Angelo Prata de Carvalho

O Direito da Concorrência brasileiro contemporâneo parte de bases constitucionais sólidas, é disciplinado por robusto diploma normativo, com institutos já amplamente testados na prática, e conta com uma dogmática nacional já bastante desenvolvida a partir dessas bases normativas. Não obstante, não se pode ignorar as profundas influências que tanto a teoria quanto a prática do Direito da Concorrência brasileiro ainda sofrem diante dos influxos do Antitruste dos Estados Unidos – que remontam à primeira lei antitruste brasileira e mesmo aos comentários de Benjamin Schieber (cuja influência será objeto do próximo artigo desta coluna), mas que também podem ser verificadas nas posturas jurisprudenciais mais recentemente adotadas ao norte.

Basta ver que, na medida em que o Antitruste norte-americano acolheu as ideias da Escola de Chicago, notadamente a partir da adoção dos critérios propostos por Robert Bork para, a pretexto de defender o bem-estar do consumidor, substituir a racionalidade jurídica pelo critério da eficiência econômica, as metodologias de análise desenvolvidas naqueles contexto foram em larga medida adotadas também na prática do Direito da Concorrência brasileiro.

De fato, Bork soube apresentar a sua proposta de forma interessante e sedutora, porém o “bem-estar do consumidor” propalado pelo autor, além de descolado da realidade, não apresentava nenhum componente ético ou jurídico, assim como era indiferente a qualquer problema relacionado à pobreza ou à distribuição de renda, na medida em que dizia respeito exclusivamente à eficiência – por mais controversos e limitados que sejam critérios como o de Pareto e o de Kaldor-Hicks.

A adoção desses critérios metodológicos, como aponta Tim Wu, levou a um intenso movimento de concentração no contexto norte-americano, com inúmeros exemplos de monopólios e oligopólios formados com a anuência das autoridades da concorrência[1]. Exemplo disso são as posições hoje detidas pelos chamados gigantes da internet, que ao longo dos anos beneficiaram-se da postura leniente das autoridades para adquirir concorrentes efetivos ou potenciais para perpetuar seu poder de mercado e originar estrutura de mercado que dificilmente poderá ser desafiada.

Diante desse cenário, com a eleição do Presidente Joe Biden, os ventos do Direito Antitruste nos Estados Unidos pareceram iniciar uma mudança, tendo em vista que determinados autores com posições críticas relevantes contra as metodologias de Chicago e o movimento concentracionista dos últimos anos assumiram importantes nas autoridades norte-americanas. É o caso das indicações de Lina Khan para a Federal Trade Commission e de Tim Wu para o National Economic Council, que produziram importantes repercussões: basta ver que, no dia 9 de julho, a FTC publicou comunicado manifestando sua intenção de alterar as suas Merger Guidelines diante da excessiva permissividade a autoridade com a concentração de mercado e da realidade econômica contemporânea[2].

Após vários anos de reafirmação das metodologias de Chicago, o Direito Antitruste norte-americano parece estar incorporando às suas práticas institucionais tanto achados empíricos recentes sobre estruturas de mercado – notadamente no âmbito de mercados digitais – quando novas perspectivas metodológicas, assim iniciando um processo de verdadeira transformação na análise antitruste. De fato, pode ainda ser muito cedo para que se conclua que tais mudanças alterarão fundamentalmente as bases do Direito da Concorrência, porém minimamente representam uma oportunidade de incorporar perspectivas críticas às metodologias e sobretudo à ideologia de Chicago, que não raro serve muito mais para ocultar aspectos relevantes da realidade econômica do que para analisar o funcionamento de mercados reais.

Restar aguardar, nesse sentido, se o Direito da Concorrência brasileiro terá com essas transformações a mesma permeabilidade que teve para com a incorporação das premissas da Escola de Chicago e outros institutos oriundos da prática dos Estados Unidos. Do contrário, será possível verificar se a influência norte-americana no contexto brasileiro limita-se a um determinado período histórico cujas perspectivas somente seguirão sendo aplicadas em virtude de um inexplicável movimento inercial – em que, ao passo que os ventos do norte mudam de direção, os moinhos do sul giram no mesmo sentido.


[1] Ver: WU, Tim. The curse of bigness. Nova York: Columbia University Press, 2018.

[2] Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/press-releases/2021/07/statement-ftc-chair-lina-khan-antitrust-division-acting-assistant.

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