Rodrigo Zingales*
Quando vamos a um restaurante, não perguntamos ao garçom a marca do sal ou do açúcar consumido? No entanto, quando vamos ao supermercado costumamos pagar mais caro pelo sal e açúcar de marcas mais renomadas, como, por exemplo, o sal Cisne ou o açúcar União.
No mesmo sentido, usualmente há uma tendência maior dos consumidores de optarem por abastecer os veículos em um posto de bandeiras renomadas como Shell, Ipiranga ou BR, mesmo que para isso acabam pagando dez, vinte ou trinta centavos mais caro pelo litro de combustível, se comparado com os preços praticados por postos de marca própria (bandeira branca) ou de “marcas” menos conhecidas.
Qual a razão para termos esse comportamento?
Akerlof foi um dos primeiros a estudar e explicar esse comportamento dos consumidores em seu artigo “The Market for Lemons: Quality Uncertainty and the Market Mechanism“[1], denominando-o de “seleção adversa”.
Resumidamente, segundo o autor, a seleção adversa ocorre em mercados onde existe grande “assimetria informacional” entre ofertantes e demandantes quanto à qualidade do bem comercializado e adquirido. Essa assimetria informacional é usualmente verificada em bens homogêneos e de experimentação, como são o açúcar, o sal, a gasolina, o etanol e o diesel, exatamente porque a qualidade desses bens somente é verificada após a sua aquisição e o seu consumo.
Note-se que em bens homogêneos, suas características físico-químicas tendem a ser as mesmas ou muito similares, a não ser que haja uma “desonestidade” por parte do ofertante, conforme destaca Akerlof, e que pode ser refletida, por exemplo, a partir da “adulteração” de suas características físico-químicas regulares.
Uma das soluções trazidas pelo autor para esse problema de ofertantes “desonestos” seria o investimento na reputação da marca do bem (“brand-name good“[2]), pelos seus ofertantes “honestos”.
Por esta razão, o açúcar União, o sal Cisne e as distribuidoras BR, Ipiranga e Raízen / Shell investem montanhas de dinheiro na divulgação de suas marcas e sempre visando chamar a atenção dos consumidores para a “qualidade” de seus produtos.
No entanto, deve-se aqui indagar se realmente essas marcas ofertam produtos de melhor qualidade ou se sua reputação é apenas fruto de seu maior poder econômico para investir em propaganda “reputacional”?
No caso específico dos combustíveis, é um fato que praticamente desde a abertura do mercado brasileiro a distribuidoras e postos bandeira própria (ou bandeira branca), verificou-se uma forte tendência de os consumidores enxergarem esses postos com certa suspeita e optarem por adquirir combustíveis em postos de marcas mais bem estabelecidas reputacionalmente, como BR, Ipiranga ou Shell.
Segundo dados divulgados pela ANP no “Diagnóstico da Concorrência na Distribuição e Revenda de Combustíveis, 2ª Edição, 2020”[3], percebemos, contudo, uma certa tendência de alteração desse hábito dos consumidores brasileiros.
Nesse contexto, vale citar, por exemplo, que segundo a ANP a participação conjunta das três principais distribuidoras do país (BR, Ipiranga e Raízen/Shell) na comercialização de gasolina C no mercado brasileiro, em 2014, correspondia a aproximadamente 68,67 da oferta total; já, em 2019, essa participação conjunta estaria em torno de 63,25%[4]. Ou seja, durante esse período, houve uma migração no consumo de combustíveis para redes de distribuidoras menores ou para postos bandeira própria superior a 5 pontos percentuais.
Este mesmo fenômeno também foi constatado no caso do etanol hidratado, onde a participação conjunta das três principais distribuidoras do país passou de 58,4%, em 2014, para 53,52%[5]; e, ainda, do óleo diesel, onde esta participação conjunta passou de 78,81%, em 2014, para 71,03%, em 2019[6].
Esta migração de demanda de combustíveis ofertados pelos postos bandeirados para aqueles de bandeira própria (ou de marcas menos conhecidas) pode ser explicada por duas razões principais cumulativas e que não possuem qualquer relação com a melhoria na qualidade dos combustíveis ofertados por esses últimos.
A primeira delas decorre da recessão econômica iniciada a partir de 2014 e que apenas se agravou com a Pandemia da COVID-19. Com efeito, esta recessão acarretou uma considerável perda de renda para a maioria da população brasileira, obrigando uma revisão considerável de seus gastos e consequentemente de suas preferências de consumo. Nesse contexto, parte dos consumidores passou a “experimentar” produtos mais baratos e que antes dessa recessão não se encontravam dentre aqueles de sua primeira opção. Os combustíveis ofertados por postos de bandeira própria ou de marcas menos conhecidas se enquadram nesse conceito de “produto mais barato”.
A segunda explicação, que se encontra diretamente relacionada à primeira, resume-se exatamente à elevação no nível de “experimentação” dos combustíveis ofertados por postos de bandeira própria ou bandeira de menor reputação. A partir dessa maior experimentação, os consumidores passaram a perceber que referidos postos, em sua maioria, comercializam combustíveis de qualidade igual àquela dos postos das principais bandeiras, porém com preços mais baixos. Ou seja, o mito de que haveria diferenciação na qualidade caiu ou passou a ser mitigado entre esses consumidores.
De fato, a grande maioria dos consumidores desconhece que a Resolução ANP nº 807/20[7] classifica os diferentes tipos de combustíveis líquidos ofertados no país como: “comuns”, “aditivados” e “premium” e que os diferencia segundo o nível mínimo de octanagem ou a inclusão de aditivo em sua mistura[8].
Segundo esta resolução, a gasolina “comum” se diferencia daquela “premium“, em razão, principalmente, do nível mínimo de octanagem (“IAD” – Índice Antidetonante): comum 87; e premium 91[9]. Já, o que diferencia a gasolina “aditivada” da “comum” seria apenas a inclusão na primeira de um “aditivo”, cujo função seria auxiliar a limpeza do motor e de seus componentes, com o objetivo de garantir uma melhor eficiência funcional[10].
Assim, seguindo a lógica da regulação atualmente em vigor, não haveria distinção entre a gasolina comum comercializada por distribuidoras bandeiradas ou sem bandeira, de grande ou pequeno porte.
Nesse mercado, há ainda comentários no sentido de os combustíveis (gasolina A e diesel A), produzidos pelas refinarias da Petrobras e conhecidos como “combustíveis de bombeio”, serem de melhor qualidade do que aqueles produzidos por outras refinarias, petroquímicas ou importados.
Esta diferenciação de qualidade não se encontra especificada nas normas editadas pela ANP, razão pela qual não haveria razão para acreditar que esses comentários teriam algum fundo de verdade.
No entanto, se for tecnicamente confirmado que os combustíveis produzidos e ofertados pelas refinarias da Petrobras são de melhor qualidade, é indispensável que a ANP reveja imediatamente a sua regulação que trata da qualidade dos combustíveis para que esta diferenciação esteja corretamente contemplada, além de divulgar amplamente essa diferenciação a todos os atores desse mercado (distribuidoras, revendedores e consumidores).
Também é fundamental que seja alterada a regulamentação da ANP sobre as informações da origem dos combustíveis comercializados pelos postos, com o objetivo de constar nas bombas e placas, não mais o nome da distribuidora que forneceu o combustível, mas, sim, o nome do produtor ou do importador que vendeu a gasolina A ou o diesel A, utilizado pela distribuidora na mistura que gerou a gasolina C ou o diesel B comercializado aos consumidores finais pelo posto revendedor. Ressalte-se, nesse sentido, que no caso da gasolina C e do diesel B comuns, a função principal da distribuidora é a realização da mistura de gasolina A com o etanol anidro; e do diesel A com o biodiesel. No caso do etanol hidratado, a distribuidora sequer exerce essa atividade, sendo mera intermediária entre produtor e posto revendedor.
Outra informação relevante que merece ser destacada nesse artigo e amplamente divulgada aos consumidores, refere-se ao fato de as três principais distribuidoras do país também serem as principais ofertantes de gasolina, diesel e etanol comum para postos bandeira própria (bandeira branca), os quais muitas vezes adquirem esses combustíveis junto a essas distribuidoras por preços mais baixos do que aqueles pagos pelos postos que ostentam suas marcas, conforme dados disponibilizados pela ANP até junho de 2020.
A principal razão para as três principais distribuidoras bandeiradas do país serem as principais fornecedoras dos postos bandeira própria (ou bandeira branca) está na ausência de uma concorrência efetiva no elo da distribuição, na maioria dos estados da Federação.
Esta ausência de concorrência tem relação direta com o fato de as três principais distribuidoras bandeiradas do país controlarem e compartilharem entre si a maioria das bases primárias e secundárias de distribuição instaladas; e, ainda, em decorrência da política de cotas de fornecimento de gasolina A e diesel A, definida pela Petrobras e baseada nas vendas pretéritas de cada distribuidora. A partir dessa política, a Petrobras aloca cotas máximas a cada distribuidora, definindo multas elevadas caso a distribuidora não cumpra com o volume de combustível solicitado, seja demandando volumes inferiores ou superiores àqueles previamente solicitados e definidos na cota determinada. Este modelo de cotas acaba gerando desincentivos para distribuidoras menores elevarem sua oferta de combustíveis no mercado doméstico e, consequentemente, reduzirem drasticamente seus preços para ganhar mercado. Afinal, quase 50% dos postos instalados no país estão sob contratos de embandeiramento e nos 50% há forte concorrência das principais distribuidoras bandeiradas, conforme explicamos a seguir.
Em relação à cobrança de preços mais baixos a postos bandeira própria (bandeira branca), do que aos postos contratualmente vinculados às principais distribuidoras bandeiradas do país, a justificativa econômica está exatamente nesses contratos e em seu efeito prático de monopólio sobre a oferta e demanda de combustível junto a esses postos.
Ou seja, ao celebrar um contrato de “embandeiramento” com uma distribuidora, o revendedor se compromete também a comercializar apenas combustíveis fornecidos por essa distribuidora. Assim, como a maioria desses contratos não traz um preço definido ou definível e essas distribuidoras bandeiradas não têm qualquer obrigação legal ou infralegal de divulgar sua política de preços e descontos – diferentemente do que ocorre com a Petrobras e os postos revendedores –, acabam detendo o monopólio sobre esses postos e o direito de cobrarem destes os preços que bem entenderem.
Já, no caso dos postos bandeira própria (bandeira branca), esse vínculo contratual inexiste. Isso significa que, em relação a esses postos, as distribuidoras bandeiradas concorrem entre si – e com outras distribuidoras bandeiradas ou não de menor porte, quando presentes no mercado local / regional – pelo fornecimento de combustíveis, sendo, portanto, obrigadas a cobrar preços mais baixos para tê-los como clientes.
Reitera-se que o combustível comum ofertado pelas distribuidoras, bandeiradas ou não, de grande ou pequeno porte, aos postos revendedores, bandeirados ou não, é o mesmo segundo a Resolução ANP nº 807/20. Assim, não haveria razão, do ponto de vista das características físico-químicas e de qualidade para as distribuidoras bandeiradas cobrarem cinco, dez, quinze ou vinte centavos mais caro pelo litro de combustível adquirido por um posto bandeirado, só porque este ostenta a sua marca. O mesmo vale em relação aos consumidores quando optam por abastecer em postos bandeirados.
Esta conclusão não é, contudo, válida para o caso dos combustíveis “aditivados” e “premium”, os quais possuem uma certa tecnologia desenvolvida ou adquirida pelas distribuidoras que os “produzem” ou comercializam. Tanto isso é verdade que, nos Estados Unidos da América, a exclusividade de fornecimento de combustíveis somente é aplicada para os combustíveis “premium” e “aditivados”, sendo aqueles “comuns” considerados como verdadeira commodity, podendo o proprietário do posto, bandeirado ou não, adquiri-lo de qualquer refinaria – ou distribuidora –, independentemente da marca que ostenta[11]. Este poderia ser um bom exemplo a ser seguido pela ANP, em sua regulamentação, com o objetivo de baratear os preços dos combustíveis no país e incentivar o desenvolvimento, por refinarias, petroquímicas e distribuidoras, de combustíveis “premium” ou “aditivados” cuja qualidade tenderá a ser superior àquelas da gasolina e do diesel comuns, dependendo das características do veículo e recomendações de seu fabricante.
[1] Disponível em <http://wwwdata.unibg.it/dati/corsi/8906/37702-Akerlof%20-%20Market%20for%20lemmons.pdf>. Acessado em 25.05.21. Observe que o termo “lemons” utilizado por Akerlof em seu artigo refere-se a carros usados com problemas, que no vernáculo seria traduzido como um “abacaxi”.
[2] O autor ainda cita como possíveis soluções para este problema da “desonestidade”: (i) a concessão de “garantias” pelo fornecedor do produto; (ii) estruturas de “redes” / “licenciamentos” (genericamente conhecidas como franquias); e, ainda, (iii) organizações certificadoras. Op. cit. p. 13 e 14.
[3] Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/livros-e-revistas/arquivos/diagnostico-sdc-2020.pdf>. Acessado em 25.05.21.
[4] Observa-se que a participação da Distribuidora Alesat, quarta colocada, também sofreu uma queda no período, passando de 5,76%, em 2014, para 4,20%, em 2019, o que reforça o argumento apresentado acima. Op. cit. p. 46,
[5] Op. cit. p. 55.
[6] Op. cit. p. 64.
[7] Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-807-de-23-de-janeiro-de-2020-239635261>. Acessado em 25.05.21.
[8] Sobre a diferença de qualidade entre gasolina comum, aditivada e premium, recomendo a leitura desse artigo: https://www.economist.com/babbage/2012/09/17/difference-engine-who-needs-premium?utm_medium=cpc.adword.pd&utm_source=google&utm_campaign=a.22brand_pmax&utm_content=conversion.direct-response.anonymous&gclid=CjwKCAjwtcCVBhA0EiwAT1fY70y9TWGs9xMJLmQni8ocRHaSq8k6oWVPDLXvHAslDbzN2MLTOv98tBoCAncQAvD_BwE&gclsrc=aw.ds
[9] Vide ainda informações prestadas pela Petrobras em: <https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/entenda-10-questoes-sobre-a-nossa-gasolina.htm>. Disponível em 25.05.21.
[10] Sobre aditivo, vide, por exemplo, explicação resumida constante no “Blog Bardhal”, disponível em <https://blog.bardahl.com.br/entenda-a-diferenca-entre-o-aditivo-vendido-em-frasco-e-a-gasolina-aditivada/>. Acessado em 25.05.21.
[11] Vide, por exemplo: <https://kendrickoil.com/the-differences-between-branded-vs-unbranded-fuel/>. Acessado em 25.05.21.
[*] Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, advogado, mestre em economia e atualmente colunista de WebAdvocacy. O presente artigo reflete exclusivamente os pensamentos e opinião do autor.