Vanessa Vilela Berbel

Combater a violência doméstica é tarefa compartilhada por todos e claramente enunciada na Constituição Federal, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; destaca-se, ainda, o §2º, art. 3º, da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que reza caber à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos por ela enunciados.

Mas, infelizmente, se o combate à desigualdade de gênero e o enfrentamento à violência contra as mulheres integrassem a matriz curricular do ensino universal, poucos países passariam de ano. Estudo do Fórum Econômico Mundial de 2020 (World Economic Forum/ WEF) revelou que nem eu ou você estará vivo para ver a paridade entre homens e mulheres na saúde, educação, no trabalho e na política, a qual demorará, com sorte, 99,5 anos.

A dimensão “participação econômica e oportunidades”, infelizmente, hoje, não escapa ao trágico diagnóstico, estando o Brasil na posição 89 do ranking (The Global Gender Gap Index rankings by subindex, 20, WEF). Apesar da progressiva queda histórica na diferença entre a taxa de participação masculina e feminina no mercado de trabalho, ela continua substancial, sendo de 22 pontos percentuais em 2015; vários fatores são apontados como causas dessa diferença, dentre eles: discriminação no mercado de trabalho, responsabilização da mulher da maior parte dos trabalhos não remunerados domésticos, dentre outros.

Há muito a se fazer, não se nega; trata-se de resultado histórico que não se logra mudar em curto tempo ou sem a participação maciça dos atores sociais. A questão é: estamos fazendo algo para essa mudança? Parece-nos que sim. Estudo elaborado por FOGUE e RUSSO (IPEA, 2019), aponta a expectativa de elevação da presença feminina no mercado de trabalho para 64,3% em 2030, ou seja, 8,2 pontos percentuais acima da taxa em 1992[1], considerando uma população de idade ativa demarcada entre 17 e 70 anos.

Contudo, apesar de todos os avanços promovidos pelo processo contínuo de cooperação transversal entre governo, sociedade civil e comunidade internacional, há uma classe no universo de mulheres carece de maior atenção: as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Daí serem louváveis todas as iniciativas que foquem neste grupo, dentre elas a disposição contida no artigo 25, § 9º, inciso II, da Lei 14.133, de 1° de abril de 2021, que permite aos editais dos processos licitatórios preverem que percentual mínimo de mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.

Infelizmente, a família, lugar de acolhimento e suporte, pode, para alguns, representar sofrimento e agressão. Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos[2] revelam que das 221.427 denúncias de violência contra pessoas do sexo feminino (entre mulheres e crianças), 75.753 delas referem-se à violência doméstica e familiar contra mulheres.

Os dados reforçam a constatação do relatório “Progress of The World’s Women 2019–2020: families in a changing world”, da ONU Mulheres: “famílias são espaços contraditórios para as mulheres. São lugares de amor, nutrição e solidariedade, mas também local onde as mulheres mais experimentam violência e discriminação”. Não se quer, com essa afirmação, desprestigiar a família; famílias não são apenas importante para o amor e cuidado do indivíduo, mas também representam relação simbiótica com governo e economia. Mercados e Estados que funcionam bem precisam das famílias para produzir trabalho, comprar bens e serviços, pagar impostos e nutrir membros produtivos de sociedade; devem ser, portanto, tratadas com muito zelo pelas legislações e políticas governamentais.

 Recente estudo elaborado por Paulo RA Loureiro (LOUREIRO, 2020) revela que uma mulher que sofre violência doméstica normalmente ganha menos que aquela que não vive em situação de violência; a análise vai além, apura os custos econômicos e financeiros da violência doméstica, justificando a atuação do Estado para o aumento da oferta de emprego e ampliação do acesso ao capital humano.

Segundo levantamento feito por LOUREIRO[3], a violência tem alto custo econômico em países de centro e periferia. Os custos da violência doméstica, em 1995, nos Estados Unidos, chegam a valores atuais de US$ 8,3 bilhões anuais: uma combinação de US$ 5,8 bilhões para cuidados da saúde física e mental e US$ 2,5 bilhões em perda de produtividade. Inglaterra e País de Gales somam o custo de £ 15,7 mil milhões de libras anualmente; por sua vez, Chile e Nicarágua estimam em 6% e 2%, respectivamente, o impacto da violência doméstica sobre o produto interno bruto, dada as perdas de renda das mulheres (LOUREIRO, 2020, p.06).

Além dos custos sociais globais, o estudo revela que a violência doméstica é um dos fatores

predominantes nas perdas salariais individualmente sentidas pelas mulheres. Mulheres vítimas de violência doméstica, quando comparadas com aquelas que não sofrem violência doméstica têm uma perda de 30,6 % do salário real. Mulheres agredidas tiveram, na média, renda do trabalho principal de R$ 528, contra R$ 1.056 das que não sofrem agressão (LOUREIRO, 2020).

Logo, pode-se concluir que andou bem o legislador ao prever a possibilidade de se obrigar licitantes a empregar mão de obra feminina vítima de violência doméstica, não sendo desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação; a  mulher, além de eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos em âmbito privado, ao sofrê-los também importa em custos econômicos sociais e individuais, cabendo a todos internalizá-los e prevenir suas ocorrências. Esperamos que as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entendam a importância de darem efetividade ao dispositivo legal.


[1] FOGUE, Miguel Nathan e RUSSO, Felipe Mendonça. Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados – IPEA. Decomposição e projeção da taxa de participação do Brasil utilizando o modelo idade-período-coorte, 1992 a 2030. In: Mercado de trabalho, conjuntura e análise, n. 25: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/mercadodetrabalho/190515_bmt_66_NT_decomposicao_e_projecao.pdf

[2] Somatória dos dados obtidos em Painel de Dados 2021/1 e 2020/2, disponível em: Painel de dados da ONDH — Português (Brasil) (www.gov.br)

[3] LOUREIRO, Paulo RA. A Violência Doméstica Causa Diferença Salarial entre Mulheres?. No prelo.

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