Eduardo Molan Gaban
Desde o surgimento do sistema brasileiro de defesa da concorrência, é possível observar uma forte influência dos conceitos norte-americanos na sua estruturação. Por exemplo: para a avaliação da ocorrência de um ilícito antitruste no Brasil, sistematizaram-se duas metodologias “importadas” do direito norte-americano para a análise de casos concretos: a regra da razão e a regra “per se”. A diferença entre essas duas regras reside na quantidade de informação necessária antes da tomada de uma decisão pelo tribunal administrativo.
A partir da aplicação do padrão analítico “per se”, a conduta é considerada ilícita independentemente do contexto em que foi praticada, sendo desnecessária a análise de estrutura de mercado e de poder econômico do agente. Referida regra determina que, uma vez configuradas certas práticas, o ato poderá ser julgado como ilegal sem qualquer necessidade de aprofundamento das investigações[i].
Por meio da metodologia da razão, por sua vez, a conduta não pode ser, de pronto (ou pela mera identificação de sua existência), considerada ilícita. Esta regra apenas considera ilegais as práticas que restrinjam a concorrência de forma não razoável, sem justificativa. Em sendo aplicável esta regra, para que se chegue a uma conclusão sobre a ilicitude ou não da conduta, é necessária uma avaliação completa e detalhada de todas as circunstâncias envolvendo o caso sob análise, com verificação dos efeitos líquidos negativos para a concorrência, para que somente então seja considerada anticoncorrencial.
Muito embora a importação destes conceitos dos EUA possua inegável utilidade prática no processo de aplicação de leis antitruste, antes da simples adoção de tais padrões de forma automática é necessário avaliar se haveria substrato de validade jurídica no Brasil. Nesse sentido, infelizmente, não há disposição normativa no ordenamento jurídico brasileiro, muito menos na Lei Antitruste, que incorpore a regra “per se” e permita sua utilização nos procedimentos administrativos sancionadores ou mesmo nos processos judiciais.
A Lei nº 12.529/11 dispõe, em seu artigo 36, caput, que as condutas anticompetitivas a serem submetidas ao julgamento pressupõem uma análise de efeitos. Em que pese a lei não defina expressamente sobre a aplicabilidade da regra “per se” ou da razão, a interpretação que se extrai é a de que qualquer análise a ser feita pelo CADE não pode se ancorar em presunções e deve, necessariamente, avaliar os efeitos decorrentes da prática. Nesse sentido, se aproximaria mais da regra da razão, em que é necessária a demonstração dos efeitos em um caso concreto.
A explicação para a utilização da análise “per se” nos casos de cartéis hard core reside no fato de que, ainda que fosse feita uma análise pela regra da razão, esta sempre resultaria em um efeito líquido social negativo, pois a premissa é da existência do poder de mercado e de ser nulo qualquer efeito compensatório em cadeias industriais concentradas em seus diferentes elos. Assim, justifica-se a análise dos cartéis hard core sob a ótica “per se” pela alegada economia processual.
Se em tese o argumento seduz, na prática ele é inviável segundo o sistema jurídico brasileiro, sobretudo por carecer de qualquer previsão legal para tanto. Sua inaplicabilidade fica ainda mais evidente quando consideramos a natureza penal da norma dispositiva contida no art. 36, da Lei Antitruste. Sendo assim, por mais sedutor que seja ao aplicador da norma adotar o padrão “per se” para casos de cartéis clássicos, é imprescindível que seja demonstrada a posição dominante no caso concreto (não apenas a presunção em função da participação de mercado), além é claro de demonstrar-se e provar-se o envolvimento dos acusados e os efeitos negativos de suas práticas.
Por mais cristalina que seja a hermenêutica nesse tema, lacunas e inconsistências marcam a jurisprudência do CADE sobre a questão: o cartel clássico deve ser analisado sob a regra da razão, sob a regra “per se” ou, ainda, como infração por objeto?[1]
Como ponto de partida, notamos louvável resistência de alguns Conselheiros na importação acrítica de ideias de ordenamentos estrangeiros, os quais não coadunam com a realidade brasileira e tampouco com os parâmetros constitucionalmente estabelecidos. Como exemplo, podemos citar o voto condutor da interpretação jurídica segundo a qual a legislação nacional não adota a tese da infração “per se”, proferido pelo Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo no Processo Administrativo nº 08012.006923/2012-18[ii]. No mesmo sentido, o voto do Conselheiro Alessandro Octaviani Luis no Processo Administrativo nº 08012.011027/2006-02[iii] ressalva explicitamente a diferença de tradução entre as duas realidades (brasileira e norte-americana).
Tem prevalecido, entretanto, a aplicação da regra “per se” como padrão para aplicar a Lei Antitruste para os casos de carteis clássicos. A dispensa de necessidade de demonstração do poder de mercado para além do simples quadro da estrutura de oferta com as indicações de market share, bem assim da apuração dos efeitos propugnada pela regra “per se” – que “corta o caminho” de uma análise mais completa para uma presunção iuris et de iure do poder de mercado dos agentes – tem predominado nas notas técnicas da Superintendência-Geral[iv] e também nas decisões do Tribunal do CADE.
Este posicionamento punitivo/repressivo majoritário não fica imune à críticas. O primeiro exemplo a ser citado é a rejeição da regra “per se” para, ao invés, adotar a teoria da infração por objeto, com a qual também discordamos, como se denota do voto da Conselheira Ana Frazão no Processo Administrativo nº 08012.000261/2011-63[v]. A divergência também se faz presente no voto exarado pelo Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior no Processo Administrativo nº 08700.006965/2013-53[vi], em que, entre a escolha pela adoção da regra “per se” ou da razão, preferiu esta última.
Isso ocorre pois, ainda que o atalho da regra “per se” seduza pela praticidade e facilitação da decisão, o ordenamento jurídico brasileiro não permite a formação de um juízo pela autoridade competente sobre determinado caso com base em especulações. Não é possível a presunção, sem dados, fatos e contexto, de que o agente possui poder de mercado, apenas por estar inserido na tabela de estrutura de oferta apresentada pela acusação cuja somatória de market share dos acusados de conluio supera 20%.
Não é suficiente para justificar a adoção dessa metodologia o argumento de que a análise “per se” otimizaria o funcionamento e o processamento dos casos tramitando perante a autarquia, na medida em que dispensa a autoridade do exame detido e demorado dos impactos do mercado.
A regra “per se” é incompatível com o sistema jurídico brasileiro, já que este privilegia o princípio constitucional da presunção da inocência e impõe às autoridades de acusação e de decisão a comprovação das práticas e de seus efeitos. Em outras palavras, a presunção insculpida na Constituição Federal de 1988 é pela inocência, não pela existência de poder de mercado que, via de consequência, leva a uma possível existência de ilícito. A adoção da regra per se na investigação e no juízo punitivo leva ao absurdo da prova negativa de autoria e de materialidade, o que é absolutamente inconsistente com a matriz constitucional vigente no Brasil.
Investigar e decidir por intermédio da regra “per se” viola o princípio de que o ônus da prova cabe à acusação, ou de que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, conforme disposto no artigo 156 do Código de Processo Penal – inquestionavelmente aplicável ao processo administrativo sancionador no âmbito do CADE. Nesse sentido, a presunção da existência de poder de mercado nesse tipo é aceitável apenas para se inaugurar investigações, porém jamais para se impor sanções.
Também não há que se falar em maior segurança jurídica. Na realidade, a aplicação da regra “per se” implica o efeito oposto, vez que aumenta significativamente o risco de overdeterrence, que pode culminar em erros do tipo I, e que, via de consequência, pode resultar em injustiças. Além disso, condenações injustas, que não decorrem do devido processo legal ante a verdade real dos fatos e de seu contexto, levam ao descrédito da sociedade sobre o trabalho da autoridade antitruste.
A este respeito, é digno de nota que Paolo Buccirossi[vii] entende que há três tipos de falhas que podem afetar o sistema de aplicação das normas – ou seu enforcement: (i) excesso ou contenção de dissuasão (over-deterrence/underdeterrence); (ii) erros tipo I e tipo II (ou falsos positivos e falsos negativos, respectivamente); e (iii) excesso ou contenção de inclusão (over-inclusion/under-inclusion). A primeira falha que se verifica na aplicação do direito concorrencial se refere à força do enforcement, que é demasiadamente grande com a regra “per se” (overdeterrence). A segunda é relacionada à qualidade do sistema de punição, que, pela aplicação da regra “per se”, pode revelar um falso positivo ou erro de tipo I, quando o agente é condenado por infringir uma norma, embora não tenha empreendido uma conduta proibida. A terceira falha é observada quando a norma proíbe uma conduta que em algumas circunstâncias é benéfica (over-inclusion).
E, de fato, a regra “per se” traz como consequência a proliferação de inquéritos/procedimentos administrativos muitas vezes infundados, o que resulta em um nível excessivo de repressão. Nestes casos, a coletividade, que é titular do bem jurídico protegido pela legislação concorrencial, se torna vítima da própria execução equivocada da lei.
Em síntese, o que se verifica é que a oposição e disputa entre as classificações da infração antitruste pela análise “per se” e da razão dizem respeito, principalmente, ao nível de segurança jurídica e de economia processual que cada uma das categorias proporciona. Todavia, estas são falsas justificativas, pois não há segurança jurídica em resultados que ferem a ordem constitucional vigente, e a economia processual não deve sobrepor-se aos princípios e direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988.
É de se notar que a regra “per se” é frequentemente questionada, inclusive, nos EUA, como recentemente indicou a decisão Sanchez et al. v. United States, em que aceitou a Suprema Corte daquele país reavaliar a aplicação da regra “per ser”. A questão apresentada nesse caso avalia se a aplicação da regra “per se” ao direito antitruste viola a proibição constitucional de instruir os julgadores de que certos fatos presumidamente estabelecem um elemento de crime.
Ao fim e ao cabo, mesmo havendo algum sentido analógico entre os padrões dogmáticos e econômicos de análise entre ambas as jurisdições (EUA e Brasil) no tocante à Política Antitruste, decisões baseadas apenas na regra “per se” são nulas de pleno direito, já que contrariam a Constituição Federal de 1988 e os parâmetros infraconstitucionais contidos nos diplomas aplicáveis aos processos sancionatórios.
[1] Trataremos desse tema em outro artigo.
[i] GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 96.
[ii] “30. Mencionado trecho do guia europeu (o Guidelines on the Application of 101(3) TFEU (formerly Article 81(3) TEC), no qual se inspirara) deixa claro que a presunção de ilicitude que acompanha as condutas anticompetitivas pelo objeto é baseada na experiência, no conteúdo do acordo e na sua alta probabilidade de prejudicar o bem coletivo protegido pela lei. Contudo, trata-se apenas de uma presunção iuris tantum, e não significa que se esteja adotando uma ficção absolutamente descolada da realidade, nem uma presunção irrefutável. (…) 99. Tudo isso não significa, evidentemente, que se trate de ‘infração per se’, até porque essa expressão sequer existe na legislação nacional. Em outras palavras, não significa que se trate de presunção iuris et de iure de ilegalidade”. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.006923/2012-18. Relator: Conselheiro Ricardo Machado Ruiz. Voto-vista do Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo. Brasília, 20 de fevereiro de 2013.
[iii] “A tentativa de submeter o direito administrativo e econômico brasileiro à prática norte-americana não é um bom método. Esse erro de tradução entre duas realidades legislativa e jurisprudencialmente distintas muitas vezes é a pedra angular da tese segundo a qual a condenação de infrações à ordem econômica, no Brasil, dependeria da efetiva comprovação dos efeitos deletérios da conduta pela autoridade de defesa da concorrência”. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.011027/2006-02. Relatora: Conselheira Ana Frazão. Brasília, 11 de março de 2015.
[iv] A título exemplificativo, podemos citar um trecho da Nota Técnica nº 23/2017/CGAA7/SGA2/SG/CADE, emitida no PA n.º 08012.002414/2009-92, excerto este comumente utilizado pela SG em investigações de mesmo objeto: “171. O resultado prático e útil desta classificação na aplicação da lei antitruste é evidente. Quando uma conduta for considerada anticompetitiva porque possui objeto ilícito, ou seja, sua mera existência a torna ilícita já que dela nunca decorreriam efeitos positivos concorrenciais, existe uma presunção de ilegalidade, aplicando-se aquilo que se convencionou chamar de regra per se. Neste caso, repise-se, a mera existência de uma conduta com determinado objeto é anticompetitiva, não sendo necessárias análises posteriores sobre efeitos ou sobre o mercado. (…) 183. Nesse sentido, estando diante de um cartel normalmente basta a comprovação da existência do acordo para sua punição, dispensando a prova acerca da existência de prejuízos efetivos para fins de sua repressão. Assim, nos casos de cartel clássico, a prova da existência do acordo já seria suficiente para sua condenação. Entretanto, a comprovação da existência de outros elementos que caracterizem perenidade e institucionalidade (ainda que potenciais) torna a conduta mais grave, ensejando punição proporcional a esta gravidade. Novamente, dispensa-se, para a caracterização de um cartel como clássico, provas relativas a efeitos ou digressões sobre poder de mercado, bastando a comprovação da existência de elementos de perenidade e institucionalidade. (…) Dessa forma, a utilidade em estabelecer as condições de existência de um cartel clássico, em outras palavras, comprovar se o acordo possui características que demonstrem sua perenidade (ao menos possível) e institucionalização (mecanismos de monitoramento do cumprimento dos objetivos acordados entre seus membros), está não em obter prova necessária para a condenação da conduta, para a qual basta a prova da existência do acordo colusivo, mas sim em determinar a gravidade da conduta e o quantum proporcional de punição”. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.002414/2009-92. Relator: Conselheiro Paulo Burnier da Silveira. Nota Técnica nº 23/2017/CGAA7/SGA2/SG/CADE. Brasília, 8 de março de 2017.
[v] Neste caso, embora entendendo que a adoção de tabela de preços é conduta ilícita, bastando à sua configuração a divulgação dos preços, sendo desnecessário investigar seus efeitos, reconheceu tratar-se de presunção relativa e não “per se”. Com isso, permitiu-se à defesa o afastamento da ilicitude caso provados os benefícios racionais e legítimos para o comportamento, ou seja, se a sugestão de preços for utilizada para a realização de outro objeto lícito e razoável. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.000261/2011-63. Relatora: Conselheira Ana Frazão. Brasília, 03 de setembro de 2014.
[vi] “25. Considerando a possível divergência sobre a metodologia de análise da influência à adoção de conduta uniforme ou concertada sob a regra ´per se´ ou sob a regra da razão, adoto postura conservadora e opto pela segunda alternativa. 26. Caso seja analisada pela regra ´per se´, o próprio escopo da conduta seria suficiente para demonstrar o potencial de lesividade do ilícito. Por outro lado, se adotada a regra da razão, seria necessário aferir a existência de poder de mercado, bem como aferir se os efeitos líquidos da prática seriam favoráveis ou não à concorrência. Diante dessa possível dúvida, essa postura conservadora será adotada no caso concreto para averiguar se, mesmo com a consideração de eventuais eficiências da concertação, a prática poderia elevar o bem-estar e culminar na efetiva oferta de melhores condições ao consumidor final”. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08700.006965/2013-53. Relator: Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior. Brasília, 23 de abril de 2015.
[vii] BUCCIROSSI, Paolo. The Enforcement of Imperfect Rules. 2010. Disponível em: https://www.learlab.com/wp-content/uploads/2016/03/lear_rp_1_10_1283338320.pdf. Acesso em: 26 jan. 2022. 5-15 pp.