Angelo Prata de Carvalho

As permanentes discussões sobre o futuro do Direito da Concorrência e as disputas dogmáticas e narrativas quanto às suas finalidades têm há muito dominado a literatura antitruste, que constantemente se debruça sobre a dicotomia entre as premissas metodológicas tradicionalmente fixadas pelo direito norte-americano – baseadas, em larga medida, nos fundamentos estruturados pela Escola de Chicago e na teoria econômica neoclássica – e os entendimentos dissonantes advindos da Europa – com postura considerada mais intervencionista, na medida em que tende a limitar a concentração e a tomar decisões mais rigorosas no âmbito do controle de condutas.

No entanto, com a crescente integração da economia global, e especialmente com a avassaladora influência transnacional das chamadas big techs ou gigantes da internet – o que tem levantado preocupações relevantes inclusive nos Estados Unidos, notadamente com as autoridades nomeadas pelo governo Biden, marcadamente partidárias de visão crítica quanto às perspectivas dominantes que permitiram o grande movimento de concentração econômica das últimas décadas –, diversas vozes relevantes têm inclusive apontado ou para a necessidade de convergência de abordagens (perspectiva que também é potencialmente problemática, mas que será abordada em outra oportunidade), ou ao menos para problemas compartilhados que mereceriam a construção soluções holísticas. Pode-se mencionar, nesse sentido, recente discurso no qual a Comissária Europeia para a Concorrência Margrethe Vestager expressamente afirmou que mercados abertos e justos são um objetivo compartilhado por ambos os lados do Atlântico, de tal maneira que haveria forte convergência quanto às preocupações das duas jurisdições[1].

Por mais emocionantes que possam ser as disputas pelo protagonismo da defesa da concorrência, notadamente no que se refere aos mercados digitais, e por mais heroicas que sejam as iniciativas europeias e norte-americanas pelo controle do poderio econômico das big techs, tal narrativa insere o restante do mundo na plateia da exibição de um filme com legendas mal traduzidas. Causa inclusive alguma perplexidade que, apesar de os gigantes dos mercados digitais projetarem seu poder sobre todas as demais jurisdições, estas parecem estar, parafraseando-se a famosa carta de Aristides Lobo, assistindo bestializadas a tal processo, atônitas e surpresas, sem saber o que significa, acreditando seriamente estarem acompanhando mais um desfile de ideias.

No entanto, não somente há outros Direitos da Concorrência distintos daqueles ao norte, como há posturas firmes que desafiam diversas das premissas lá estabelecidas. Exemplo disso é o que vem ocorrendo na China, que desencadeou processo resumido pela manifestação do presidente Xi Jinping após sessão plenária da Comissão de Inspeção Disciplinar do Partido Comunista Chinês, segundo o qual “esforços deverão ser tomados para investigar e punir o comportamento corrupto por trás da expansão desordenada do capital e do monopólio das plataformas, e para cortar a ligação entre poder e capital”[2].

O pronunciamento vem na esteira da avassaladora condenação da gigante chinesa de tecnologia Alibaba, condenada em multa equivalente a 2.8 bilhões de dólares, em 2021, pela Administração Estatal de Regulação do Mercado da China (conhecida pela sigla em inglês SAMR), pela prática de conduta anticompetitiva consistente na criação de estrutura de incentivos que forçava vendedores a comercializarem seus produtos exclusivamente na plataforma da empresa. Conforme explica Sandra Colino, a rigorosa postura da autoridade concorrencial chinesa não consiste propriamente no ingresso do país asiático no movimento global de combate às big techs, mas no resultado de uma estratégia sui generis de controle do poder econômico, fundada na ideia de “observar e então agir” (observe-then-act)[3]. O caso da Alibaba, nesse sentido, é lapidar: após longo período de desenfreado e descontrolado crescimento, no qual o conglomerado liderado por Jack Ma conquistou habilmente mercados dominados por agentes ligados ao governo central (como ocorreu com a Alipay, braço financeiro do grupo Alibaba que rapidamente ocupou relevantes espaços dos pouco eficientes bancos chineses), vem sendo mais rigorosamente controlado pelas autoridades de regulação do mercado.

A distinção, aqui, não é meramente política e tampouco se trata tão somente de um novo golpe em uma complexa disputa por espaços de poder, mas diz respeito a uma forma particular de visualizar-se o desenvolvimento e a proteção de mercados. Isso porque, como explica Lillian Li, existe uma relação simbiótica entre as instituições públicas chinesas tradicionais e as instituições digitais privadas em ascensão, de tal maneira que a tecnologia se desenvolve da China a partir da premissa de que se trata de um país em desenvolvimento com instituições em desenvolvimento, de tal maneira que a tecnologia não está aprimorando instituições já existentes, mas verdadeiramente criando-as[4]. Trata-se, em síntese, segundo a autora, do processo enunciado por Deng Xiaoping ao propagar que “é preciso cruzar o rio sentindo as pedras sob os pés”: diante da ausência de consenso sobre a melhor forma de lidar com a inovação, pode ser interessante verificar como os agentes econômicos se comportam para então reequilibrar os mercados quando necessário.

Considerando que a inovação franca passou a dar lugar a uma série de abusos – como é o caso da conduta anticompetitiva perpetrada pela Alibaba, dentre outros exemplos[5] – o arcabouço regulatório e concorrencial chinês vem sendo robustecido com soluções originais, como a recente recomendação da Administração do Ciberespaço da China que vedou a utilização de algoritmos para a imposição de restrições indevidas sobre provedores da internet que obstem o regular funcionamento dos serviços informacionais ou produzam condutas monopolistas ou anticompetitivas[6].

            A postura adotada pela China serve, assim, para questionar diretamente o recorrente truísmo segundo o qual as autoridades concorrenciais dos Estados Unidos teriam historicamente adotado postura mais contida em razão da circunstância de que os gigantes da internet encontram-se sediados em território americano, ao passo que a União Europeia teria a possibilidade de tomar decisões mais arrojadas por não seguir as mesmas tendências protecionistas – e, ao contrário, contaria com incentivos para proteger-se da dominância das big techs norte-americanas. Evidentemente que não se ignora que tanto Estados Unidos quanto União Europeia podem ser movidos por anseios protecionistas ou outras finalidades políticas (tendo em vista que o Direito da Concorrência é, invariavelmente, político).

No entanto, igualmente não se pode deixar de levar em consideração o fato de que se trata de posturas teórico-ideológicas em disputa sobre o Direito da Concorrência que dificilmente serão verdadeiramente efetivas (especialmente se carregarem o ônus de promover a convergência) se não dialogarem com as idiossincrasias daqueles que terão de segurar o Tchan.


[1] https://ec.europa.eu/commission/commissioners/2019-2024/vestager/announcements/speech-evp-margrethe-vestager-american-chamber-commerces-transatlantic-business-works-summit-europes_en.

[2] http://www.news.cn/politics/2022-01/20/c_1128283479.htm.

[3] COLINO, Sandra Marco. The case against Alibaba in China and its wider policy repercussions. Journal of Antitrust Enforcement. v. 10, pp. 217-229, 2022.

[4] https://lillianli.substack.com/p/let-the-bullets-fly-for-a-while

[5] Ver: https://www.cigionline.org/articles/how-antitrust-facilitates-chinas-goal-to-achieve-technological-self-sufficiency/

[6] Disponível em: https://digichina.stanford.edu/work/translation-internet-information-service-algorithmic-recommendation-management-provisions-effective-march-1-2022/.

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