Angelo Prata de Carvalho

Um dos principais objetivos desta coluna é refletir a respeito das premissas teóricas do Direito da Concorrência brasileiro, razão pela qual vários dos artigos anteriormente aqui publicados procuraram tratar seja das bases constitucionais do antitruste, seja de alguns dos “mitos fundadores” que orientam a compreensão dos operadores do direito sobre a defesa da livre concorrência. Este artigo, assim, tem por objetivo apontar as contradições associadas a um “mito fundador” mais recentemente agregado ao Direito da Concorrência brasileiro, por mais que tenha sido também importado da prática norte-americana: a obra de Robert Bork.

Bork, com sua famosa obra The Antitrust Paradox, firmou profundas raízes na literatura e mesmo na prática concorrencial brasileira, figurando como citação quase obrigatória para tratar-se da matéria. No entanto, a forte presença do autor nos debates contemporâneos causa estranhamento não somente em virtude do enfraquecimento das premissas da escola da Chicago, mas também diante da construção de uma aura de autoridade quase inquestionável em torno de figura altamente controversa mesmo no contexto norte-americano.

Não é por acaso, aliás, que o obituário de Bork na revista The New Yorker escrito pelo jornalista Jeffrey Toobin afirmou que o jurista era “um reacionário impenitente que esteve do lado errado de todas as grandes controvérsias jurídicas do século XX”[1]. Isso porque Bork, paralelamente à difusão de sua obra em Direito da Concorrência, foi o protagonista de uma das maiores controvérsias associadas à nomeação de um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos quando, ao ser indicado pelo Presidente Reagan em 1987 para ocupar um assento na corte, foi alvo de contundentes críticas de diversos juristas relevantes em virtude de suas opiniões controversas, especialmente quanto à posição segundo a qual a Constituição norte-americana deveria ser lida segundo a intenção original dos constituintes. Uma das principais vozes contra Bork foi a de Ronald Dworkin, que chegou a apontar publicamente que Bork – ao defender platitudes como a de que juízes não devem buscar princípios mais gerais do que os admitidos pelas palavras, pela estrutura e pela história da Constituição – desdenhava do raciocínio jurídico ao sentir-se desobrigado a tratar a Constituição como uma estrutura integrada de princípios morais e políticos, sem qualquer responsabilidade inclusive diante dos princípios subjacentes a decisões da Suprema Corte das quais o jurista discordava[2].

Ao passo que o movimento contra Bork foi bem-sucedido ao evitar que fosse alçado à Suprema Corte, causa algum estranhamento que, ao analisarmos a sua obra no campo do Direito da Concorrência, não seja comum que venha ao caso o fato de que o autor tenha falhado miseravelmente em obter o cargo que buscava e em aprofundar e solidificar suas compreensões a respeito da interpretação constitucional. Pelo contrário, a constante utilização de sua obra muitas vezes parece fazer referência a outro Bork, descolado da realidade que o circundou e que verdadeiramente o consumiu após o fracasso de suas pretensões.

Acontece, no entanto, que Bork procurava aplicar ao Direito da Concorrência metodologia bastante semelhante àquela que procurava utilizar para interpretar a Constituição norte-americana, de tal maneira que a sua famosa conclusão quanto à finalidade do Direito Antitruste – isto é, o bem-estar do consumidor, que se alcança mediante o incremento da eficiência econômica –  não decorre da aplicação de metodologias econômicas rígidas que vieram a caracterizar as análises que adotam suas premissas, mas sim de uma pretendida interpretação originalista do Sherman Act.

Em outras palavras, por mais puristas que se pretendam as análises econômicas associadas à Escola de Chicago tão inspirada por Bork, o ponto de partida teórico do autor passa justamente por uma leitura açodada e limitada da legislação concorrencial norte-americana,  partindo não de uma visão sistemática do sistema jurídico em questão, mas de uma suposta vontade legislativa que, em última análise, macula qualquer pretensão de objetividade com profundo decisionismo[3].

Evidentemente que a influência de Robert Bork sobre o Direito da Concorrência – seja o norte-americano, seja o brasileiro – é inegável, no entanto acolher suas premissas sob o pretexto de que seriam sustentadas por um método consistente significa ignorar o contexto em que foram desenvolvidas e as profundas críticas que se pode a elas fazer diante de um sistema jurídico fundado em determinados princípios estruturantes – preocupação que ainda mais salta aos olhos em países que, como o Brasil, vinculam seu Direito da Concorrência a uma ordem econômica constitucional voltada a promover valores diversos.

Cabe indagar para Bork, dessa maneira, tal qual fez Cícero para Catilina perante o Senado Romano, não somente até quando abusará de nossa paciência – com teorias travestidas de tecnicismos para ocultar visões inconsistentes com o sistema jurídico –, mas também “Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós?” e “A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia?”.


[1] TOOBIN, Jeffrey. Postcript: Robert Bork, 1927-2012. The New Yorker. 19 dez. 2012. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/news-desk/postscript-robert-bork-1927-2012.

[2] Ver: DWORKIN, Ronald. The Bork Nomination. The New York Review. 13 ago. 1987.

[3] Ver: ORLAND, Leonard. Robert Bork: An evaluation. Disponível em: http://digitalcollections.library.cmu.edu/awweb/awarchive?type=file&item=691329.

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