Fernanda de Magalhães Furlan

Apesar da redução de barreiras ao comércio internacional ser condição necessária para diminuir o poder de mercado de oligopólios domésticos, não é condição suficiente quando há empresas com poder de mercado em nível mundial[1].

Neste contexto, é assente o importante papel desempenhado pela defesa comercial no esforço de combate às nocivas práticas internacionais de comércio desleal. Aliás, as medidas de defesa comercial impostas num ano pelo Brasil, bem como na maior parte dos países membro da OMC[2], correspondem historicamente a percentuais inferiores a um por cento (1%) das importações totais do país no período. Ou seja, o impacto das medidas de defesa comercial é irrelevante quando inseridas no contexto do total das importações brasileiras, ou de qualquer player relevante no comércio internacional.

Uma política eficaz para aumentar a inserção internacional do país e “abrir a economia” ao mercado externo seria, por exemplo, a redução de tarifas de importação, como, aliás, foi questão relevante da agenda econômica da disputa presidencial de 2018.  Isso porque as importações de bens e serviços pelo Brasil somaram apenas 15,5% do Produto Interno Bruto em 2020[3].

Parece, infelizmente, e com o devido respeito, haver uma visão distorcida em setores do Poder Executivo sobre os objetivos e a utilidade dos instrumentos de defesa comercial. Como visto, uma simples redução unilateral de tarifas melhor resolveria o problema da “agorafobia comercial”[4] do Brasil, do que um acinte retórico sobre mecanismos de defesa contra práticas desleais.

As importações nem sempre são uma ameaça. Na verdade, elas somente são sancionáveis quando realizadas a preços artificiais (dumping ou subsídios) e capazes de gerar dano/prejuízo à indústria doméstica. Ou seja, não são todas as importações que são atingidas pelos instrumentos de defesa comercial, mas somente aquelas em que há prática desleal de comércio (preços artificialmente baixos).

No Brasil, inclusive, há ainda a utilização obrigatória da lesser duty rule (regra do menor direito), que determina a aplicação do direito antidumping apenas em medida suficiente a eliminar o dano à indústria doméstica.

É sempre bom atentar para o fato de que, independentemente do poder de mercado da indústria nacional, a não aplicação de medidas de defesa comercial poderá significar, de outro modo, a consolidação de poder de mercado de oligopólios internacionais e, no longo prazo, o próprio desaparecimento da produção nacional.

A participação do CADE e da SEAE/ME nas discussões de comércio exterior[5], no âmbito institucional da CAMEX, é bem-vinda. Ela serve para contribuir com informações e dados que possam resultar no aumento da competitividade da economia brasileira. Porém, não deve ser uma participação de mão única, ou seja, o CADE também deve instar as autoridades de comércio a atuar para o bom funcionamento do mercado interno e para a saúde da concorrência[6] no Brasil.

A opinião dos integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (CADE e SEAE/ME) nas análises de interesse público em defesa comercial é construtiva, contudo, sua participação também na própria análise de dano e nexo causal parece ser dispensável e até invasiva.

Infelizmente, a ofensiva contra os instrumentos de defesa comercial é perene, como se eles incorporassem a própria essência do mal, chamado protecionismo. Pois o Ministério da Economia, vem publicando regulamentações que dispõem sobre questões afetas à defesa comercial e, em especial, ao antidumping, que inovam onde não haveria espaço para tanto, consideradas as leis atualmente em vigor.

Tais propostas contêm disposições que extrapolam parâmetros do Acordo Antidumping da OMC[7]. Elas concebem critérios inovadores de análise e aplicação de direitos antidumping, sem amparo no Acordo da OMC e que não são adotados por qualquer outro país membro da organização, enfraquecendo posições negociadoras do Brasil e diminuindo, na sua própria essência, os atuais instrumentos de defesa comercial contra práticas desleais de comércio, fruto de extensas negociações no seio do GATT/OMC.

Além disso, as regras da OMC foram internalizadas no Brasil por meio da Lei nº 9.019/95 e Decreto nº 1.355/94, não podendo ser alteradas por simples portarias do Ministério da Economia. As competências das secretarias do Ministério da Economia são de regulamentar os procedimentos relativos às investigações de defesa comercial e às avaliações de interesse público, desde que, naturalmente, não extrapolem ou contrariem o estabelecido em legislação de hierarquia superior.

A Lei da Concorrência (Lei 12.529/11), por exemplo, em seu artigo 119, dispõe não ser ela aplicável “aos casos de dumping e subsídios de que tratam os Acordos Relativos à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, promulgados pelos Decretos nº 93.941 e 93.962[8], de 16 e 22 de janeiro de 1987, respectivamente”.

Não parece legítimo, portanto, que se busquem, de forma enviesada, os mesmos efeitos proibidos pelo legislador. Ou seja, ao aplicar conceitos e, em especial, parâmetros de análise, típicos da investigação antitruste, aos processos e procedimentos de defesa comercial, estaríamos desobedecendo a própria Lei Antitruste.

De acordo com o artigo 3.4 do Acordo Antidumping, da OMC, o exame do impacto das importações a preços de dumping sobre a indústria nacional correspondente deverá incluir a avaliação de todos os fatores e índices econômicos relevantes que tenham relação com a situação da referida indústria, inclusive queda real ou potencial das vendas, dos lucros, da produção, da participação no mercado, da produtividade, do retorno dos investimentos ou da ocupação, da capacidade instalada, fatores que afetem os preços internos, a amplitude da margem de dumping, efeitos negativos reais ou potenciais sobre o fluxo de caixa, estoques, emprego, salários, crescimento, capacidade para aumentar capital ou obter investimentos. Tais fatores, contudo, não são exaustivos, nem poderão, isoladamente ou em conjunto, ser tomados necessariamente como indicação decisiva.

Contudo, parece haver alguma confusão quando passam a se utilizar parâmetros de investigação antitruste, em investigações de defesa comercial, ao invés de simplesmente considerar um (participação de mercado), entre vários critérios de análise de dano. Ao se socorrer de parâmetros[9] de análise antitruste para as investigações de dano, em defesa comercial, a autoridade competente está utilizando premissas invertidas.

Ao não aplicar direitos antidumping, comprovadamente cabíveis, a um setor da indústria nacional, simplesmente por considerá-lo concentrado ou porque esteja sendo investigado por comportamento anticompetitivo; a autoridade governamental, com todo o respeito, está promovendo uma intromissão desnecessária e ilegítima, pois, tal controle de concentração de mercado deve ser prévio e realizado pelo CADE e qualquer punição/sanção às empresas deve se dar dentro do processo respectivo e não fora dele.

Não há dúvidas dos avanços que vem sendo feitos pelo Ministério da Economia, por meio da Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) em relação à processualidade[10] e à transparência, tanto nas investigações de defesa comercial, quanto nas análises de interesse público.

Tais avanços não devem ser obscurecidos por ofensivas deliberadas sobre os instrumentos de defesa comercial, como se fossem medidas ilegítimas e protecionistas, tanto mais quando se utilizam para tanto, parâmetros estranhos à tradicional análise de dumping/subsídios, dano e nexo causal.


[1] MATTOS, César. Harmonização das Políticas de Defesa da Concorrência e Comercial: Questões Teóricas e Implicações para o Mercosul, Alca e OMC. Disponível em: http://www.iadb.org/intal/intalcdi/PE/2008/01184.pdf. Acessado em: 26/02/2014.

[2] Na União Europeia, por exemplo, todas as medidas antidumping e compensatórias em vigor no final de 2006 correspondiam a somente 0,6% do volume total de importações do bloco. Apud MUELLER, Wolfgang et al. EC and WTO Anti-Dumping Law: A Handbook. 2a ed. Oxford. 2009.

[3] Disponível em: https://data.worldbank.org/indicator/NE.IMP.GNFS.ZS?name_desc=false. Acesso em: 30/01/2022.

[4] A agorafobia é caracterizada por sintomas como medo e ansiedade de viver situações que fogem do controle e causam constrangimento em meio a locais abertos, reunião de pessoas e multidões. O termo “agorafobia comercial” indica o receio de um país em abrir a sua economia ao mercado externo.

[5] O artigo 22, inciso VIII, da Constituição Federal dispõe competir privativamente à União legislar sobre comércio exterior.

[6] O artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal elege a livre concorrência como princípio geral da atividade econômica.

[7] Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 30/94 e promulgado pelo Decreto no 1.355/94, bem como o disposto na Lei nº 9.019/95, na parte que dispõe sobre a aplicação das medidas previstas no Acordo Antidumping.

[8] De acordo com o artigo 49 da Constituição Federal, compete ao Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados”, por meio de processo legislativo próprio, que culmina com a publicação de decretos do presidente da República, que insere os tratados na legislação brasileira, no nível de lei federal (exceto para tratados sobre Direitos Humanos, cuja estatura é de emenda constitucional).

[9] Parâmetros são princípios e regras a serem considerados na estruturação ou equacionamento de um dado problema, sistema de problemas ou situação.

[10] A processualidade é a instrumentalidade metodológica construída a partir dos conflitos existentes na sociedade para se chegar ao processo e procedimento adequados para solucioná-los, de modo a obter a tutela processual e de direitos, em caráter efetivo e justo. 

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