André Santa Cruz*

Henrique Arake**

A vinculação da sociedade pelos atos do seu administrador sempre foi uma questão muito debatida no direito societário, em razão da natureza jurídica da relação que há entre ambos.

Com efeito, a sociedade personificada é um sujeito de direitos para todos os fins legais a partir do momento em que seus atos constitutivos são arquivados no órgão de registro competente (art. 985 do Código Civil – “CC”), que será a Junta Comercial, no caso de sociedades empresárias, ou o Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, no caso das sociedades simples (art. 1.150 do CC).

Desse modo, a sociedade é juridicamente distinta da pessoa que ocupa o cargo de administrador e de seus sócios (art. 49 do CC), constituindo-se em uma esfera de direitos e obrigações autônoma e independente destes.

Entretanto, ao contrário do que se verifica entre as pessoas naturais, as sociedades (pessoas jurídicas que são – art. 44, inciso II do CC) existem perante o Direito, mas não existem no mundo fático. Vale dizer, as sociedades não possuem um “substrato concreto”[1] para se manifestarem autonomamente e interagirem com outros sujeitos de direito no mundo real. Por essa razão, ela precisa se valer de alguém que lhe empreste esse “substrato concreto” para que essa interação possa ocorrer. Esse “alguém” é o administrador que, no ordenamento jurídico brasileiro, necessita ser sempre uma pessoa natural (art. 997, inciso VI do CC), absolutamente capaz, e não impedida nos termos do art. 1.011, §1º do CC.

Assim, o administrador é, no exercício dessa função, um órgão da própria sociedade, ou seja, parte integrante desta, e não uma pessoa distinta dela (no mandato, por exemplo, o mandatário é, necessariamente, uma pessoa distinta do mandante – art. 653 do CC).

Com efeito, não é correto dizer que o administrador de uma sociedade é o seu representante ou mesmo o representante da vontade dos seus sócios, porque na verdade o administrador, como dizia Pontes de Miranda, “presenta” a vontade da sociedade[2], de modo que quando o administrador “fala”, quem “diz” é a sociedade.

É aqui que as analogias encontram seu limite. É evidente que quando nossos doutrinadores defenderam que o administrador é apenas um órgão da sociedade, tal qual a nossa boca é um órgão por meio do qual manifestamos nossas ideias para outras pessoas, não estavam fazendo o testemunho de um fato, mas uma comparação e uma simplificação úteis para ilustrar uma ideia mais complexa[3].

Na verdade, parece-nos evidente que as sociedades são instituições que existem para atender a um fim específico, qual seja, o exercício da atividade econômica (empresarial ou não) prevista em seu objeto social, de modo que os seus titulares (ou seu titular) possam partilhar os seus resultados positivos ou negativos, cuja formalidade de constituição e atuação no mundo real está prevista em lei.

Nesse passo, é, também, a lei quem diz que os atos do administrador vinculam a sociedade (arts. 47 e 1.015 do CC) e, do mesmo modo, é também a lei quem excepciona essa questão, como, por exemplo, no caso de oneração ou alienação de bens imóveis, não sendo este o objeto da sociedade (art. 1.015 do CC, parte final).

E aqui chegamos ao cerne deste artigo: a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC, que previa, expressamente, a adoção pelo legislador da chamada teoria dos atos ultra vires e suas consequências legais, bem como a desvinculação da sociedade quando o administrador contratasse contra as disposições do contrato social ou com terceiro de má-fé.

Sem a necessidade de adentrar nas origens históricas da teoria dos atos ultra vires, basta relembrarmos que, segundo ela, o administrador não poderia extrapolar os fins sociais da sociedade administrada e, assim, fazer a sociedade contratar matéria estranha ao seu próprio objeto social.[4]

A despeito das críticas que sempre foram feitas a essa teoria, parece-nos importante destacar que a sua proposição não é de todo errada, ao menos em uma primeira leitura.

Com efeito, considerando-se que, em última instância, as sociedades são instituições criadas para que os seus administradores possam otimizar o patrimônio dos seus titulares dentro dos limites estabelecidos nos seus atos constitutivos, parece-nos adequado concluir que o distanciamento desses objetivos se assemelharia a um “inadimplemento” por parte do administrador, não havendo razão, portanto, para que a sociedade honrasse os compromissos assumidos por este nessas condições.

Desse modo, ad absurdum, um administrador de uma padaria que, sem uma “boa razão”, contratasse a compra de uma tonelada de urânio enriquecido em nome da sociedade, estaria cometendo um ilícito tão patente e tão evidente que não seria “razoável” que a sociedade tivesse de honrar esse compromisso.

É essa, fundamentalmente, a ratio por trás da teoria dos atos ultra vires, que estava prevista em nosso ordenamento jurídico no (hoje revogado) inciso III do parágrafo único do art. 1.015 do CC[5].

O problema com essa teoria, portanto, não era a sua proposição em si mesma, mas a sua aplicação prática nos casos mais usuais.

Utilizando o mesmo exemplo do administrador da padaria, imaginemos que ele investiu parte não significativa das reservas de lucro da sociedade no mercado acionário como forma de otimizar os resultados dela, mas infelizmente isso acabou gerando um enorme prejuízo, porque o investimento foi realizado às vésperas da Pandemia da COVID-19. Esse negócio jurídico (compra de ações) deveria ser oponível contra a sociedade? A resposta não é tão clara assim, razão pela qual a adoção da referida teoria pelo Código Civil de 2002 foi bastante criticada pela doutrina especializada.

De fato, muitos defendiam, mesmo antes da revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC, que aos atos dos administradores que extrapolassem o objeto social deveria aplicar-se a teoria da aparência e o princípio da proteção aos terceiros de boa-fé, o que acarretaria o seguinte: a sociedade responderia perante terceiros pelos atos ultra vires dos seus administradores, mas poderia voltar-se contra eles posteriormente, exigindo reparação pelos prejuízos suportados.[6]

Por conseguinte, na linha desse posicionamento crítico à teoria dos atos ultra vires, o parágrafo único do art. 1.015 do CC foi revogado integralmente pela Lei 14.195/2021, de modo que, atualmente, não há mais regra legal que determine a não vinculação da sociedade aos negócios jurídicos celebrados por seus administradores que não tenham aderência com o seu objeto social, o que representa, na nossa opinião, um grande avanço em prol da segurança jurídica das relações econômicas.

Todavia, é preciso destacar que a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC não retirou do nosso ordenamento jurídico apenas o seu inciso III – que tratava, especificamente, dos atos “evidentemente estranhos aos negócios da sociedade” –, mas também os seus incisos I e II.

Esses incisos do parágrafo único do art. 1.015 do CC, respectivamente, previam duas outras exceções à vinculação da sociedade aos atos do seu administrador: (i) quando tais atos violassem, expressamente, previsão disposta no contrato social ou em ato separado devidamente arquivado no órgão de registro competente (Junta ou Cartório, conforme a natureza da sociedade); e (ii) quando tais atos envolvessem a contratação com terceiro de má-fé, isto é, que conhecia a ausência de poderes do administrador para a sua prática.

Alguns defendem que, após a revogação integral do parágrafo único do art. 1.015 do CC, a sociedade deve honrar com os negócios jurídicos contratados pelo administrador “mesmo havendo excesso de poder por parte do administrador ou prática de atos que não estavam autorizados […]”[7]. Mas discordamos desse entendimento.

Com efeito, em se tratando de relações econômicas entre iguais[8], há a presunção legal de que os negócios jurídicos sejam interpretados à luz dos pressupostos da autonomia privada, da liberdade contratual, da presunção de boa-fé e da intervenção estatal mínima (arts. 2º, incisos I, II e III e art. 3º, incisos V e VIII da LLE). Vale dizer, há que se presumir que as sociedades que decidam contratar entre si são agentes econômicos acostumados ao “giro mercantil”, conhecem o risco do negócio que estão celebrando, tendo-os avaliado ou optado por não investir nessa investigação, dentro de parâmetros razoáveis do comportamento esperado[9], e contrataram de boa-fé.

Desse modo, em negócios jurídicos materialmente relevantes, isto é, que tenham um valor envolvido não desprezível, é de se esperar que agentes econômicos racionais invistam em algum grau de investigação a respeito da sua contraparte contratual. Nesse passo, como os atos constitutivos de qualquer pessoa jurídica são públicos e é baixo o custo para a sua obtenção e análise (mormente com a digitalização das Juntas Comerciais), a diligência minimamente esperada é que as sociedades contratantes verifiquem nos atos constitutivos de suas respectivas contrapartes se existe alguma restrição específica para a contratação daquele negócio jurídico pretendido, até mesmo porque o art. 47 do CC e o caput do art. 1.015 do CC (que não foi modificado pela Lei 14.195/2021) são expressos em condicionar a vinculação da sociedade aos atos do administrador exercidos nos limites dos seus poderes de gestão.

Desse modo, o entendimento de que a mera proteção a terceiros de boa-fé deve convalidar a contratação de negócios jurídicos materialmente relevantes em violação aos atos constitutivos de um dos contratantes não parece razoável, na nossa opinião.

Na mesma esteira, observa-se que a presunção de contratação de boa-fé é juris tantum e, portanto, passível de ser impugnada, caso a sociedade afetada pela contratação com terceiro de má-fé consiga provar esse fato. Até mesmo porque, novamente, a lei veda a contratação de má-fé ou simulada (arts. 113, 166, inciso VI, 167 e 171, inciso II do CC). Entender de forma diferente seria aceitar que o ordenamento jurídico protegeria a colusão entre administradores que, de má-fé, aproveitassem de sua posição para prejudicar o patrimônio daqueles a quem lhes fora confiada a gestão.

Assim, discordamos da ideia de que a revogação dos incisos I e II do parágrafo único do art. 1.015 do CC importa na responsabilização irrestrita da sociedade por atos de seu administrador que violem uma limitação expressa de poderes. Para nós, se tal limitação de poderes foi devidamente publicizada por meio do arquivamento do ato respectivo no órgão de registro competente, ou se era comprovadamente conhecida pelo terceiro contratante – que nesse caso estará agindo de má-fé –, pode a sociedade, a depender do contrato e do contexto negocial, eximir-se de responsabilidade pelos atos excessivos do seu administrador (arts. 47 e 1.064 do CC).[10]

No tocante à teoria dos atos ultra vires (atos que simplesmente não guardam pertinência com o objeto social), concordamos que a revogação do inciso III do parágrafo único do art. 1.015 do CC significou a sua superação em nosso ordenamento jurídico, devendo-se aplicar, em seu lugar, a teoria da aparência, algo que consideramos um avanço em termos de segurança jurídica para os negócios empresariais.


[1] Tomazette, M. Curso de direito empresarial v. 1 – teoria geral e direito societário. SP: SaraivaJur. p. 361.

[2] Nesse sentido: Tomazette, M. Curso de direito empresarial v. 1 – teoria geral e direito societário. SP: SaraivaJur. p.361; Campinho, S. Curso de direito comercial – direito de empresa. SP: SaraivaJur. 17ª Ed. 2020. p.108; Diniz, G.S. Curso de Direito comercial. SP: Atlas. p. 190. Negrão. R. Curso de direito – comercial e de empresa v.1. – teoria geral da empresa e direito societário. SP: SaraivaJur. 16ª Ed. p. 356; Leite, M. L. Intervenção judicial em conflitos societários. RJ: Lumen Juris, 2019. p. 49.

[3] Para uma discussão mais aprofundada a respeito da relação entre a propriedade privada dos sócios e a delegação da gestão desse patrimônio por meio da constituição de uma sociedade (corporation), confira-se: Berle, A. A., & Means, G.C. The modern Corporation and private property. NJ: Transaction Publishers. 1999 (1968).

[4] “A ultra vires doctrine, formulada em meados do século XIX pelas cortes inglesas, tinha por objetivo evitar desvios de finalidade na condução dos negócios sociais, declarando nulo qualquer ato praticado em nome da sociedade que extrapolasse seu objeto” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC).

[5] Nesse sentido, veja-se o Enunciado 219 das Jornadas de Direito Civil: “Está positivada a teoria ultra vires no Direito brasileiro, com as seguintes ressalvas: (a) o ato ultra vires não produz efeito apenas em relação à sociedade; (b) sem embargo, a sociedade poderá, por meio de seu órgão deliberativo, ratificá-lo; (c) o Código Civil amenizou o rigor da teoria ultra vires, admitindo os poderes implícitos dos administradores para realizar negócios acessórios ou conexos ao objeto social, os quais não constituem operações evidentemente estranhas aos negócios da sociedade; (d) não se aplica o art. 1.015 às sociedades por ações, em virtude da existência de regra especial de responsabilidade dos administradores (art. 158, II, Lei n. 6.404/76)”.

[6] Nesse sentido: “Sempre me pareceu que o tratamento dos atos que extrapolassem os limites do objeto social deveria se dar à luz da teoria da aparência, com o escopo de proteção aos terceiros que, de boa-fé, realizam negócios jurídicos com a sociedade, que não pode descurar-se do dever de zelar pelos atos praticados por seus administradores, não lhe sendo lícito, pois, alegar ignorância. O administrador que o praticasse, como regra geral, vincularia a pessoa jurídica perante os terceiros de boa-fé e, dessarte, responderia civilmente diante da sociedade, na via de regresso” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC). No mesmo sentido, pode-se mencionar o Enunciado 11 das Jornadas de Direito Comercial: “A regra do art. 1.015, parágrafo único, do Código Civil deve ser aplicada à luz da teoria da aparência e do primado da boa-fé objetiva, de modo a prestigiar a segurança do tráfego negocial. As sociedades se obrigam perante terceiros de boa-fé”. Ainda no mesmo sentido, merece menção o seguinte precedente do STJ: “Direito comercial. Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Garantia assinada por sócio a empresas do mesmo grupo econômico. Excesso de poder. Responsabilidade da sociedade. Teoria dos atos ultra vires. Inaplicabilidade. Relevância da boa-fé e da aparência. Ato negocial que retornou em benefício da sociedade garantidora. (…) 3. A partir do CC/2002, o direito brasileiro, no que concerne às sociedades limitadas, por força dos arts. 1.015, § único e 1.053, adotou expressamente a ultra vires doctrine. 4. Contudo, na vigência do antigo Diploma (Decreto n.º 3.708/19, art. 10), pelos atos ultra vires, ou seja, os praticados para além das forças contratualmente conferidas ao sócio, ainda que extravasassem o objeto social, deveria responder a sociedade. 4. No caso em julgamento, o acórdão recorrido emprestou, corretamente, relevância à boa-fé do banco credor, bem como à aparência de quem se apresentava como sócio contratualmente habilitado à prática do negócio jurídico. 5. Não se pode invocar a restrição do contrato social quando as garantias prestadas pelo sócio, muito embora extravasando os limites de gestão previstos contratualmente, retornaram, direta ou indiretamente, em proveito dos demais sócios da sociedade fiadora, não podendo estes, em absoluta afronta à boa-fé, reivindicar a ineficácia dos atos outrora praticados pelo gerente” (REsp 704.546/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 01.06.2010, DJe 08.06.2010).

[7] Vaz, M. R. M. A nova Lei de Ambiente de Negócios e a extinção da teoria ultra vires societatis. Consultor Jurídico, 2021. Acessado em 28.11.2021 – https://www.conjur.com.br/2021-out-07/vaz-lei-ambiente-negocios-ultra-vires-societatis.

[8] Excluindo-se de nossa análise, portanto, as relações havidas com vulneráveis/hipossuficientes, tais como as relações de consumo ou as relações trabalhistas.

[9] Forgioni, P. Contratos Empresariais – Teoria Geral e Aplicação. SP: Revista dos Tribunais, 2018, 3ª Ed. pp. 269-70.

[10] No mesmo sentido: “Parece, portanto, à luz do ordenamento jurídico vigente, que a melhor orientação é aquela que apoia e valoriza a teoria da aparência e a boa-fé objetiva para, como regra, vincular a sociedade ao negócio celebrado por seu administrador, caracterizador de ato ultra vires. Cabe a ela provar o conhecimento do terceiro do contrato social ou do estatuto para eximir-se da responsabilidade do ato derivada, ou demonstrar circunstancialmente que, em razão das condições e da natureza da negociação e pela qualidade profissional do contratante, cabia a ele diligenciar para ter acesso e conhecimento do seu objeto social. Vinculada a sociedade ao ato ultra vires, abre-se-lhe o ensejo de regressivamente responsabilizar o administrador que atuou com o excesso por ela não ratificado e que lhe causou prejuízo” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC).


[*] Procurador Federal. Doutor em direito empresarial pela PUC-SP. Professor de direito econômico e empresarial do Centro Universitário IESB-DF.

[**] Sócio de Henrique Arake Advocacia Empresarial. Doutor em análise econômica do direito. Professor de direito empresarial do UniCEUB, do IDP e do IBMEC. Associado à Association of Certified Fraud Examiners (ACFE), Conselheiro Consultivo da Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU) e Conselheiro Fiscal do Instituto Brasiliense de Direito Empresarial (IADE).

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