Angelo Prata de Carvalho
A evidente influência do Direito da Concorrência norte-americano sobre o direito brasileiro já foi, por diversas vezes, objeto das discussões trazidas por esta coluna. No artigo de hoje, pretende-se tomar como exemplo uma conduta específica – o abuso de direito de petição com finalidade anticoncorrencial, conhecido como sham litigation – para demonstrar as dificuldades oriundas dos potenciais descompassos entre os fundamentos que orientam os ordenamentos jurídicos de cada uma das jurisdições.
A conduta conhecida como sham litigation¸ referente ao uso abusivo de procedimentos administrativos ou processos judiciais com a finalidade de afastar concorrentes do mercado, nasce no direito norte-americano como exceção à chamada doutrina Noerr-Pennington, segundo a qual a legislação antitruste não poderia impedir o acesso dos cidadãos aos poderes públicos[1], reconhecendo a validade de ações legítimas para influenciar decisões de agentes públicos[2]. Contudo, o direito de petição é assegurado tão somente até o limite do razoável, não podendo ser utilizado como estratégia para mascarar a implementação de estratégia tendente a lesionar a livre concorrência. Trata-se, sem dúvida, de conduta de fundamental relevância, na medida em que tem o condão de afetar fortemente a concorrência sem sequer exigir poder de mercado considerável, já que seus efeitos decorrem de decisões do poder público[3], o que se agrava em grande medida quando se referem a searas delicadas como a propriedade intelectual[4].
Assim, a jurisprudência norte-americana desenvolveu uma série de testes para a verificação do sham litigation, destacando os conhecidos testes PRE e POSCO. O teste PRE, desenvolvido no âmbito do caso Professional Real Estate Investors, Inc. v. Columbia Pictures Industries, Inc. (508 U.S. 49), quando se afirmou que, para que se excepcione a doutrina Noerr-Pennington, é necessário cumprir dois requisitos: (i) um subjetivo, referente à intenção de utilização de um procedimento estatal como instrumento para a implementação de objetivos anticompetitivos; e (ii) um objetivo, que exige que os pleitos sejam objetivamente infundados (objective baseless claims). O teste POSCO[5], por sua vez, refutou o requisito objetivo do teste PRE ao inferir que o sucesso ou os fundamentos legítimos de um pleito isolado não legitimam uma estratégia anticompetitiva como um todo, sendo necessário verificar, em perspectiva macroscópica, a legitimidade do padrão de conduta verificado no âmbito das diversas ações judiciais apresentadas.
No entanto, deve-se observar esses testes com parcimônia, uma vez que foram desenvolvidos sob cultura jurídica diversa e sob aspectos concretos que não necessariamente se coadunam com os preceitos do ordenamento brasileiro. No Brasil, o sham liigation foi recepcionado como abuso de direito de petição, o que congrega não apenas a doutrina do abuso de direito, mas também uma concepção específica do direito de ação que, na cultura jurídica pátria, foi construída sobre bases distintas daquela pensada no common law.
É necessário, pois, que se desenvolvam parâmetros que sejam consentâneos com os princípios processuais e concorrenciais vigentes o ordenamento brasileiro, sob pena não apenas de indevidamente transplantar institutos jurídicos alienígenas para a ordem interna, mas também de irremediavelmente subverter a lógica constitucional que deve perpassar a aplicação do Direito da Concorrência. Da mesma maneira, é preciso que eventual limitação ao direito de ação por meio do antitruste se justifique segundo a mesma ordem constitucional que garante o acesso aos poderes públicos.
Por mais que o CADE já adote sentido mais amplo da noção de sham litigation, já que – como não poderia ser diferente[6] –, adota como elementos de análise os princípios da livre concorrência e livre iniciativa constantes da Constituição em lugar de pura e simplesmente aplicar testes importados da jurisprudência norte-americana, um conceito mais amplo de abuso de direito de petição ainda carece que densificação a partir das próprias premissas teórico-normativas que orientam a aplicação do direito brasileiro, sob pena de despir a análise antitruste de critérios operacionais mínimos[7].
O adequado desenvolvimento do Direito da Concorrência brasileiro requer reflexão igualmente adequada sobre suas premissas e pressupostos, seja por integrar sistema constitucional complexo, seja por estar inserido em conjuntura histórica e tradição dogmática específicas. É imprescindível, portanto, que as categorias punitivas do antitruste sejam elaboradas segundo critérios próprios ao ordenamento pátrio, e não somente a partir de categorias importadas do direito norte-americano. Tal necessidade fica ainda mais patente quando o Direito da Concorrência apresenta intersecções com outros ramos jurídicos, muito mais associados à tradição romano-germânica do que aos parâmetros do case law anglo-saxão. É o caso do sham litigation, vinculado tanto ao imperativo constitucional de proteção à livre concorrência quanto ao direito fundamental de acesso aos poderes públicos.
O Direito da Concorrência brasileiro, no entanto, idoso em existência, porém jovem em relevância, ainda luta para adquirir autonomia em relação aos mais desenvolvidos direitos antitruste dos países centrais. Desse modo, o antitruste brasileiro se encontra em constante tensão entre a necessidade de reafirmação de parâmetros seguros, consagrados pela jurisprudência internacional, para demonstrar sua autonomia e independência, e sua emancipação enquanto ramo jurídico decorrente da ordem econômica constitucional brasileira, que dialogue de maneira fluente com os conceitos que informam o ordenamento pátrio.
Assim, para utilizar – e subverter – a interessante construção de Marcelo Neves[8], o CADE prossegue no complexo paradoxo de atuar a partir da aplicação de ideias em outro lugar (o emprego de conceitos consagrados norte-americanos em realidade jurídico-social completamente distinta) e de, ao mesmo tempo, no mesmo lugar (uma vez que o CADE não opera isoladamente, mas no espaço global de discussão e aplicação de princípios de defesa da concorrência). A continuidade do desenvolvimento do Direito da Concorrência brasileiro requer não somente que o CADE fale na língua compreendida pelas demais autoridades da concorrência de destaque no cenário internacional, mas também que o antitruste nacional faça jus a seu estatuto constitucional ao promover a harmonização de sua atuação com os demais preceitos regentes do ordenamento brasileiro. Com isso, aos poucos, o Direito da Concorrência brasileiro poderá passar a falar com linguagem própria, mais consentânea com o lugar em que se desenvolve – ainda que com algum sotaque.
[1] Eastern Railroad Presidents’ Conference v. Noerr Motor Freight, Inc., 365 U.S. 127.
[2] United Mineworkers of America v. Pennington, 381 U.S. 657. Ver: WOOD, Lisa. In praise of the Noerr-Pennington doctrine. Antitrust. v. 18, pp. 72-77, 2003.
[3] FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017.
[4] FRAZÃO, Ana; PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. The relation between antitrust and intellectual property on CADE’S case law. In: SILVEIRA, Paulo Burnier. Competition Law and Policy in Latin America: recent developments. Alphen aan den Rijn: Kluwer, 2017.
[5] USS-POSCO Indus. v. Contra Costa County Bldg. & Constr. Trades Council, 31 F.3d 800.
[6] Ver, em análise mais aprofundada da jurisprudência do CADE sobre o tema: PRATA DE CARVALHO, Angelo. Do sham litigation ao abuso de direito de petição: desafios e parâmetros de análise para o abuso do direito de petição no direito brasileiro. Revista de direito da concorrência. v. 7, n. 2, 2019.
[7] RECENA, Martina Gaudie Ley; LUPION, Ricardo. Breves reflexões sobre a aplicação da sham litigation. Revista jurídica luso-brasileira. v. 4, n. 4, pp. 1519-1554, 2018.
[8] NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista brasileira de ciências sociais. v. 30, n. 88, jun. 2015.