Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli
Os Termos de Compromisso de Cessação (“TCCs”) foram disciplinados pela antiga Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 8.884/94) e mantidos pela Lei nº 12.529/2011 em seu artigo 85, podendo ser negociados com a autoridade antitruste a pedido do representado ou a requerimento, uma vez atendidos os critérios de conveniência e oportunidade previstos no caput do referido artigo.
A partir da promulgação da nova lei, o papel dos TCCs no contexto de investigações de condutas colusivas mostrou-se decisivo na construção da história institucional do Cade, seguindo o padrão do continente americano, no qual, de acordo com o levantamento mais recente da OCDE[1], cerca de 48% dos casos envolvendo condutas cartelizadas resultou em acordo (considerando uma média de 130 casos julgados por ano, no período compreendido entre 2015 e 2019).
Há, entretanto, uma importante lacuna a ser preenchida em relação à política de acordos do Cade: e quando estes TCCs são celebrados no contexto da “terceira onda do antitruste”? Conforme defendem Athayde e Jacobs[2], esta terceira onda remete à ascensão dos ilícitos concorrenciais advindos de condutas unilaterais, o antigo calcanhar de Aquiles do Cade, de acordo com os últimos Peer Reviews publicados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)[3].
Em que pese já se falar em uma quarta onda, que remeteria à análise regulatória do antitruste[4], a terceira onda não parece ter chegado a seu zênite no Brasil, mas, ao contrário, vem sendo impulsionada por abalos sísmicos cada vez mais emblemáticos e representativos, sobretudo a partir da pandemia do COVID-19, sua relação com o crescimento dos mercados digitais e a consequente ampliação do número de casos envolvendo abuso de posição dominante por parte das plataformas[5].
Entretanto, a elevada complexidade ínsita a este tipo de análise – considerando que se trata de ilícitos por efeitos e, portanto, avaliados sob a ótica da regra da razão – impõe desafios adicionais ao juízo de conveniência e oportunidade para iniciar um acordo. Esses desafios se estendem a outras questões debatidas ao longo de sua negociação, como é o caso da necessidade e quantificação de uma contribuição pecuniária, da aplicação de multa por descumprimento, da necessidade de confessar ou não a prática lesiva e, finalmente, da inclusão ou não de garantias, por parte da Administração Pública, com relação à determinação sobre se a prática cessada através da celebração do acordo constituirá ou não um precedente vinculante para a instituição e da própria análise de mérito do caso.
Assim, inobstante o fato de ter o Cade estruturado um Guia de TCC, trazendo diretrizes gerais sobre a celebração destes acordos no âmbito da Autarquia, ainda há muita dúvida no que diz respeito aos parâmetros de negociação para acordos em sede de condutas unilaterais, como abuso de posição dominante através da adoção de cláusulas de exclusividade, programas de desconto, fixação de preços de revenda, recusa de contratar e discriminação de preços[6].
Recentemente, o Documento de Trabalho “TCC na Lei 12.529/2011” – publicado pelo Cade em Fevereiro de 2021 e fruto das contribuições de Carolina Saito, consultora PNUD[7] – identificou alguns padrões na celebração de acordos pelo Cade desde que a Lei nº 12.529/2011 entrou em vigor. Naquela oportunidade, chamou-se atenção à proporção dos TCCs celebrados em sede de cartel, frente aos acordos realizados perante condutas unilaterais – aproximadamente 3 para 1[8].
Tal desequilíbrio poderia se explicar como um reflexo da desproporção no que diz respeito à quantidade de investigações em cartéis vis-à-vis o volume de casos instaurados para averiguar infrações à ordem econômica no contexto das condutas unilaterais. Entretanto, analisar os dados sobre a abertura de investigações na Autarquia é suficiente para se chegar à conclusão de que esta hipótese não explica este desnível – pelo menos não exclusivamente – uma vez que, segundo aponta o Anuário do Cade 2020, a proporção média de cartéis com relação às condutas unilaterais considerando todas as investigações instauradas naquele ano foi de 1,16[9].
De acordo com o último Peer Review produzido pela OCDE em relação ao enforcement do antitruste no Brasil[10], é possível que a reduzida frequência da celebração de TCCs em sede de condutas unilaterais possa ser explicada a partir do receio da Autarquia em impedir a formação de um histórico jurisprudencial e, consequentemente, reduzir a experiência analítica do Tribunal Administrativo do Cade a respeito da matéria. Entretanto, apesar de parecer uma preocupação válida, sua natureza parece ser muito mais prospectiva do que explanatória.
Assim, o que talvez seja a melhor explicação para a desproporção na celebração destes acordos em relação aos diferentes tipos de conduta é o frequente arquivamento de investigações envolvendo condutas unilaterais[11], somado às incertezas quanto à correta fase processual para a celebração de um acordo – considerando a evolução do Procedimento Preparatório (Art. 66, §2º) para o Inquérito Administrativo (Art. 66, §1º) e, finalmente, para o Processo Administrativo (Art. 69 e seguintes), todos previstos na Lei de Defesa da Concorrência.
Ademais, a natureza do ilícito investigado traduz boa parte desta dificuldade, uma vez que as condutas unilaterais possuem pressupostos de ilicitude distintos, dependendo essencialmente da aplicação da regra da razão, o que, por si só, já configuraria um desincentivo ao promitente compromissário, vez que sua probabilidade de condenação é reduzida[12].
Tal desincentivo, por sua vez, possui efeito direto com relação à fixação de uma contribuição pecuniária e dos parâmetros para a sua quantificação. Neste sentido, enquanto que nos TCCs celebrados em casos de cartéis um dos requisitos é a fixação de tal contribuição, a mesma afirmação não é verdadeira em se tratando de condutas unilaterais.
Ao observarmos o histórico dos 76 TCCs celebrados desde a vigência da Lei 12.529/2011, 14 casos (18,42%) dispensaram sua fixação, ao passo em que um total de 39 casos (51,3%) teve a fixação da contribuição fixada proporcionalmente ao aporte da operadora Unimed (Representada), variando entre R$ 10 e R$ 30 milhões. Finalmente, os 23 casos remanescentes (30,26%) aplicaram uma média de R$8.652.645,90 em contribuições pecuniárias, com um desvio padrão amostral de aproximadamente 14.959.567,37. Esta média representa tão somente 6,14% do total de contribuições fixadas em TCCs no ano de 2020[13].
A desnecessidade de apresentar uma contribuição pecuniária para ensejar a negociação destes acordos em sede de condutas unilaterais poderá causar pelo menos dois efeitos, cujo entendimento requer retomar os conceitos de falsos positivos e falsos negativos. Quando tratamos de um falso positivo, ou seja, a condenação de um agente que não praticou um ilícito, é possível que o fato de se tratar de uma conduta unilateral gere danos mais intensos ao mercado, prejudicando a própria dinâmica naturalmente competitiva. Assim, exigir o pagamento de uma contribuição pecuniária nessas circunstâncias apenas potencializaria este dano. Por outro lado, um falso negativo poderia beneficiar-se da incerteza quanto aos parâmetros para aplicação da contribuição, que provoca um desvio-padrão tão alto quanto o que verificamos no caso concreto.
Para além dos efeitos reportados acima, a indefinição quanto à contribuição pecuniária afetará também o que será adotado como valor da multa por descumprimento do acordo, ensejando uma problemática quanto à mensuração deste valor. Neste sentido, apesar de o art. 85, §1º, II do RICADE estabelecer como cláusula obrigatória a multa por descumprimento total ou parcial dos termos do TCC, quando os acordos não fixam uma contribuição pecuniária, torna-se impossível realizar qualquer exercício de correlação entre estes valores – o que normalmente se faria nos casos de cartel.
Após revisar os mesmos 76 TCCs firmados neste espaço de tempo, constata-se que a maioria deles (aproximadamente 85,5%) possui cláusulas de multa por descumprimento do tipo “escalonadas”, ou seja, que fixam multas diferentes a depender do tipo de obrigação que venha a ser descumprida.
Do universo das cláusulas escalonadas, apenas 4,6% delas utilizam-se da receita líquida corporativa como a base de cálculo da multa, ao passo em que 3% acabam aplicando como multa um percentual do valor da contribuição pecuniária fixada. Dentre as cláusulas que fixam multas apenas em caso de descumprimento integral, 9% relacionam o valor da multa com esta contribuição.
A maior questão relativa ao estabelecimento de multa nesses casos deriva da própria dificuldade no monitoramento de cumprimento do acordo. Assim, caso a autoridade antitruste entenda pela não aplicação de cláusula de contribuição pecuniária, por todos os problemas evidenciados acima, os termos do acordo de TCC estarão calcados tão somente em obrigações de fazer e de não fazer, além de remédios comportamentais, cuja dificuldade de monitorar o seu cumprimento é conhecida não apenas pelo Cade, como também pelos demais órgãos atuantes na defesa da concorrência no Brasil.
Ora, a dificuldade no monitoramento também é outro elemento característico neste tipo de acordo. Neste sentido, denota-se que a esmagadora maioria, compreendendo aproximadamente 85,5% destes TCCs, adota como padrão de monitoramento de decisão a prestação de informações diretamente ao Cade, ao passo que o percentual remanescente se divide entre a contratação de consultoria externa, auditoria independente ou, mais recentemente, a adoção dos Trustees.
É certo que a ausência de um terceiro independente pode acarretar comportamentos oportunistas por parte dos promitentes compromissários, na medida em que estes vislumbrem, no decorrer das negociações, formas de maquiar eventuais descumprimentos, utilizando-se da assimetria informacional entre a autoridade e o representado no que diz respeito às particularidades de seu negócio.
De toda forma, ainda que o monitoramento seja realizado pela figura do Trustee, a fixação de obrigações comportamentais continua representando um ponto sensível para a identificação de descumprimento e, retomando o ponto anterior, a fixação de uma multa suficientemente dissuasória poderia ajudar, fixando a base de cálculo para a vinculação da multa por descumprimento – o que significaria uma incerteza a menos no mar de dúvidas potencializadas pelo abalo sísmico pandêmico.
Dentre tantas questões em aberto a respeito do desenho destes acordos em sede de unilaterais, contudo, resta uma possível certeza no que diz respeito à obrigação de confissão da prática lesiva – é possível que a estrutura de incentivos demonstre que obrigar o compromissário acusado de possivelmente cometer este tipo de ilícito pode enfraquecer a própria política de acordos, uma vez que, a depender da fase em que se encontra o processo, o agente que se comprometesse com a celebração do TCC em um estágio inicial e precisar confessar que praticou o ilícito para ter direito à celebração do acordo – assim como ocorre nos casos de cartel[14] – não enxergaria grandes benefícios com o TCC, sendo mais lógico que apenas optasse por fazê-lo em uma fase processual mais amadurecida e próxima à formação da convicção do julgador quanto à existência deste ilícito – que ainda enfrentaria uma ponderação sobre as possíveis eficiências geradas.
Corroborando com esta possível – e aparentemente, isolada – certeza, caberia questionar se a obrigatoriedade de assunção de culpa como requisito para a celebração de TCCs em sede de condutas unilaterais não seria capaz de viciar os termos contratuais[15], vez que inexiste a mesma presunção de ilicitude dos cartéis na qualidade de ilícitos per se.
A experiência do Cade na celebração destes acordos ainda é muito incipiente se comparada ao histórico de TCCs celebrados no âmbito de condutas colusivas. Entretanto, ao passo em que a OCDE manifestou sua preocupação no sentido de que estimular a celebração destes acordos pode acabar por prejudicar a formação de uma jurisprudência sólida sobre este tipo de análise antitruste, é possível que o aprimoramento da sua utilização possa gerar ganhos à autoridade, inclusive no que diz respeito à sistematização da análise investigativa.
[1] OECD (2021), OECD Competition Trends 2021, Volume I: Global Competition Enforcement Update 2015-2019. P. 13.
[2] ATHAYDE, Amanda; JACOBS, Patrícia. “A terceira ‘onda’ do antitruste no Brasil: marolinha ou tsunami?”. Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-01/athayde-jacobs-terceira-onda-antitruste-brasil. Acesso em: 20 de setembro de 2021.
[3] OECD (2019), OECD Peer Reviews of Competition Law and Policy: Brazil. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/oecd-peer-reviews-of-competition-law-and-policy-brazil-2019.htm. Acesso em: 20 de setembro de 2021.
[4] JÚNIOR, Marco Antonio Fonseca. “Que onda surfa o Cade?”. Jornal Estadão. 17 de agosto de 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/que-onda-surfa-o-cade/#:~:text=Come%C3%A7ou%2Dse%2C%20ent%C3%A3o%2C%20a,reparat%C3%B3rias%20decorrentes%20de%20danos%20concorrenciais. Acesso em: 20 de setembro de 2021.
[5] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/plataformas-digitais.pdf
[6] PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva. CASAGRANDE, Paulo Leonardo. Direito Concorrencial. São Paulo: Saraiva, 2016. P. 135.
[7]CADE, 2021. Documento de Trabalho: TCC na Lei 12.529/11. Fevereiro/2021. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/TCC%20na%20Lei%20nº%2012.52911/TCC%20na%20Lei%20nº%2012.529-11.pdf . Acesso em: 20 de setembro de 2021.
[8] Ibid. Conforme é possível constatar da Leitura da Imagem 6 (Página 18), aproximadamente 65,6% dos TCCs firmados envolviam casos de cartel, enquanto que apenas 22,6%, casos de conduta unilateral.
[9] CADE, 2020. Anuário do Cade 2020. P. 9. Disponível em: https://indd.adobe.com/view/f30f80e3-23b2-4370-9314-41a50b625073. Acesso em: 20 de setembro de 2021.
[10] Ob cit. OCDE (2019).
[11] Dos 19 casos que envolviam abuso de posição dominante através da imposição de exclusividades contratuais na história do Cade, aproximadamente 47% foram arquivados. Disponível em <https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/LACF(2021)23/en/pdf>
[12] “(…) a caracterização do ilícito de cartel exige uma efetiva comprovação de que existe ou existiu entre concorrentes um acordo cujo objeto é a restrição da competição, em que a presunção de produção dos efeitos anticompetitivos visados baseia-se, notadamente, pela detenção de relevante parcela conjunta de mercado”. Ob. Cit. PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva. 2016. P. 14.
[13] p. 11 https://indd.adobe.com/view/f30f80e3-23b2-4370-9314-41a50b625073
[14] Conforme dispõe o §5º do art. 179 do Regimento Interno do Cade
[15] Pode-se aqui realizar uma espécie de paralelismo com a colaboração premiada realizada na esfera penal, em que a Legislação responsável prevê como requisito para a celebração do acordo a voluntariedade do compromisso estabelecido, e que caso não seja observado, poderá vir a viciar os termos do contrato e torná-lo nulo.