Vanessa Vilela Berbel
“Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro”, questiona Clarice Lispector em seu conto “A repartição dos pães”. A não nominada “dona de casa” (nas palavras da autora), resignada, acostumou-se a servir. Doadora de si e do que é seu, a “dona de casa” oferece mesa farta aos convidados pouco desejosos da partilha – provavelmente seus filhos e familiares, que, constrangidos, aceitam a oferta sincera e desinteressada; deleitam-se, sem nenhuma palavra de amor. Apesar de deixar claro ao leitor que a farta mesa foi construída e posta com o labor da “dona de casa” generosa (a mãe), a narradora (provavelmente filha) revela a quem pertenciam os produtos consumidos: “aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade”. À dona de casa não é atribuída qualquer propriedade ou remuneração; reserva-se a ela apenas o constrangimento dos participantes pela sua benevolência.
Há um consenso geral de que o trabalho doméstico é subvalorizado, mal pago, desprotegido e mal regulado; infirmar ou confirmar cientificamente esse senso comum depende da apuração econômica do trabalho doméstico: pode esse labor ser mensurado? qual sua importância para o desenvolvimento econômico?
Há 80 anos James Meade and Richard Stone ditaram os padrões que globalmente formam o Produto Interno Bruto (PIB). Como a maioria dos estatísticos econômicos da época, Meade e Stone se concentraram quase inteiramente na medição do valor dos bens e serviços que foram realmente comprados e vendidos.
Por sua vez, a padronização internacional sobre a compilação de mensurações econômicas, System of National Accounts (SNA,2009), produzida pelas Nações Unidas, a Comissão Europeia, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, expandiu o limite de produção, de modo que as contas deveriam incluir o trabalho de subsistência e o trabalho informal. Recomendou-se, por este método, a consideração de toda produção para consumo próprio, mas a continuidade de exclusão da produção do trabalho doméstico não remunerado. Isso significa que a agricultura (de subsistência) e produção não mercantil de bens para o consumo das famílias são mensuradas e contabilizadas pelo SNA, permanecendo a exclusão do trabalho doméstico (incluindo o preparo de refeição), cuidado com crianças, idosos e deficientes, e outros serviços relacionados à família. Esta tomada de decisão promove contradições; como alerta WARING (2004): “um balde de água: lave a louça, lave a criança, cozinhe o arroz – não produção. Use a mesma água para pulverizar o milho e lavar o porco – isso é produtivo”. Em termos, o trabalho doméstico não remunerado permanece excluído das contas macroeconômicas, inviabilizando a formulação de políticas, análises e pesquisas.
Como se nota, a par do consenso majoritário, há quem acuse esses padrões de subestimar a mensuração interna anual da produção econômica. Há razões para a acusação? Economistas como Phyllis Deane também nos conferem argumentos para se opor a esta tradição e reivindicar a consideração do trabalho doméstico não remunerado nas contas macroeconômicas. Após analisar famílias das Colônias britânicas do Malawi e na Zâmbia, Deane foi pioneira em perceber que era um erro excluir o trabalho doméstico não remunerado do PIB. Especialmente em países em desenvolvimento, a mensuração do trabalho não remunerado nos agregados macroeconômicos importa para a promoção de igualdade de gênero, sendo ferramenta indispensável para uma mudança social positiva.
Muitos serviços que as famílias produzem para si mesmas não são reconhecidos em receita oficial e medidas de produção, mas constituem um aspecto importante da atividade econômica. Nesta esteira, como recomenda o Relatório Stiglitz-Sen-Fitoussi Report (Stiglitz, Sen and Fitoussi, 2009), são necessários trabalhos sistemáticos nesta área para mensurar como pessoas gastam seu tempo ao longo dos anos, visto que, especialmente nos países em desenvolvimento, a produção de bens e serviços (por exemplo, comida e limpeza) pelas famílias são também termômetros do processo de desenvolvimento.
Muitos dos produtos e serviços produzidos de forma não remunerada por familiares, ao longo do desenvolvimento econômico, passaram a ser adquiridos no mercado, expressando uma mudança econômica importante, uma “conta satélite” dos agregados macroeconômicos que expande o conceito de produção. A análise desta modificação é importante, visto que a lacuna entre o tempo médio gasto por homens e mulheres para o trabalho não remunerado diminuiu com o desenvolvimento econômico mais por causa do advento de substitutos perfeitos ao trabalho das mulheres na cozinha, na lavanderia, nos cuidados, do que por uma mudança na distribuição das tarefas domésticas entre os membros da família, notadamente os homens.
Segundo a PNAD Contínua, em 2019, 146,7 milhões de pessoas de 14 anos ou mais de idade destinam horas para a realização dos afazeres domésticos, cuidado de pessoas, trabalho voluntário e produção para o próprio consumo.
Todavia, a destinação de esforços e tempo nestas tarefas é desproporcional em relação aos gêneros, afetando sobretudo as mulheres. Entre o grupo de mulheres que despendem labor não remunerado no âmbito familiares, são ainda mais afetadas aquelas que se encontram na faixa etária de 25 a 49 anos e com maior grau de escolaridade. A taxa de realização de afazeres doméstico é de 93,4% para as mulheres de nível superior, contra 85,7% para os homens do mesmo nível de escolaridade.
Outrossim, se analisarmos com grano salis os afazeres domésticos realizados por homens e mulheres, tem-se que enquanto as tarefas mais desempenhadas pelo gênero masculino consistem em cuidar da organização do domicílio (pagar contas, contratar serviços, orientar empregados, etc.) e fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio, às mulheres destina-se prioritariamente as atividades de preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça e cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos. São atividades que requerem competência e habilidades bastantes diversas, inclusive quanto ao desgaste físico.
Esta distribuição desigual é prejudicial para as mulheres, sobrecarregando de forma bastante desproporcional principalmente às que estão em faixa etária em que se dá o auge da produtividade e escalonamento profissional; por consequência, elas têm menos tempo para aprender, relaxar, trabalhar em hobbies, ou se dedicarem a horas extras no trabalho.
E é justamente o destino do tempo e as pesquisas sobre ele, como afirma Marilyn Waring, que podem revelar “qual sexo torna o trabalho servil, chato, de baixo status e invisível não remunerado”. Neste aspecto, importa mensurá-lo e mais, considerá-lo em políticas públicas eficientes para a superação das desigualdades criadas por este desequilíbrio de atribuições. Por exemplo, atualmente se é possível a dedução tributária de custos com empregados domésticos em imposto de renda da pessoa física, mas não se pode fazer o mesmo com a redução de remuneração obtida pelo membro familiar que destina seu labor à esta atividade; ao mesmo tempo, é possível a dedução de pagamento de pensão de dependentes, mas não se pode proceder o mesmo abatimento das horas de trabalho com cuidados com a prole. Incoerências que precisam ser repensadas de forma séria e imediata e que, infelizmente, pesam mais ao gênero feminino.
Referências:
European Communities; International Monetary Fund; Organisation for Economic Co-operation and Development; United Nations and World Bank. System of National, 2008. Disponível: SNA complete.book (un.org)
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínu. PNAD Contínua – 2019: outras formas de trabalho. 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101722_informativo.pdf
STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya; FITOUSSI, Jean-Paul. Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, 2009. Disponível em: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr
WARING, Marilyn. 1999. Counting for Nothing: What Men Value and What Women Are Worth. Toronto: University of Toronto Press.
______. Unpaid Workers The Absence of Rights. CANADIAN WOMAN STUDIESILES CAHIERS DE LA FEMME. 2004. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/article/viewFile/6245/5433