Rutelly Marques da Silva

A revisão do TCC entre o Cade e o Petrobras e a concorrência no mercado de combustíveis

Rutelly Marques da Silva e Márcio de Oliveira Junior

Em junho de 2019, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Petrobras firmaram um Termo de Compromisso de Cessão de Prática (TCC)[1] com o objetivo de “propiciar condições concorrenciais, incentivando a entrada de novos agentes econômicos no mercado de refino” e suspender, desde que cumpridas as obrigações previstas no TCC, o Inquérito Administrativo que investigava condutas anticoncorrenciais da estatal no mercado de refino[2].

Em cumprimento ao TCC, a Petrobras vendeu três refinarias, entre elas Isaac Sabbá e Landulfo Alves (atualmente Refinarias do Amazonas e de Mataripe, respectivamente). Entretanto, em novembro de 2023, a Petrobras pediu ao Cade a renegociação do TCC[3] e posteriormente, em maio de 2024, propôs a readequação dos compromissos[4]. Desde 2023, quando a Petrobras pediu a renegociação do TCC, circulavam notícias na imprensa de que a estatal desejava revisar o TCC para deixar de vender refinarias e até mesmo recomprar as já vendidas. A Superintendência Geral do Cade, também em maio de 2024, recomendou ao Tribunal do Cade aceitar os novos termos[5], o que ocorreu com a homologação de despacho do Presidente do Cade em 22 de maio de 2024.

O movimento de revisão do TCC levantou questionamentos sobre possíveis retrocessos nas ações para fomentar a concorrência no setor de combustíveis. Entretanto, acreditamos que parte desses questionamentos pode ser respondida se observarmos que a concorrência no segmento de refino depende não somente da venda de refinarias, mas também da política de preços da Petrobras e da competição na exploração e produção de petróleo.

Vale observar que o TCC não determinou que a Petrobras vendesse todas as suas refinarias, nem estipulou obrigações para a estatal em relação à importação de petróleo e derivados ou à sua política de preços de combustíveis. Outro aspecto relevante é que, na época em que o TCC foi firmado e as refinarias começaram a ser vendidas, a política de preços de combustíveis da Petrobras seguia a paridade de importação. Ocorre que a estatal alterou essa política em 2023, o que, em associação com a concentração no segmento de exploração e produção de petróleo, impactou o TCC, tornando-o pouco efetivo para fomentar a concorrência no segmento de refino. Vejamos por que isso ocorreu.

As refinarias privadas não operam no segmento de exploração de petróleo, o que significa que devem adquirir petróleo para refino de petroleiras no mercado nacional ou internacional. No mercado nacional, a Petrobras ainda é a concessionária com maior participação na exploração (64,5% em 2023, pelo menos), seguida pela Shell (11,4% em 2023). Nesse cenário, a Petrobras tenderia a vender petróleo para as refinarias privadas com base no preço internacional, uma vez que as demais petroleiras não venderiam no mercado doméstico a um preço abaixo do internacional e eventual importação pelas refinarias privadas também ocorreria ao preço do mercado internacional.

O fato de as refinarias privadas comprarem petróleo com base nos preços internacionais leva à conclusão de que os combustíveis comercializados por elas também seguirão esses preços. Em outras palavras, os preços dos combustíveis das refinarias privadas obedecerão à lógica da paridade de importação, antiga política de preços da Petrobras.

Contudo, para as refinarias da Petrobras, a realidade pode ser diferente. Como a estatal[6] é verticalmente integrada, o preço do petróleo transacionado entre suas unidades de produção e de refino pode não ter como referência os preços internacionais, mas sim outro parâmetro mais alinhado com a política de preços de combustíveis que a estatal considera adequada para os objetivos do seu controlador, que pode implicar a defasagem dos preços dos combustíveis comercializados pela Petrobras em relação aos preços do mercado internacional.

Essa eventual defasagem impacta as refinarias privadas, principalmente em um cenário em que a Petrobras tem a capacidade de usar o lucro da exploração e produção doméstica de petróleo para subsidiar eventuais prejuízos que ela teria ao importar petróleo para refiná-lo no Brasil, onde o preço do combustível pode estar defasado em função da sua própria política de preços. Nesse caso, a Petrobras poderia cobrir uma possível margem operacional negativa na atividade de refino com uma margem positiva na exploração e produção de petróleo. A maior parte das refinarias privadas não tem essa opção, pois não é verticalizada.

Nesse contexto em que a Petrobras continuou verticalmente integrada após a celebração do TCC, com alta participação no mercado de exploração e produção de petróleo, a aquisição das suas refinarias por investidores privados tinha como base as seguintes premissas, de forma combinada ou isolada: (i) a política de preços da Petrobras seguiria a paridade de importação; (ii) a Petrobras venderia praticamente todas as suas refinarias antes de qualquer mudança na política de preços dos combustíveis ou as refinarias privadas não estariam nos mesmos mercados relevantes daquelas que a Petrobras manteria; e (iii) haveria instrumentos regulatórios para impedir a Petrobras de abusar de sua posição dominante no segmento de exploração e produção de petróleo.

Caso essas premissas não fossem observadas, o fomento à concorrência no mercado de refino por meio da entrada de investidores privados não verticalizados estaria em risco, pois a margem operacional das refinarias privadas ficaria vulnerável às mudanças na política de preços dos combustíveis e ao abuso de posição dominante pela Petrobras. Em outras palavras, nas hipóteses (i) de a Petrobras vender o petróleo para as refinarias privadas pelo preço internacional, porventura acima do preço transacionado entre suas unidades de exploração e de refino, e (ii) de o preço dos combustíveis no mercado doméstico estar defasado em relação ao preço internacional, a margem de lucro das refinarias privatizadas seria comprimida e elas eventualmente teriam prejuízos. Isso colocaria em risco o objetivo de mudar a estrutura do mercado de refino para fomentar a concorrência, um dos objetivos do TCC.

Portanto, dada a estrutura de mercado de exploração e produção de petróleo, a antiga política de preços da Petrobras de paridade de preços de importação era fundamental para fomentar a concorrência no mercado de refino. Como essa política foi alterada pela estatal, o TCC ficou vulnerável, pois a defasagem do preço do combustível doméstico em relação ao internacional aumenta o risco de compressão das margens das refinarias privadas. Com isso, a continuidade da expansão dessas refinarias, seja de forma orgânica ou por meio da aquisição das refinarias que estavam à venda pela Petrobras, ficaria prejudicada e poderia ocasionar a reversão da pequena mudança estrutural no mercado de refino gerada pelo TCC.

Uma evidência dessa dificuldade de expansão de refinarias privadas foi o fato relevante divulgado pela Petrobras em 22 de maio de 2024, quando ela afirmou ter enfrentado obstáculos “que impediram a conclusão da alienação das demais refinarias que constavam do objeto original do TCC”[7]. Em uma situação de risco como a apontada acima, era de se esperar que a Petrobras tivesse dificuldades para vender as refinarias, ou seja, o TCC perdeu efetividade.

Essa conclusão nos leva a outra questão relevante: era factível buscar implementar concorrência no refino sem alterar a estrutura de mercado na exploração de petróleo, reduzindo sua concentração? Como se depreende dos argumentos apresentados neste artigo, é pouco provável. Devido à concentração na exploração e produção, a dependência das refinarias privadas não verticalizadas da Petrobras como fornecedora de petróleo é alta. Portanto, dados os riscos apontados, seria preciso reduzir a concentração do mercado de exploração e produção para atenuar essa dependência. Com isso, o risco das refinarias privadas diminuiria, pois uma eventual decisão da Petrobras de “descolar” os preços domésticos dos internacionais para viabilizar a defasagem dos preços dos combustíveis no mercado doméstico teria menor impacto sobre elas. Sem a mitigação desse risco, é pouco provável que as refinarias privatizadas façam investimentos em expansão de capacidade de produção e que haja novas entradas no mercado de refino. Na verdade, pode ser interessante para as refinarias privatizadas até mesmo a sua revenda para a Petrobras.

Sem dúvida, a desconcentração na exploração de petróleo não é trivial, pois significa reduzir da participação da Petrobras no segmento provavelmente mais rentável da cadeia produtiva do petróleo. Além disso, é um processo demorado, que depende de mudanças na orientação do governo federal para a cadeia de produção de combustíveis.

Por fim, não estamos a discutir qual política de preços dos combustíveis é melhor ou mais justa para a sociedade brasileira, mas apenas ilustrando como a mudança dessa política, combinada com um mercado de exploração e produção de petróleo concentrado, afetou os efeitos concretos do TCC firmado entre o Cade e a Petrobras visando ao fomento da concorrência no mercado de refino.

Isso não significa, todavia, que a manutenção da estrutura de mercado de exploração e produção e a mudança da política de preços da estatal justificariam o encerramento do TCC. Mas a decisão envolvendo a revisão do TCC deveria considerar (i) os impactos da mudança da política de preços dos combustíveis, (ii) as limitações que a concentração na exploração e produção de petróleo representam para a concorrência no refino e (iii) a utilização de instrumentos estruturais e comportamentais que tornem mais fácil a detecção de eventual discriminação de preços pela Petrobras na venda de petróleo para as refinarias privadas vis-à-vis o preço do usado nas transações entre suas unidades de exploração e de refino.

O posicionamento externado pela Superintendência Geral e seguido pelo Tribunal do Cade considera alguns dos elementos abordados no parágrafo anterior. Quando o TCC foi firmado, as partes entenderam que a venda de refinarias que representavam cerca de 50% da capacidade doméstica de refino era suficiente para fomentar a concorrência no refino. Ainda, à época da celebração do TCC, a Petrobras adotava a paridade de preços de importação. Mas o abandono dessa política de preços em 2023 comprometeu a efetividade do TCC, ou seja, dificilmente investidores privados comprariam as cinco refinarias que ainda não tinham sido vendidas.

Dessa forma, considerando que a política de preços da Petrobras é parte de sua estratégia empresarial, que o Cade não poderia determinar qual deve ser a política de preços, que ele não poderia ampliar o escopo do TCC para desconcentrar o segmento de exploração e produção de Petróleo, a solução estrutural que constava no TCC ficou prejudicada, como reconheceu a Superintendência Geral do Cade. Desse modo, restaram as soluções comportamentais que constam na revisão do acordo.

Dado que o Cade não controla a estrutura de mercado no segmento de produção e a política de preços da Petrobras, não entendemos essas soluções como um completo retrocesso, pois elas podem ser úteis para proteger as refinarias privadas do abuso da Petrobras e assim garantir que a pequena mudança estrutural alcançada durante a vigência do TCC original seja preservada. No entanto, é pouco provável que a mudança estrutural no refino almejada quando o TCC foi firmado seja atingida.

Adicionalmente, a atual política de preços de combustíveis da Petrobras, que implica a defasagem dos preços domésticos em relação aos internacionais, gera incentivos para que ela discrimine as refinarias privadas. Como a Petrobras tem a capacidade para a discriminação devido à sua posição dominante no mercado de produção e exploração de petróleo, o monitoramento dos remédios para evitar abuso de posição dominante pela Petrobras deverá ser constante e, por isso, terá um custo alto para o Cade. Além disso, é preciso que os remédios comportamentais sejam detalhados e que as refinarias privadas, alvos de eventuais abusos, tenham acesso ao detalhamento, os acompanhem e possam informar eventuais descumprimentos ao Cade, ajudando-o no monitoramento.

Por último, é importante não permitir a recompra das Refinarias do Amazonas e de Mataripe pela Petrobras. Isso tem como base o entendimento da Superintendência Geral do Cade de que, devido à venda das refinarias ocorridas sob a vigência do TCC, “é esperado que haja movimentação dos agentes tanto demandantes como ofertantes de petróleo em razão do surgimento de uma demanda de petróleo externa à Petrobras” [8]. Essa afirmação parece decorrer principalmente da perspectiva de que, como as refinarias vendidas (do Amazonas e de Mataripe) representam cerca de 18% da capacidade de refino doméstica, sua demanda por petróleo pode gerar uma desconcentração no segmento de exploração e produção, o que teria efeitos positivos sobre a concorrência no segmento de refino. Nesse sentido, seria contraditório permitir sua recompra pela Petrobras, já que, seguindo o raciocínio da Superintendência Geral, o “surgimento de uma demanda de petróleo externa a Petrobras” seria perdido com a recompra.


[1] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOfbx5eD8vU7hfNPDc1HQ8Mo2wUUl_pMBwmHa9QywbQVDVJnIUCKbu0aQsg2fy2ggM6fjABy7XMTQWI3Q5i7QbJ . Acesso em 21 de maio de 2024.

[2] O Inquérito Administrativo está disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcfCo1Z24FrKe2wW9llyOv2ILUjTgBbLuIeOjayRJxADF . Acesso em 21 de maio de 2024.

[3] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddbIHxXqnEp9HJHDbUEq_kMJv1XP6ycA02Dqhkg_GgAbzyGOG2CTZiDQtoKdC4XX-ZJB2-a9AqOpl1yW5xIyYsce . Acesso em 21 de maio de 2024.

[4] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddbsEMDXhmFXjrK9B9of_6v0Pcn9U1pOhaRC_Y12vSbvvBS7dqtSgE4vcumXnc_VNPhBBVKzJhn6TTZTZg3O1g2B. Acesso em 21 de maio de 2024.

[5] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddZD5N4hyRzhbTCQTPQH3wI-YDjommcMmKkhdqy6iDnU0r1lro_4dJBDslTz4m3h9pGc1W83bqFV-fh5OFehS51T. Acesso em 21 de maio de 2024.

[6] Apesar de a Petrobras ser uma empresa de capital aberto, a maioria de suas ações com direito a voto pertence ao Governo Federa, o que lhe confere controle sobre a empresa. Por isso, qualificamos a Petrobras como empresa estatal. Informação disponível em: https://www.investidorpetrobras.com.br/visao-geral/composicao-acionaria/ . Acesso em 25 de maio de 2024.

[7] Disponível em: https://www.investidorpetrobras.com.br/resultados-e-comunicados/comunicados-ao-mercado/ . Acesso em 23 de maio de 2024

[8] P. 3 da Nota Técnica nº 3/2024/UCD-CGAA4/CGAA4/SGA1/SG/CADE, disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddZD5N4hyRzhbTCQTPQH3wI-YDjommcMmKkhdqy6iDnU0r1lro_4dJBDslTz4m3h9pGc1W83bqFV-fh5OFehS51T. Acesso em 21 de maio de 2024.


  • Rutelly Marques da Silva e Marcio de Oliveira Júnior são Consultores Sêniores da Charles River Associates (www.crai.com). As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente dos autores e não refletem necessariamente as opiniões da instituição à qual estão vinculados.