo Ibañez. Id. Ibid.
[4] No original: “Like vertical integration, leveraging can generate efficiencies for consumers and provide legitimate rewards for innovation or competitive differentiation”. In: OECD. Abuse of dominance in digital markets. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/abuse-of-dominance-in-digital-markets.htm
[5] No original “As with the other theories of harm associated with leveraging and refusals to deal, economic intuition suggests a need for a case-by-case approach to abusive leveraging.”. In: OECD. Op. cit.
[6] No original: “It follows from the analysis above that self-preferencing, as a label, overlaps (partially or totally) with several existing legal categories – including tying and refusal to deal. What is more, the latter apply to conduct that varies widely in its nature and effects and that, for the same reason, is subject to legal tests that are also different”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.
[7] No original: “As already explained, self-preferencing lacks clear boundaries. It overlaps with well-established categories which are, moreover, subject to different legal tests. However, the single most important problem with self-preferencing as a label is that it might lead to the abandonment of the case law without an appropriate examination of the rationale underpinning it and without evaluating the consequences of departing from it”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.
[8] No original: “It follows that favouring one’s own business or product is not anti-competitive even if it leads to the marginalization or even disappearance of certain individual competitors, so long as the favouring is competition on the merits”. In: VESTERDORF, Bo. Theories of Self-Preferencing and Duty to Deal – Two Sides of the Same Coin? (January 31, 2015). Competition Law & Policy Debate, Volume 1, Issue 1, February 2015, p.4-9. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2561355
[9] No original: “There can therefore be no obligation on a dominant undertaking to treat its competitors in downstream or related markets in the same or substantially the same way as its own operations in such markets […] without establishing the existence of an “essential facility”. VESTERDORF, Bo. Id. Ibid.
[10] Ver: PETIT, Nicolas. THEORIES OF SELF-PREFERENCING UNDER ARTICLE 102 TFEU:
A REPLY TO BO VESTERDORF. Competition Law & Policy Debate 1 CLPD (2015). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2592253 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2592253
[11] “One of the first of these investigations internationally was the FTC’s inquiry into whether Google’s search results were “biased” towards its own “properties” and, if so, whether such self-preferencing was an unfair method of competition under Section 5 of the Federal Trade Commission Act. After a 19-month investigation, the FTC closed the investigation. In its strongly-worded closing statement, the FTC went well beyond saying that Google’s behavior did not violate U.S. competition law. Rather, it asserted that the behavior at issue was the sort of competitive behavior that competition statutes encourage”. In: SALINGER, Michael A. Self-Preferencing (November 11, 2020). The Global Antitrust Institute Report on the Digital Economy 10. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3733688 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3733688
[12] Ver NT nº 20/2022 (IA nº 1797/2022-09); NT nº 9/2022 (IA nº 3945/2020-50); Parecer nº 12/2022 (AC nº 7341/2021-63).
[13] A União Europeia largou na frente e tornou-se a primeira jurisdição a regular o tema. Para maiores aprofundamento, ver: COUTINHO, Diogo R. GONÇALVES, Priscila Brolio. KIRA, Beatriz. As big techs e a nova onda de regulação digital: o caso União Europeia. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-big-techs-e-a-nova-onda-de-regulacao-digital-o-caso-uniao-europeia-21072022.