Fernando de Magalhães Furlan
Em 2018, CADE e Banco Central do Brasil publicaram o Ato Normativo Conjunto nº 01[1], que estabeleceu procedimentos para harmonizar e tornar mais eficientes as respectivas ações em atos de concentração e na defesa da concorrência no âmbito do Sistema Financeiro Nacional (SFN).
O art. 3º, III, do Ato Normativo Conjunto n° 01/2018, dispõe que o BCB e o CADE, observado o dever de sigilo, manterão comunicação e intercâmbio de dados e informações que permitam, dentre outros, a apuração de indícios de infrações concorrenciais verificadas, inclusive com disponibilização de documentação comprobatória.
Já o art. 40 do mesmo ato normativo conjunto, prevê que o BCB e o CADE reunir-se-ão, sempre que necessário, para discussão de temas que possam ensejar ação normativa com impactos concorrenciais em mercados e instituições submetidas à supervisão ou vigilância do BCB; e cooperação técnica no âmbito de processos administrativos no controle de atos de concentração e na apuração de infrações à ordem econômica, envolvendo instituições supervisionadas pelo BCB, inclusive com a participação dessas.
A boa cooperação entre o regulador do sistema financeiro e a autoridade da concorrência foi considerada tão crucial, que o Senado Federal tomou a iniciativa e aprovou projeto de lei complementar (PLP)[2] que dispõe sobre a defesa da concorrência no âmbito de atuação das instituições financeiras e demais instituições sujeitas à supervisão ou à vigilância do Banco Central do Brasil e sobre a cooperação e a partilha de competências entre o Banco Central do Brasil e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em matéria concorrencial. A proposta legislativa, que ora tramita na Câmara dos Deputados, está parada na Coordenação de Comissões Permanentes há mais de três anos[3].
O parágrafo único do artigo 2º do PLP prevê, inclusive, que o Banco Central do Brasil e o CADE mantenham fórum permanente de comunicação, por meio de acordo de cooperação técnica.
Em que pese a importância e essencialidade do trabalho da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE), do Ministério da Economia, o CADE, enquanto autarquia federal, dotada de poder de polícia, e, portanto, com capacidade de intervenção ou sanção a agentes econômicos, públicos ou privados, é responsável último pela advocacia da concorrência no país.
Assim, ainda que a SEAE possa desempenhar papel de grande relevância na relação entre o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e o Sistema Financeiro Nacional (SFN), é ao CADE que cabe a palavra final quanto à Lei de Defesa da Concorrência e à aplicação da política pública respectiva, ressalvados casos de ilegalidade ou desproporcionalidade que poderão ser revistos pelo Poder Judiciário[4].
O certo é que a advocacia da concorrência perante o Sistema Financeiro Nacional tem sido tímida, em que pese iniciativas louváveis do próprio Banco Central do Brasil e do Congresso Nacional, que incluem, por exemplo, o Cadastro Positivo[5] de usuários, o Open Banking[6] e o PIX[7].
Políticas de acesso ao crédito, transparência e desregulamentação do mercado financeiro são cruciais para o incremento da concorrência e, consequentemente, do crescimento econômico sustentado. Sem a capacidade de financiar o seu desenvolvimento e crescimento, as empresas estariam fadadas a permanecerem pequenas, sem acesso ao natural processo de evolução econômica.
A garantia de acesso rápido a crédito e a transações financeiras de baixo custo tem, assim, o potencial de multiplicar a atividade econômica, aumentando a eficiência e a competitividade.
O caso dos Meios de Pagamento (Maquininhas)
Inquérito administrativo[8] instaurado pelo CADE buscou inicialmente averiguar indícios de que novas credenciadoras de cartões de crédito, recentemente estabelecidas, estariam enfrentando dificuldades impostas pelos incumbentes (instituições financeiras) para o seu desenvolvimento.
As investigações do CADE tinham por objeto inicial as relações de exclusividade remanescentes entre bandeiras de cartões de crédito e as credenciadoras líderes de mercado[9]. O CADE procurava analisar a ocorrência de possíveis condutas anticompetitivas praticadas por agentes já estabelecidos e que estariam limitando ou impedindo o acesso de novos concorrentes ao mercado.
Neste caso dos meios de pagamento, ou das “maquinhas”, com o reconhecimento pelo Banco Central do Brasil dos arranjos de moeda eletrônica, baseados na concepção de uma conta digital de pagamento, que possibilita aos pontos de venda receber valores, independentemente de uma conta bancária, o país afirma uma cultura da concorrência, da inovação e da inclusão financeira, já que, no Brasil, calcula-se haver 15 milhões de “desbancarizados”[10].
As contas digitais, em razão de seus custos reduzidos em relação às contas bancárias tradicionais, permitem que os estabelecimentos recebam pagamentos por meio de cartões, boletos e transferências, aumentando as opções de recebimento, sem qualquer vinculação à atividade de credenciamento.
Além disso, as contas digitais pré-pagas são operadas sem passar pela rede bancária, por meio de arranjos de pagamento das próprias fintechs, exatamente por não envolverem risco monetário, já que, ao contrário dos bancos, não podem captar depósitos de clientes ou atuar no mercado financeiro.
Os resultados dos acordos firmados pelo CADE com as empresas investigadas foram imediatos e expressivos: com a quebra da exclusividade credenciadora/bandeira, a taxa cobrada pelos cartões de crédito caiu 20%, segundo a Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços).
Foi um caso emblemático porque resultou na possibilidade de qualquer vendedor ambulante receber, por meio de uma “maquininha”, via cartão de débito ou crédito, de qualquer bandeira ou credenciadora.
Com isso, incontáveis pequenos negócios, mesmo informais, foram incluídos financeiramente e tiveram os seus negócios fortemente alavancados.
O caso WhatsApp Pay
No Brasil, apesar da institucionalização da cooperação entre o CADE e o Banco Central[11], são visíveis, contudo, os limites de atuação da autoridade da concorrência no sistema financeiro, a exemplo do caso WhatsApp Pay[12].
Uma semana depois do anúncio do lançamento do WhatsApp Pay pelo Facebook, em junho de 2020, o Banco Central do Brasil determinou a suspenção da operação da solução tecnológica, sob a alegação da necessidade de avaliar questões de competição e privacidade. O CADE fez o mesmo, mas depois de avaliar informações enviadas pelos interessados, voltou atrás de sua decisão, ainda no fim de junho de 2020, permitindo a continuidade da operação no Brasil.
Somente em outubro de 2020, o Banco Central do Brasil aprovou a constituição de uma nova modalidade de instituição de pagamento, denominada “iniciador de transação de pagamento”, em que o agente iniciador não participa do fluxo financeiro, categoria na qual o WhatsApp Pay poderia se encaixar.
Assim, finalmente, depois de cinco meses, o WhatsApp Pay pode começar a operar no Brasil, em novembro de 2020.
[1] Disciplina os procedimentos aplicáveis à análise de atos de concentração econômica envolvendo instituições financeiras; e à apuração de infrações à ordem econômica envolvendo instituições sujeitas à supervisão ou vigilância do Banco Central do Brasil.
[2] PLP (Projeto de Lei Complementar do Senado) nº 499/2018. Em tramitação na Câmara dos Deputados.
[3] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2173211. Acesso em: 11/08/2021.
[4] Ver Tema de Repercussão Geral 485 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307111179&ext=.pdf. Acesso em: 11/08/2021.
[5] Os dados utilizados pelos Bureau de Crédito passam a informar a pontualidade do consumidor no pagamento de suas contas e registra compromissos e hábitos de pagamentos, listando os bons pagadores e aqueles que cumpriram seus compromissos em dia. Com o cadastro positivo pode-se verificar, por exemplo, que o atraso é apenas um problema pontual diante do histórico de bom pagador (adimplência) do consumidor. Pessoas que podem ser bons pagadores começam a contratar empréstimos com juros mais baixos ou prazos maiores, deixando de pagar pelo risco de maus pagadores, incentivando o crescimento econômico.
[6] O Open Banking, que entrou em funcionamento em 2021, considera que os dados bancários pertencem aos clientes e não às instituições financeiras. Assim, desde que autorizadas pelo correntista, as instituições financeiras compartilharão dados, produtos e serviços com concorrentes e fornecedores, por meio da abertura e integração de plataformas e infraestruturas de tecnologia. Clientes bancários poderão, por exemplo, visualizar, em um único aplicativo, o extrato consolidado de todas as suas contas bancárias e investimentos. Também será possível realizar transferências de recursos ou pagamentos, sem a necessidade de acessar diretamente site ou aplicativo do banco.
[7] PIX é o meio de pagamento eletrônico instantâneo brasileiro, de baixo custo e segurança. A iniciação de um PIX para uma pessoa física é gratuita. Foi lançado oficialmente em outubro de 2020, com início de funcionamento integral em novembro de 2020. O PIX funciona 24 horas, sete dias por semana, entre instituições financeiras, fintechs e instituições de pagamento. A chave PIX permite que o sistema (SPI) identifique os dados da conta transacional (que é uma conta de depósito à vista, conta de poupança ou conta de pagamento pré-paga) que o usuário mantém na instituição de sua escolha e que foram associados à chave PIX e realize a transação imediatamente. SPI (Sistema de Pagamentos Instantâneos) é a infraestrutura centralizada onde são liquidadas as transferências de fundos comandadas pelos usuários do PIX e pelas próprias instituições participantes do ecossistema PIX quando resultam em transferências de fundos que afetem as contas de pagamentos instantâneos (conta PI) mantidas pelas instituições junto ao Banco Central do Brasil (BC). Conta PI (conta pagamentos instantâneos) é a conta mantida no BC por um participante direto do SPI.
[8] Inquérito Administrativo nº 08700.000018/2015-11. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei//modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_JxjDSl_Nxq63HwR03xJFy9I7_2aEZKTuxj3WRclfAJqL-. Acesso em 03/03/2021.
[9] Cielo, credenciadora Visa para o Banco do Brasil e o Bradesco; e Rede, credenciadora Mastercard para o Itaú-Unibanco.
[10] O Cade, o Banco Central e a guerra das maquininhas. Priscila Brólio Gonçalves. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/05/o-cade-o-banco-central-e-a-guerra-das-maquininhas.shtml?loggedpaywall. Acessado em 27/06/2019.
[11] Ato Normativo Conjunto CADE/BCB n° 01/2018 e Projeto de Lei Complementar (PLP) n° 499/2018.
[12] Lançado em 6 de novembro de 2020, é um meio de transferir dinheiro e que está disponível para todos os usuários do WhatsApp. É mais um recurso para as pessoas fazerem transações financeiras (transferências ou pagamentos). No Brasil, segundo país a contar com esse serviço, calculam-se 120 milhões de usuários, cerca de 60% da população brasileira. O primeiro país a acessar o novo sistema de pagamentos e transferência P2P foi a Índia.