Luiz Alberto Esteves
Em janeiro de 2021 foi publicada na prestigiosa publicação acadêmica Review of Industrial Organization uma edição especial, intitulada “The 2010 Horizontal Merger Guidelines After 10 Years”. A edição especial traz uma coletânea de artigos que busca avaliar a experiência acumulada da análise de atos de concentração (AC’s) nos EUA após dez anos da publicação do Horizontal Merger Guidelines (2010 Guidelines) do U.S. Department of Justice (DOJ) e do Federal Trade Commission (FTC).
Tal documento equivale ao Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE, que é uma publicação mais recente (2016), cuja elaboração foi influenciada pelas inovações trazidas pelo Horizontal Merger Guidelines norte-americano de 2010. Como os EUA acumulam maior tempo de experiência com tais inovações, importante acompanharmos qualquer discussão acerca de avaliações de impacto. Contudo, este não é o objetivo de análise do presente artigo.
Em ambos os casos – EUA e Brasil – a publicação de tais documentos representou uma atualização de versões pretéritas. No caso dos EUA, a versão de 2010 substituiu a versão de 1997. No caso do Brasil, a versão de 2016 substituiu a Portaria Conjunta SEAE-SDE n 50 de 01/08/2001. As inovações introduzidas com as novas versões foram substanciais para ambos os casos.
Considero que a maior destas inovações tenha sido a discussão metodológica em torno da possibilidade de análise econômica de AC’s sem delimitação de mercado relevante antitruste. Pelo teor dos artigos publicados na edição especial da Review of Industrial Organization, parece que esse aspecto também tenha sido considerado especialmente importante para aquela jurisdição.
Para muitos profissionais que militam na área concorrencial, a ideia de uma análise econômica de AC’s sem delimitação de mercado relevante antitruste soa bastante desconfortável. Por outro lado, para um grupo menor de profissionais, formado majoritariamente por economistas, essa possibilidade parece ser bastante atrativa. O principal documento de referência para este segundo público não é exatamente o Horizontal Merger Guidelines de 2010, mas um artigo bastante influente de autoria de Joseph Farrell e Carl Shapiro, intitulado “Antitrust Evaluation of Horizontal Mergers: An Economic Alternative to Market Definition”, publicado também em de 2010 no periódico acadêmico The B.E. Journal of Theoretical Economics, Volume 10 (1).
Ambos os autores são professores do departamento de economia da Universidade da Califórnia, Berkeley e na ocasião da publicação (2010) vinham exercendo diferentes posições nos altos escalões das estruturas hierárquicas do FTC e do DOJ. A proposta fundamental do artigo foi servir como material de insumo para as discussões em torno da elaboração da nova versão Horizontal Merger Guidelines, que viria a ser publicada naquele mesmo ano.
Farrell e Shapiro buscavam endereçar algumas das limitações da análise econômica de AC’s baseada nas noções de mercados relevantes, índices de concentração e testes do monopolista hipotético (denominaremos essa modelagem analítica de TMH). Adicionalmente, trouxeram métodos alternativos de análise, com destaque para o modelo Upward Pricing Pressure (UPP). O objetivo não era substituir a modelagem TMH pela modelagem UPP, mas introduzir um novo conjunto de ferramentas analíticas alternativas e complementares.
Neste sentido, faz-se necessário compreender as razões pelas quais a modelagem UPP conseguiu angariar entusiastas ao redor do mundo. Em termos práticos, um dos principais “testes de estresse” de qualquer autoridade concorrencial é chegar a uma decisão sobre um AC quando não há consenso dentro da própria autoridade acerca da correta ou adequada delimitação do mercado relevante antitruste.
O problema é que os mercados são entidades abstratas, onde são realizadas trocas de bens e serviços, que nem sempre podem ser facilmente discriminadas e alocadas dentro de grupos taxonômicos bem definidos (com base em produto e geografia). Nestes casos, a imposição de alguma regra discricionária costuma ser necessária. Em muitas ocasiões esse procedimento costuma funcionar muito bem, principalmente em AC’s sumários. Por outro lado, em um pequeno número de situações (uma fração dos AC’s complexos), esse procedimento pode implicar em elevado grau de incerteza e frustração. Um segundo problema é que isso costuma ocorrer nos AC’s de maior projeção e visibilidade. Não são raras as situações nas quais o público leigo interpreta tais excepcionalidades como uma fragilidade técnica recorrente por parte das autoridades concorrenciais.
Ainda a respeito das dificuldades relacionadas à delimitação de mercados relevantes, tomemos como exemplo o caso da classificação oficial das atividades econômicas. Periodicamente os birôs oficiais de estatística atualizam suas classificações (internacionalmente harmonizadas) setoriais por atividades econômicas, agregando cada vez mais segmentos novos de negócios. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é o órgão responsável pelas atualizações da classificação nacional de atividades econômicas (CNAE).
Por exemplo: em 1994 a versão CNAE 1.0 (publicada no Diário Oficial da União em 26/12/1994) era constituída de 17 seções (A-Q). Já a versão CNAE 2.0 (Resolução Concla 01/2006 publicada no Diário Oficial em 05/09/2006) de 2006 trouxe 21 seções (A-U). Em suma: ao longo de 12 anos foram adicionadas 4 novas seções com centenas de novas subclasses de atividades econômicas[1]. Parte desse adicional é representado pela introdução de novos mercados, até então não existentes. Isso é fruto das inovações tecnológicas, evidentemente.
Mesmo reconhecendo que os mercados relevantes antitruste não necessariamente guardam uma relação direta com as CNAE’s, o desafio metodológico em classificar atividades econômicas e mercados relevantes é bastante similar. Uma diferença importante é que os birôs de estatística costumam recorrer à rubrica classificatória de “Outros”, quando estão em “apuros”. Já as autoridades antitruste se esforçam em garantir que cada um dos AC’s analisados tenham os seus mercados relevantes antitruste devidamente delimitados. Se tais delimitações seguirem a jurisprudência, melhor para a autoridade[2].
Uma outra limitação importante na modelagem TMH é que ela carrega uma hipótese implícita bastante restritiva, que deriva do cálculo do índice de concentração de Herfindahl-Hirschman (HHI). Suponha que um mercado relevante antitruste seja delimitado com três empresas (X, Y e Z), cada uma com 1/3 do mercado. O HHI neste caso hipotético seria de 3.334 pontos. Já os eventuais Delta HHI’s decorrentes dos AC’s envolvendo as empresas X e Y; ou Y e Z; ou X e Z; seriam exatamente os mesmos, sugerindo assim que qualquer um destes AC’s implicaria em efeitos unilaterais e coordenados muito similares.
Suponha agora que quando a empresa X eleva seu preço em 2%, sua demanda é reduzida em 100 unidades, sendo desviada de forma integral para seus dois concorrentes, Y e Z. Adicionalmente, suponha que 67 unidades destas 100 unidades sejam desviadas para a empresa Y e 33 unidades para a empresa Z. O exemplo sugere que, mesmo que cada empresa disponha de uma parcela idêntica de mercado, isso não assegura que sejam competidores simétricos, tampouco que a rivalidade exercida de Y sobre X seja igual a rivalidade exercida de Z sobre X. Logo, um AC envolvendo as empresas X e Y traria implicações completamente diferentes daquelas decorrentes de um AC entre X e Z. As análises de HHI e Delta HHI não são capazes de capturar essa assimetria de rivalidade entre players dentro de um mesmo mercado relevante. Tampouco é fácil identificar claramente quando um determinado nível de assimetria entre os diferentes players justifique a redefinição do mercado relevante.
A grande contribuição de Farrell e Shapiro (2010), com seu modelo UPP, foi ter trazido um instrumental analítico alternativo, que dispensa a delimitação de mercados relevantes antitruste, bem como o uso de medidas de concentração, tais como o HHI. A metodologia UPP busca inferir a pressão de preço decorrente de um AC por meio de estimativas estatísticas e econométricas das taxas de desvio (diversion ratios). Essa taxa de desvio (diversion ratio) é definida, por exemplo, como a proporção da demanda desviada do produto X e capturada pelo produto concorrente Y, em resposta de um aumento de preço do produto Y.
Não parece haver muita divergência entre os economistas de que a modelagem UPP é um recurso bastante potente, uma vez que providencia estimativas customizadas de pressão de preços para cada um dos AC’s sob escrutínio da autoridade. Outra vantagem da modelagem UPP é sua versatilidade, pois pode ser aplicada a qualquer tipo de modelo de estrutura concorrencial em oligopólio. Foi originalmente concebida para ser utilizada em modelos de competição preço com produtos diferenciados (Bertrand Competition), mas pode ser igualmente utilizada em modelos de competição em quantidades com produtos homogêneos (Cournot Competition).
Se por um lado, a potência e versatilidade da modelagem UPP a torna muito mais atrativa que qualquer modelo baseado na modelagem TMH; por outro lado, seria economicamente inviável para qualquer autoridade antitruste usá-la em larga escala em suas análises de AC’s. A modelagem UPP demanda coleta de informações pormenorizadas e séries históricas de receitas, custos, quantidades e preços de ambas as partes do AC, além de outras informações complementares de mercado. Adicionalmente, faz-se necessária a estimativa econométrica das demandas e elasticidades próprias e cruzadas, o que não é uma tarefa das mais triviais, até mesmo para as autoridades mais bem preparadas e equipadas com recursos humanos e materiais.
Mesmo com suas limitações, as análises baseadas em mercado relevante, HHI’s e TMH parecem atender de forma bastante satisfatória (com baixo custo e parcimônia analítica) a grande maioria dos AC’s analisados pelas autoridades concorrenciais ao redor do mundo. Contudo, para uma minoria de casos de grande complexidade, tal instrumental analítico tende a perder potência pelos motivos já mencionados anteriormente. Para essa minoria de casos complexos, a utilização da modelagem UPP como recurso analítico complementar parece ser o protocolo mais adequado a ser seguido pelas autoridades concorrenciais.
[1] Uma CNAE é representada por diferentes níveis de agregações setoriais, sendo Seção, Divisão, Grupo, Classe e Subclasse. Exemplo: Seção A – AGRICULTURA, PECUÁRIA, PRODUÇÃO FLORESTAL, PESCA E AQÜICULTURA; Divisão 01 – AGRICULTURA, PECUÁRIA E SERVIÇOS RELACIONADOS; Grupo 01.1 – Produção de lavouras temporárias; Classe 01.11-3 – Cultivo de cereais; e Subclasse 0111-3/01 – Cultivo de arroz.
[2] Imagino que nesse ponto o leitor já tenha percebido que o argumento de jurisprudência na delimitação de mercados relevantes costuma causar bastante estranheza e desconforto entre estatísticos e economistas habituados com discussões acerca das atualizações periódicas do sistema internacional harmonizado de classificação de atividades econômicas.