Eduardo Molan Gaban

Em seu discurso de posse como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Ministro Luiz Fux afirmou ser um profissional pragmático e consequencialista.[1] A vertente pragmática ficou clara na decisão do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 1.083.955[2], em que convenceu seus pares da Primeira Turma do STF (ausente o Ministro Luís Roberto Barroso) que a Corte teria “dever de deferência” às decisões técnicas do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em razão da complexidade da matéria concorrencial, da reduzida expertise do Judiciário no tema, da possibilidade de geração de efeitos sistêmicos nocivos à dinâmica regulatória. O agravante buscava reverter a decisão do Ministro Luiz Fux que negou provimento ao seu recurso extraordinário. No recurso, a parte pleiteava que o poder judiciário revisse decisão condenatória do CADE em processo administrativo sancionador pela prática de infração coordenada à ordem econômica (popularmente conhecida como prática de cartel), a qual impôs penas diversas às partes investigadas no respectivo caso concreto. Entretanto, restou decidido que o STF não pode rever a decisão do CADE por não ter expertise para tanto.

A especialização é exceção no atual sistema judiciário brasileiro. Sendo assim, talvez o seguinte atalho seja subjacente à ratio decidendi do STF em referido precedente, bem assim em grande parte das decisões judiciais em situações análogas: melhor é confiar na competência técnica das autoridades administrativas (i.e., “dever de deferência”), como o CADE, a intervir, senão a intervenção jurisdicional (“o remédio”) pode sair pior que “a doença”. Afinal de contas, os recursos são escassos e há uma miríade de processos a julgar versando sobre todos os temas da nação, sobre os quais o judiciário presumidamente possui maior familiaridade. Resultado pragmático e consequencialista: a justiça não exerce o desejável e constitucionalmente previsto judicial review nas decisões administrativas, como as do CADE. Isto potencializa todos os efeitos deletérios dos comprovados fenômenos da captura (George Stigler, Nobel em 1982 – Theory of Economic Regulation) e dos conflitos de interesses (James M. Buchanan, Nobel em 1986 – Teoria da Escolha Pública)[3].

Não há atalho ou solução pragmática que elimine o controle jurisdicional das decisões administrativas, sem contanto gerar consequências negativas às instituições (Douglass C. North, Nobel em 1993 – Institutions). A judicial review é fundamental para o aperfeiçoamento das instituições e maximização dos mandamentos da Constituição. Agora, é inegável que não se viabiliza com o atual modelo generalista de justiça. É necessário especializar a justiça para substituir-se a deferência cega pela constante e eficiente vigilância.

Segundo as melhores práticas em outras jurisdições e conforme recomendações internacionais[4], a implementação de varas especializadas resulta em maior celeridade para a resolução definitiva de mérito dos processos. Além de mais celeridade, a especialização implica maior qualidade técnica às decisões. Tudo isso acaba por gerar decisões mais adequadas (i.e., “cirúrgicas”) para problemas complexos, como os usualmente enfrentados pelo CADE.

O conceito de especialização, é bom frisar, deve abranger o sistema judiciário, não apenas parte dele (os juízes). A ideia deve ser implementada na arquitetura do sistema. Assim, uma vara especializada não se resumiria ao magistrado especializado. Outros servidores públicos com formação interdisciplinar (juristas, economistas, contadores etc.) se especializariam e trabalhariam em conjunto com os magistrados para solucionar o maior número possível de lides e impasses complexos.  

Existem alguns riscos e críticas à especialização da justiça, é bom frisar. O exagero da especialização seria um deles, daí a importância de haver uma combinação de especialidades nas varas (ou melhor, combinação de competências), pois a excessiva especialização tende a inviabilizar sua implementação. Outro problema possível seria a captura dessas varas especializadas por grupos de interesse, sejam órgãos administrativos técnicos cujas decisões são revistas pelas varas, sejam núcleos de poder político ou poder econômico.

A primeira solução para esse problema da captura é o aprimoramento dos já existentes mecanismos de governança, transparência e gestão. Nesse sentido, por exemplo, o Conselho da Justiça Federal (CJF) instituiu, em agosto de 2020, o Guia de Governança e Gestão do Conselho e da Justiça Federal de 1º e 2º graus[5]. Agora, a segunda solução para o problema da captura seria criar um sistema de rotatividade entre os juízes e servidores das varas.

Há quem defenda com afinco que a captura seria o principal risco a afastar a especialização da justiça. Ledo engano. Essa captura já ocorreria nas varas generalistas, nas quais o juiz e os servidores tendem a sucumbir à “tentação” da deferência pela expertise técnica referida na infeliz decisão do STF no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 1.083.955.

Como já apontado em artigo passado de nossa autoria[6], o argumento da captura foi levantado nos EUA, nos anos 1900, quando houve a criação de um tribunal de apelação especializado em litígios envolvendo patentes e comércio internacional, o qual, em 1922, passou a abarcar todos os litígios relativos a direitos de propriedade intelectual. Em razão dessa especialização, os EUA se transformaram em uma potência da propriedade intelectual, com jurisdição segura e previsível sobre esse tema. Diversos países acabaram copiando esse modelo, obtendo sucesso em investimentos e inovações[7].

Ainda no âmbito internacional, existem diversos e exitosos exemplos de tribunais, varas ou entidades mistas (que combinam juízes e autoridades administrativas) especializadas em direito concorrencial[8]. No Reino Unido, existe a Competition Appeal Tribunal, responsável por julgar apelações sobre o mérito de decisões proferidas pela Competition and Markets Authority. No Chile, há o Tribunal de Defensa de La Libre Competencia, com competência para julgar os casos trazidos pelo Fiscalía Nacional Económica ou por agentes privados. No México, depois da reforma constitucional de 2013, as decisões proferidas pela Comisión Federal de Competencia Económica e pelo Instituto Federal de Telecomunicaciones podem ser revistas pela primeira e segunda Corte Distrital Especializada. No Canadá, o Competition Tribunal pode rever as decisões proferidas pela Competition Bureau of Canada. Na Austrália, o Australian Competition Tribunal julga as apelações contra as decisões proferidas pela Australian Competition and Consumer Commission.

Já no Brasil, a especialização da justiça é fortemente recomendada pelo CNJ[9] e alguns Tribunais já vêm estudando e adotando tais inovações. Cite-se, como exemplo, a criação em 2017 de grupo de trabalho para estudo da pertinência da implementação de varas especializadas em direito da concorrência e comércio internacional no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3)[10]. Todavia, talvez pelo desenho institucional das competências (concorrência e comércio internacional), esse projeto do TRF3 não saiu do papel até o presente momento.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) criou em novembro de 2020, na capital, duas varas especializadas em crimes tributários, organização criminosa e lavagem de bens e valores.[11] Tais varas são competentes para o julgamento de crimes como práticas de cartel, dentre outros. Também há varas especializadas criminais com similar desenho de competências em outros Tribunais Estaduais, como por exemplo no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG)[12], Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ)[13], Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MT), Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL), Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA), Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), Tribunal de Justiça de Roraima (TJ-RR) e Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC).

Em âmbito federal, com um desenho de competências um pouco mais restrito (não abrange, em princípio, os crimes contra a ordem econômica e financeira – Lei nº 8.137/90), determinou-se em 2019 a criação de varas especializadas no âmbito dos Tribunais Regionais Federais da 1ª, 2ª e 5ª Regiões[14] [15]. Tudo em atenção à Recomendação nº 3 de 2006 do CNJ, para a especialização de varas criminais para processar e julgar delitos praticados por organizações criminosas.[16]

No Direito Antitruste, o controle de condutas é uma espécie de atividade sancionatória que se submete aos princípios e regras do direito penal e do direito processual penal. Logo, pode ser entendido como um nicho do direito penal. Além desse fato, as práticas anticompetitivas coordenadas (popularmente conhecidas como cartéis) são também tipificadas como crime (art. 4º, I e II, da Lei nº 8.137/90, somadas às previsões contidas na Lei de Licitações – Lei nº 14.133/21). O combate aos cartéis representou desde o início da vigência da Lei Antitruste (em outubro de 1994, com a publicação da Lei nº 8.884/94) grande parte da atuação repressiva do CADE. Em 2018, por exemplo, mais de 80% do controle de condutas do CADE envolveu referidas práticas coordenadas. Essa média já foi maior, tendo chegado a quase 100% da atuação repressiva do CADE em alguns períodos.[17]

Logo, para as infrações contra a ordem econômica consistentes em práticas coordenadas de competência da justiça estadual (como provavelmente seria o caso do processo administrativo sancionador levado ao STF no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 1.083.955), já é possível aplicar-se o adequado exercício da judicial review pelas varas criminais estaduais especializadas. Para o âmbito federal, seria necessário, em princípio, sensível ajuste nas regras de organização judiciária a bem de incluir os crimes contra a ordem econômica e financeira na competência das varas criminais especializadas para apreciar investigações criminais e ações penais envolvendo organizações criminosas.

Veja-se que mudanças incrementais em linha com a ideia “do menos é mais” viabilizariam rapidamente a concretização da especialização da justiça para grande parte do controle de condutas no Direito Antitruste brasileiro. Esse seria um design institucional da justiça especializada de fácil implementação que criaria mais segurança jurídica ao controle de condutas no Direito Antitruste brasileiro e, ao mesmo tempo, protegeria as instituições e maximizaria a eficácia do art. 5º, inc. XXXV, da CF/88.


[1] “(…) a intervenção judicial em temas sensíveis deve ser minimalista, respeitando os limites da capacidade institucional dos juízes, e sempre à luz de uma perspectiva contextualista, consequencialista, pragmática, porquanto em determinadas matérias sensíveis, O MENOS É MAIS”. Para a transcrição completa do discurso, vide: <discurso-posse-fux-stf.pdf (conjur.com.br)>. Acesso em: 16.09.2021.

[2] “o “dever de deferência” às decisões técnicas, a complexidade da matéria concorrencial, a reduzida expertise do Judiciário no tema, a possibilidade de geração de efeitos sistêmicos nocivos à dinâmica regulatória” – Para a opinião completa sobre esse julgamento, vide: CAMPILONGO, Celso Fernandes. JOTA. “O Supremo Tribunal Federal e o CADE”. Disponível em: <O Supremo Tribunal Federal e o CADE | JOTA Info>. Acesso em: 08.09.2021.

[3] Para uma análise da acusação de que a Senacon estaria sofrendo esses efeitos da captura, vide: GABAN, E. M. Poder 360. “Senacon acerta ao investigar uso do termpo ‘5G’ por operadoras”. 25 de agosto de 2021. Disponível em: <Senacon acerta ao investigar uso do termo “5G” por operadoras, escreve Eduardo Molan Gaban | Poder360>. Acesso em: 16.09.2021.

[4] WORLD BANK. Doing Business 2011: Making a Difference for Entrepreneurs. Washington, DC: World Bank Group, 2012, p. 73. Disponível em: <Doing Business 2011>. Acesso em> 08.09.2021. Vide também: OCDE. Judicial performance and its determinants: a cross-country perspective. OECD Economic Policy Paper Series n. 05. OCDE Publishing, junho de 2013, p. 26-27. Disponível em: <Judicial performance and its determinants: a cross-country perspective – OECD>. Acesso em: 08.09.2021.

[5] Vide: CJF. Guia de Governança e Gestão da Justiça Federal. Disponível em: <Governança — Observatório da Estratégia da Justiça Federal (cjf.jus.br)>. Acesso em: 16.09.2021.

[6] GABAN, E. M.; DOMINGUES, Juliana. JOTA. “Vara para Direito Antitruste e Comércio Internacional”. Disponível em: <Varas para Direito Antitruste e Comércio Internacional | JOTA Info>. Acesso em: 08.09.2021.

[7] IIPI; USPTO. Study on Specialized Intellectual Property Courts. 2012. Disponível em: <Study-on-Specialized-IPR-Courts.pdf (iipi.org)>. Acesso em: 08.09.2021.

[8] Para estudo aprofundado no tema, vide: OCDE. The resolution of competition cases by specialized and generalist courts: Stockating of international experiences. 2017, Disponível em: <The resolution of competition cases by specialised and generalist courts: Stocktaking of international experiences – OECD>. Disponível em: 08.09.2021.

[9] Vide: Recomendação nº 56 de 22/10/2019. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3068>. Acesso em: 08.09.2021

[10] Notícia disponível no seguinte site: TRF3 ESTUDA IMPLANTAÇÃO DE VARAS ESPECIALIZADAS EM DIREITO DA CONCORRÊNCIA E COMÉRCIO INTERNACIONAL. Acesso em: 08.09.2021.

[11] Notícia disponível no seguinte site: Tribunal de Justiça de São Paulo (tjsp.jus.br). Acesso em: 08.09.2021.

[12] Vide notícia: <Varas especializadas em organizações criminosas passam a operar em BH – Portal CNJ>. Acesso em: 16.09.2021.

[13] Vide notícia: <1ª Vara Criminal Especializada completa um ano no combate ao crime organizado – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (tjrj.jus.br)>. Acesso em: 16.09.2021.

[14] Vide levantamento do CNJ: <Julgamento de crime organizado já segue rito próprio na maior parte do país – Portal CNJ>. Acesso em: 16.09.2021.

[15] Vide Resolução do TRF 1: <TRF1 – Resolução dispõe sobre especialização de varas federais no âmbito da 1ª Região>. Acesso em: 16.09.2021.

[16] Vide referida Recomendação: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/855>. Acesso em: 16.09.2021.

[17] Para a íntegra dos dados de atuação do CADE, vide: <Cade em Números — Português (Brasil) (www.gov.br)>. Acesso em: 16.09.2021.

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