Vanessa Vilela Berbel

Metrópole, o clássico filme do austríaco Fritz Lang, roteirizado em parceria com Thea von Harbou, passa-se em 2026 e tem como protagonista um robô, Maria (Brigitte Helm), que tem como objetivo semear a discórdia entre os trabalhadores em um mundo devastado pelos paradoxos do capitalismo. Bem, estamos em 2021 e, ainda que muito avançada a inteligência das coisas, eu não tive a oportunidade de duvidar se meus interlocutores eram humanos ou máquinas…Metrópole ainda parece ser uma realidade bastante distante.

Enquanto isso, continuamos morrendo e nascendo pelos métodos tradicionais, contando com um apoio ou outro da ciência para superação de algumas barreiras biológicas. Portanto, provavelmente você que lê esse artigo nasceu de uma mulher de carne e osso, a qual deve ter precisado de apoio hospitalar e médicos para que isso ocorresse.

Todavia, para que uma mulher tenha o assessoramento de saúde ao parto no Brasil, exceto se contar com o sistema de saúde público, deverá programar o pagamento antecipado de um adicional do seu plano de saúde. E veja, não pagará pelo serviço de saúde, pagará pelo risco de ficar grávida, visto que há carência ao uso dos serviços.

A Lei 9.656/98 prevê a segmentação dos planos de saúde segundo a amplitude de cobertura, prevendo as seguintes categorias: (i) plano referência, (ii) ambulatorial, (iii) hospitalar sem obstetrícia, (iv) hospitalar com obstetrícia e (v) odontológico.

O plano-referência, previsto no artigo 10 da Lei, consiste no “pacote completo” da assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos realizados no Brasil, centro de terapia intensiva, ou similar, e internação hospitalar; todavia, ao lado desta modalidade, faculta-se a venda das demais modalidades listadas acima, incluindo o atendimento hospitalar com e sem obstetrícia.

Ressalva-se que desde o Projeto de Lei n° 4.425, DE 1994 (Do Senado Federal) PLS 93/93 já se proibia a exclusão de cobertura de despesas com tratamento de determinadas doenças em contratos que asseguram atendimento médico-hospitalar pelas empresas privadas de seguro-saúde ou assemelhadas, ressalvando a possibilidade de exclusão da cobertura obstétrica. Não se trata, pois, de alteração legislativa recente.

O segmento hospitalar tem função de conferir cobertura de serviços em regime de internação (sendo vedado o limite de tempo), facultando-se a inclusão de cobertura da assistência ao parto (obstetrícia), que poderá ter até 300 dias de carência para partos a termo, ou seja, partos dentro do tempo convencional de gestação. Ou seja, apenas partos de bebês prematuros estão cobertos quando, contratado o adicional de obstetrícia, não esteja completada a carência.  

Ademais, a quem paga o adicional de obstetrícia é facultada a cobertura assistencial ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, ou de seu dependente, durante os primeiros trinta dias após o parto, seja o adicional pago pelo pai ou pela mãe. Mas veja, nada disso lhe será garantido se, antes de pensar em engravidar, os genitores já não tiverem previsto o risco “gravidez” e aderindo ao adicional.

Se de um lado a obstetrícia é tratada como uma opção a quem prospecte ser genitor/genitora, de outro a Resolução Normativa nº 167 da ANS tornou obrigatória, a partir de 2 de abril de 2008, a cobertura de procedimentos para anticoncepção (DIU, vasectomia e ligadura tubária).

Não se nega que existam métodos contraceptivos que permitem a programação familiar, mas, ao que nos parece, a legitimação legal da exclusão da obstetrícia dos planos de saúde se trata de política pública que, muito além de objetivar reduzir os ônus financeiros dos que não almejem a maternidade/paternidade, impõe à mulher o ônus de planejá-la por meio de métodos contraceptivos naturais ou artificiais, ao viabilizar a carência de trezentos dias para a cobertura.

De fato, não podemos programar a doença, por isso o legislador impediu que se extraia a cobertura a doenças e lesões, inclusive as preexistentes; contudo, quanto à gravidez, podemos impor a responsabilidade por sua programação a partir de métodos contraceptivos (naturais ou não) e penalizar, com a exclusão de cobertura, aos que não o utilizam? Ainda, trata-se de pena ou de incentivo ao planejamento familiar responsável?

Conforme artigo 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade [maternidade] responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

A Lei 9656/98 deve dialogar, pois, com a Lei 9263/96, a qual regula o planejamento familiar, direito de todo cidadão e parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde; com base nestas disposições, tem-se que compete ao Estado a garantia de direitos iguais de reprodução ao homem e à mulher, orientado por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade, exigindo-se, como contrapartida a responsabilidade no ato de reprodução, sem, contudo, a exclusão de cobertura e assistência à saúde materna quando as formas de previsão e educação falhem. Os serviços de saúde suplementar necessitam prever métodos que, resguardando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, viabilizem o exercício do direito à maternidade saudável.

BRASIL. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Disponível em: L9263 (planalto.gov.br)

BRASIL. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1996. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Disponível em L9656 (planalto.gov.br)

*Vanessa Vilela Berbel é coordenadora-geral do Sistema Integrado de Atendimento à Mulher (Ligue 180) do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Doutora (PUC/SP) e mestre (USP) em Filosofia e Teoria geral do Direito, graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professora adjunta do Instituto Federal do Paraná e

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