Angelo Prata de Carvalho
A teoria do direito passou por diversas transformações e controvérsias no sentido de superar a utopia de objetividade proposta pelo positivismo do século XIX – formulada com o objetivo assegurar a independência do ordenamento jurídico das razões ético-valorativas que orientavam visões jusnaturalistas –, inclusive com vistas a mitigar o entendimento segundo o qual o direito deveria ser estudado segundo aquilo que ele realmente é, ou seja, sem que se fizesse permanente referência a um direito ideal[1]. Em outras palavras, a ideia de racionalidade que se atribuiu ao direito na atualidade em muito se afasta da objetividade cientificista pretendida, por exemplo, pela Escola da Exegese francesa e pela Pandectística alemã, que tiveram finalidades relevantes para a afirmação do pensamento jurídico em suas épocas e locais, porém vão radicalmente de encontro ao paradigma pós-positivista que governa a interpretação e a aplicação do direito na atualidade[2].
Em outras palavras, tanto não faria sentido atribuir ao direito um ideal de racionalidade descolado do contexto histórico em cultural do ordenamento em questão, quanto seria postura demasiadamente ingênua a que defendesse que o direito pudesse libertar-se da linguagem e dos mecanismos de interpretação em prol de uma objetividade aritmética ou mesmo de um raciocínio puramente consequencialista que desconsiderasse os bens tutelados pelas normas jurídicas. Pelo contrário, a dogmática jurídica é ideológica e historicamente localizada justamente em virtude da necessidade de manutenção de seu potencial persuasivo, tendo em vista que não faria sentido sustentar um direito descolado do ambiente social e cultural que o reproduz[3].
Não é sem motivo que mesmo o positivismo normativista kelseniano, notadamente a partir da publicação da edição de 1960 da Teoria Pura do Direito, não deixa de levar em consideração o fato de que a interpretação e a aplicação do direito não constituem atos de conhecimento decorrentes da aplicação de método científico a um corpo de normas, mas sim atos de vontade consistentes na escolha fundamentada de uma conclusão dentre as várias possíveis sob a égide de determinado ordenamento[4]. Em outras palavras, mesmo os esforços de construção de estatuto de ciência ao direito não ignoram que, na prática – ou naquilo que Kelsen chamou de “política do direito” –, o direito é necessariamente marcado por elementos valorativos.
Significa dizer que a busca por ideais de objetividade que são próprios das ciências exatas desafia a própria tentativa de descrição do estatuto epistemológico do direito, considerando que o pós-positivismo procurou justamente estruturar um conjunto de técnicas de interpretação e aplicação do direito que, conscientes da textura aberta[5] das normas jurídicas, oferecessem não um caminho para superar subjetividades e ideologias, mas sim soluções que adequadamente refletissem os acordos constitutivos da sociedade que originou determinado sistema de normas[6].
Em outras palavras, o giro linguístico representa a superação, pelo próprio positivismo, do apego típico do modernismo do século XVII (isto é, em sentido cartesiano, representante por antonomásia do pensamento do pós-medievo) a tentativas de demonstração matemático-empírica de fenômenos associados à conduta humana. Não é sem motivo que Deirdre McCloskey assevera que a metodologia oficial da ciência econômica é este “Modernismo” (ou, ainda “positivismo”, apesar do esforço da autora em separar a postura dos economistas do positivismo que é próprio das ciências sociais, que, não obstante, tende a ser apontado justamente como ideal metodológico), no qual qualquer outro elemento distinto de hipóteses falsificáveis em sentido popperiano deve ser descartado, tendo em vista que a ciência, a partir dessa concepção, apresenta-se como axiomática e matemática, separando seu campo do reino das formas, valores, beleza, bondade e qualquer outro elemento que não possa ser medido[7].
Tal comentário faz referência direta à parêmia de gustibus non est disputandum, título de artigo de George Stigler e Gary Becker que vem a tornar-se verdadeiro bordão da análise econômica do direito, destinado a neutralizar a análise econômica de quaisquer aspectos que digam respeito às individualidades dos agentes que compõem os mercados e à formação dessas individualidades, imputando aos sujeitos parâmetros de racionalidade abstrata que se descolam da realidade concreta não por ignorarem que há uma realidade subjacente à ação individual, mas por deliberadamente ignorarem aspectos essenciais dessa realidade em prol de uma empiria estatística[8] que, no afã de simplificar o mundo para explicá-lo, elege como instrumentos analíticos aqueles com suposto caráter de “cientificidade” – isto é, aqueles que são capazes de ser aferidos objetiva e matematicamente.
É por essa razão que Pierre Bourdieu, ao tratar das teorias da escolha racional (com expressa referência à obra de Becker e Stigler), assevera que
“Esta filosofia atomista e mecanicista exclui puramente e simplesmente a história. Ela exclui, primeiramente, agentes cujas preferências, que não devem nada às experiências passadas, são inacessíveis às flutuações da história, a função de utilidade individual sendo decretada imutável ou, pior, sem pertinência analítica”[9].
Evidentemente que as reflexões a respeito da introdução de critérios da análise econômica no raciocínio jurídico não ficam infensas a esse tipo de crítica direcionada às abordagens de inspiração neoclássica, de tal maneira que em larga medida também se pretende trazer para o campo jurídico abordagens que procuram superar (ou ao menos mitigar) alguns dos dogmas da economia neoclássica, como é o caso da economia institucional – que, justamente, admite que as regras do jogo a serem observadas pelos atores econômicos podem advir das mais diversas fontes, o que inclui normas culturais e constrangimentos oriundos do contexto histórico-social em que se inserem os agentes. No entanto, não se pode deixar de notar que mesmo os conceitos que compõem a economia institucional podem se instrumentalizados no intuito de perpetuar a lógica neoclássica, substituindo-se a maximização de utilidade[10] por objetivos como a redução de custos de transação (que muitas vezes acaba por tornar-se verdadeiro sucedâneo daquilo que significa a eficiência alocativa para a economia neoclássica) [11].
O que se verifica, por conseguinte, é que, por mais que o direito contemporâneo tenha sido desenvolvido sobre sólidas bases metodológicas que resultaram da superação dos dogmas positivistas pelos pressupostos que marcam o chamado pós-positivismo – notadamente o giro linguístico e a assunção da postura hermenêutica segundo a qual o discurso jurídico é diretamente condicionado pela textura aberta da linguagem, de maneira a lançar à terra pretensões irreais de neutralidade ou absoluta objetividade –, o movimento de introdução de argumentos econômicos no discurso jurídico aponta para verdadeiro retrocesso no processo de amadurecimento da metodologia que é própria à ciência jurídica.
Isso porque o discurso da teoria econômica neoclássica tende justamente a eleger um método específico, baseado em presunções irreais de racionalidade, como resposta para problemas jurídicos que não conseguem ser resolvidos senão com uma abordagem abrangente, que leve em consideração tanto a textura aberta da linguagem quanto elementos sociais, políticos e culturais que invariavelmente moldam a normatividade que é própria do discurso jurídico. Curiosamente, a incerteza que advém das metodologias jurídicas – notadamente a hermenêutica jurídica – é justamente um dos pontos de crítica das abordagens que pretendem importar metodologias do campo econômico.
[1] Ver: BOBBIO, Norberto. O positivo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 136.
[2] É o que ensina, por exemplo, Miguel Reale: “Cada época, em verdade, fixa as normas e os limites de sua exegese do Direito, em função dos valores culturais dominantes, tendo representado grande avanço a compreensão de que a interpretação jurídica não constitui senão uma das formas constantes e fundamentais da Teoria Geral da Interpretação, ao lado da exegese filosófica, artística, histórica, etc. […] Posta a questão nesse contexto, preciso é convir que as Escolas da Exegese e dos Pandectistas corresponderam aos ideais de seu tempo. A atitude que, aos olhos atormentados do jurisconsulto ou do politicólogo de nossos dias parece ser passiva perante a lei, era antes a única posição correspondente aos anseios e aspirações da civilização individualista. Foi somente quando esta entrou em crise, em virtude de ter-se revelado” (REALE, Miguel. Para uma hermenêutica jurídica estrutural. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 72, n. 1, pp. 81-91, 1977. p. 81.
[3] Ver: ROESLER, Claudia. Entre o paroxismo de razões e a razão nenhuma: paradoxos de uma prática jurídica. Quaestio juris. v. 8, n. 4, pp. 1-15, 2015.
[4] Nesse sentido: “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo de cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 251).
[5] Nesse sentido: HART, H.L.A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.
[6] Ver: CARVALHO NETTO, Menelick; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito. Belo Horizonte: Fórum, 2020.
[7] MCCLOSKEY, Deirdre N. The rhetoric of Economics. 2.ed. Madison: The University of Wisconsin Press, 1998. p. 142.
[8] Para abordagem crítica da empiria estatística comumente adotada pela economia neoclássica, notadamente a respeito do conceito de significância, ver: ZILIAK, Stephen C.;MCCLOSKEY, Deirdre N. The cult of statistical significance: How the standard error costs us jobs, justice, and lives. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2011.
[9] BOURDIEU, Pierre. O campo econômico. Política e Sociedade. n. 6, pp. 15-57, abr. 2006. pp. 52-53.
[10] Ver: SKIDELSKY, Robert. What’s wrong with economics. New Haven: Yale University Press, 2021. pp. 115-118.
[11] Nesse sentido, para análise empírica sobre o uso das ideias de Coase no contexto do Judiciário norte-americano, ver: WHITE, Barbara Ann. Coase and the courts: economics for the common man. Iowa Law Review. v. 72, pp. 577-635, 1987.