Eduardo Molan Gaban

Apesar de o termo “know-how” não ser utilizado em textos legais ou em normativas do Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, a sua tutela é de extrema importância no contexto das normas de proteção à propriedade industrial, uma das facetas de proteção à propriedade intelectual.

Traduzido como “saber fazer alguma coisa”, ou “saber fazer alguma coisa que não é de domínio público”, o know-how é protegido na medida em que se refere aos conhecimentos, tecnologias, dados ou métodos técnicos passíveis de valoração econômica dotados por alguma pessoa específica.

Não é novidade que aquele que detém técnicas e tecnologias do negócio se destaca no mercado. Por isso, a Lei de Propriedade Intelectual (Lei nº 9.279/96) protege as informações e os segredos industriais que não são de conhecimento público ou evidentes para um técnico no assunto, e sanciona a conduta de quem utiliza, sem autorização, o know-how a que teve acesso durante a relação contratual[1].

Na prática, isso quer dizer que está sujeito às penas de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa quem praticar alguma das ações descritas no caput do artigo 195 da LPI. Porém, até que ponto pode-se considerar que houve apropriação indevida de know-how obtido no âmbito da relação contratual?

Esta foi a controvérsia discutida no Recurso Especial nº 1.727.824, no qual figurou como recorrente a Campari Do Brasil LTDA. (“Campari”) e como recorrida a Distillerie Stock Do Brasil LTDA. (“Stock”).

No caso, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça reformou acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e, por unanimidade, rejeitou o pedido de indenização feito pela Stock em razão de suposto uso indevido de seu know-how pela Campari.

Na ação de indenização que deu origem ao recurso, a Stock argumentou que manteve contratos para distribuir no Brasil a bebida fabricada pela Campari, a qual, após 30 anos de relacionamento comercial, decidiu não renovar o acordo, causando-lhe prejuízos. A Stock alegou ainda que a Campari, ao passar a fazer ela mesma a distribuição de seu produto no país, teria se apropriado de informações sobre organização de vendas e cadastro de clientes que integravam o know-how da antiga distribuidora, o que caracterizaria concorrência desleal.

Alegou, assim, que foi vítima de atividade lesiva por parte da Campari, a qual teria se apropriado de sua organização de vendas e de seu cadastro de clientes, impondo condições comerciais injustificáveis, com abuso de direito e abuso de poder econômico. O pedido foi julgado improcedente em primeiro grau, sob o fundamento de que não foi demonstrado nenhum abuso nos contratos, os quais foram devidamente assinados pelas partes.

Após apelação por parte da Stock, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) entendeu que a Campari utilizou, de forma não autorizada e sem a devida remuneração, o know-how desenvolvido pela Stock.

Posteriormente, o TJSP determinou também o retorno dos autos à origem para que identificassem os elementos integrantes do know-how, qualificados como secretos e originais, que teriam sido supostamente apropriados pela Campari, a fim de se determinar se estes se incluem ou não em eventual proteção legal ou contratual.

O TJSP, mesmo assim, apenas reafirmou que o know-how supostamente apropriado estaria centrado, simples e genericamente, nos conhecimentos em vendas e na atividade de distribuição exercida pela Stock. Ou seja, a decisão deixou de identificar, pontualmente, qual a técnica de distribuição de produtos que seria original e/ou eventualmente secreta, ou seja, que ultrapassasse dos conhecimentos e informações já conhecidas em função do exercício legítimo do seu poder de controle na qualidade de fornecedor sobre o seu distribuidor exclusivo.

O STJ, por sua vez, decidiu que não foi possível identificar apropriação indevida de segredo industrial diante da ausência de delimitação pelo TJSP dos elementos de know-how da Stock que teriam sido utilizados indevidamente pela Campari.

O Ministro Relator do voto condutor, Ricardo Villas Bôas Cueva, decidiu que o Tribunal de origem não identificou nenhum elemento ou técnica distintiva original ou protegida por sigilo, legal ou contratualmente, a indicar apropriação indevida de know-how, de tal forma que a organização de lista de clientes ou a dinâmica de vendas transferida contratualmente não tem o condão de embasar pedido indenizatório.

Na sua fundamentação, aduziu que “a formação de clientela está normalmente associada às estratégias de marketing utilizadas pelo fabricante, à qualidade do produto e à notoriedade da marca, e não ao esforço e à dedicação do distribuidor”, mencionando um outro precedente da Terceira Turma sobre o mesmo tema (REsp nº 1.605.281/MT).

Em conclusão, o STJ decidiu, unanimemente, que não é devida indenização pela alegada apropriação indevida de know-how por não se verificar fato que escape a essa regra, vez que as informações alegadamente utilizadas estão dispostas em contrato celebrado entre as partes, por meio do qual a Stock se obrigou expressamente a fornecê-las.

Da análise do caso, observa-se que a decisão do STJ foi pautada em três principais pontos: (i) ausência de identificação, pelo Tribunal de origem, dos elementos ou técnicas distintivas originais ou protegidas por sigilo a indicar apropriação indevida de know-how; (ii) disposição das informações supostamente utilizadas indevidamente no contrato celebrado entre as partes, por meio do qual a Stock se obrigou a fornecer; e (iii) formação de clientela associada às estratégias do fabricante, qualidade do produto e notoriedade da marca, não pelo esforço e dedicação do distribuidor.

Conforme doutrina utilizada pelo próprio ministro relator do caso, “O know-how pode ser compreendido como arte empresarial e como conhecimento técnico e dinâmico, mas o aspecto distintivo, para o direito, é a existência de um segredo, de modo que a tutela jurídica do know-how se dá não porque é know-how, mas porque é segredo”[2].

Assim, na prática, o relator, acompanhado pelos demais membros da Terceira Turma do STJ, debruçou-se sobre a existência ou não de violação de segredo de negócio – o qual, no caso específico, não se comprovou existir, uma vez que o contrato firmado entre as partes previa expressamente o compartilhamento das informações supostamente utilizadas indevidamente pela Campari.

Com esse resultado, que encerra quase duas décadas de litígio, a Campari não mais indenizará a Stock no valor de cerca de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais) por contrato firmado na década de 70.


[1] Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: (…) XI – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato (…).

[2] ROSSI, Juliano Scherner. Análise Econômica do Know-How, in: Direito e Economia I, ISBN: 978-85- 68147-73-3. Disponível em: https://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=075a0fee1ce99f7d. Acesso em: 25 de abril de 2022.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *