César Mattos

A Nova Indústria Brasil (NIB), o FMI e a Nova Onda de Políticas Industriais no Mundo

César Mattos

Foi lançada no Brasil pelo Governo Federal mais uma estratégia de política industrial, a “Nova Indústria Brasil” (NIB), que é a quinta deste século. A NIB contém elementos de política ambiental e até de simplificação de ambiente de negócios, dentre outros, que são positivos para os novos desafios do desenvolvimento e já vinham sendo desenvolvidos nos governos Temer e Bolsonaro. No entanto, a NIB também retoma/reforça instrumentos mais antigos de política industrial meramente protecionista, com relação negativa com a produtividade.

Neste breve artigo, apenas vamos contrapor um argumento utilizado numa lista de “fakes e fatos”[1] do próprio governo federal, trazendo o que seria um artigo bem recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) para validar a estratégia da NIB. Conforme o Governo Federal “os mecanismos de compras públicas, margem de preferência e conteúdo local são importantes indutores do desenvolvimento industrial e são largamente utilizados em todo o mundo, em todas as políticas industriais. Um relatório recente (publicado agora em janeiro de 2024) do FMI mostra justamente isso: a volta das políticas industriais com fortes incentivos dos países, entre eles o mecanismo de compras públicas” (grifos nossos).

Na verdade, Evenett, Jakubik, Martin e Ruta (2024)[2] lançaram neste janeiro um banco de dados do que seria um “observatório das novas políticas industriais” (NIPO – New Industrial Policy Observatory), documentando “os padrões emergentes de intervenção de políticas durante 2023 associados ao retorno das políticas industriais”. Conforme o abstract deste artigo: “Os dados mostram que a onda recente de atividade de política industrial está sendo implementada primariamente pelas economias avançadas, e que os subsídios constituem o instrumento mais empregado. Restrições de comércio nas importações e exportações são mais frequentemente utilizadas por economias em desenvolvimento e de mercados emergentes. A competitividade estratégica seria o motivo dominante dos governos para justificar estas medidas, mas outros objetivos como mudança climática, resiliência e segurança nacional também são utilizadas.  .Em regressões exploratórias, achamos que as medidas implementadas são correlacionadas com o uso de medidas passadas por outros governos no mesmo setor, apontando para a natureza tit-for-tat da política industrial. Além disso, fatores de economia política doméstica e condições macroeconômicas se correlacionam com o uso das medidas de política industrial. Nós desejamos que o Novo Observatório de Política Industrial – (New Industrial Policy Observatory – NIPO) se torne um recurso disponível para o público para ajudar a monitorar a evolução e os efeitos das políticas industriais”.

Assim, primeiro, o objetivo do artigo do FMI NÃO é validar as novas políticas industriais, mas sim de identificar porque elas estão surgindo, sem discutir se elas são positivas ou negativas.

Segundo, SIM, conforme o texto do FMI é verdade que há uma onda de novas políticas industriais no mundo todo.

Mas, terceiro, NÃO, não se pode afirmar que o FMI confirmou que “são importantes indutores do desenvolvimento industrial”.

Quarto, o FMI constata que a principal motivação das novas políticas industriais é o “Tit-for Tat”[3] para políticas em outros países nos mesmos setores. Isto é uma forma elegante de afirmar que a razão real é se defender/retaliar das/as políticas protecionistas de outros países.

Quinto, os “fatores de economia política doméstica” seriam basicamente eleitorais, ou seja, mais uma forma também elegante de indicar motivação política de curto prazo e não estratégia de desenvolvimento de longo prazo.

Os autores afirmam, ao contrário da interpretação benigna do governo federal, que “a relevância de todos estes fatores sugere que os governos deveriam ter cuidado no uso de políticas industriais”. Em outras palavras, políticas industriais podem ser um tiro no pé, ainda que indique, como todo trabalho responsável deve fazer, que “trabalhos adicionais são necessários para avaliar o sucesso ou fracasso das políticas industriais cobertas em alcançar seus objetivos declarados, tanto econômicos como não econômicos, além das implicações macroeconômicas domésticas.” Isso inclusive chama a atenção para a necessidade da NIB ser sistematicamente avaliados para decidir por sua continuidade ou não.

De qualquer forma, o texto do FMI claramente levanta muito mais preocupações com os possíveis aspectos negativos dessas novas políticas industriais do que o oposto. Daí afirmam que o banco de dados criado por eles “poderia servir de base para medir distorções nos padrões de comércio, mudanças na alocação de recursos entre setores e implicações de natureza fiscal. Os impactos nos parceiros comerciais não são de menor interesse por trazerem distorções diretas à competição e ao equilíbrio geral de bem estar”.

Nessa mesma linha de apontar os impactos negativos das novas políticas industriais no mundo, o texto do FMI levanta a questão de “se as regras atuais de comércio multilateral e seus mecanismos de enforcement estariam adequadas para o desafio de conter os efeitos de transbordamento (spillovers) negativos destas políticas”. Aqui, o FMI sugere que os mecanismos existentes podem não ser suficientes para coibir este tipo de protecionismo, requerendo sua atualização dada a “proliferação deste novo estilo de política industrial”. 

Ou seja, além das consequências negativas para o próprio país que adota as novas políticas industriais, o FMI está alertando para os transbordamentos negativos para outros países e para todo o sistema de comércio internacional baseado na Organização Mundial do Comércio (OMC). Nesse contexto, aponta que as regras atuais de defesa contra o protecionismo no mundo precisarão se atualizar para evitar os impactos ruins sobre o bem estar global. No limite, uma nova arquitetura do sistema de promoção e defesa do comércio.

Definitivamente, buscar este texto do FMI para apoiar a NIB não nos parece adequado. Fake News!

Por fim, todos podemos ficar tranquilos: o FMI ainda não se “heterodoxizou” neste assunto.


[1] https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/o-que-e-fato-e-o-que-e-fake-sobre-a-nova-industria-brasil-o-programa-de-politica-industrial-do-pais

[2] Evenett, S.; Jakubik, Martin,F. e Ruta, M.: “The Return of Industrial Policy in Data”. International Monetary Fund. WP/24/1. Jan 2024. 

[3] O TIt for Tat é uma estratégia em teoria dos jogos que, em geral se revela bastante aplicável para desnudar o comportamento de agentes econômicos, países ou mesmo na biologia. Compreende o agente sempre cooperar na primeira jogada de um jogo repetido, sendo que da segunda rodada em diante, ele coopera se os outros agentes cooperaram na jogada anterior e não coopera caso contrário.  Ver Axelrod, Robert (1984), The Evolution of Cooperation, Basic Books, Ver também Axelrod, Robert (1997), “The Complexity of Cooperation: Agent-Based Models of Competition and Collaboration”, Complexity, Princeton University Press,

Revenda de Veículos Automotores por Locadoras com Isenção de ICMS

César Mattos

  1. Introdução

Os Estados tendem a oferecer reduções ou mesmo isenções do ICMS para bens de capital em geral como forma de atrair investimentos, o que faz parte da chamada “guerra fiscal”.

O artigo 15 da Lei nº 6.729, de 28 de novembro de 1979 (Lei Ferrari), define que montadoras de veículos podem vender diretamente para locadoras de veículos. E como nesse caso específico, o veículo funcionará como um bem de capital para a locadora, é usual os estados concederem reduções do ICMS para estas operações. Diferente da venda do veículo para consumidores finais, para o qual o veículo em geral, funcionará como um bem de consumo.

O Estado de São Paulo, por exemplo, oferece desconto de 90% do ICMS na venda do veículo da montadora para a locadora[1]. Isso naturalmente torna o preço do veículo vendido pela montadora à locadora menor do que seria caso não houvesse o desconto.

No entanto, sabemos que o repasse da redução do ICMS ao preço que a montadora cobra da locadora não é integral, cabendo uma análise de incidência de tributos que depende das elasticidades da oferta e da demanda e do poder de mercado de cada um desses agentes (montadora e locadora), um em relação ao outro. Quanto maior o poder de mercado da montadora em relação à locadora, menor será o repasse da redução do ICMS para a redução de preços resultante do desconto do ICMS.

Na próxima seção avaliamos o incentivo à arbitragem tributária na revenda de veículos por locadoras. A terceira seção explica a transformação fundamental da perspectiva tributária do veículo de bem de capital para bem de consumo na revenda por locadoras. A quarta seção apresenta o papel proeminente da venda de veículos por locadoras. A quinta seção discute esta isenção e a possível contradição entre o incentivo ao fluxo de investimento e o incentivo ao incremento no estoque de capital. A sexta seção conclui.

II) Redução e Isenção do ICMS, Incentivo à Arbitragem Tributária e o Convênio Confaz 64/2006

O problema de os Estados oferecerem descontos do ICMS tão significativos para as locadoras pode fazer com que estas últimas vejam a compra do veículo não só como um “bem de capital” para os serviços de locações (o negócio presumido das locadoras). É possível que as locadoras passem a ver a aquisição de veículos também como uma possibilidade de realizar arbitragem tributária entre o preço menor pago à montadora e o preço maior que os consumidores finais pagam pelo automóvel em função do ICMS.

Uma das formas de resolver este problema de possível “arbitragem tributária” foi realizada no Convênio ICMS nº 64 de 07/07/2006 do Confaz[2]. Sua cláusula primeira define que se o veículo for vendido antes de 12 (doze) meses da data da aquisição junto à montadora, deverá ser efetuado o recolhimento do ICMS em favor do estado do domicílio do adquirente. Ademais, a cláusula segunda do mesmo Convênio define que a base de cálculo do imposto será o preço de venda ao público sugerido pela montadora. Como esta base de incidência, o preço sugerido do seminovo, será menor que a base de incidência representada pelo preço do veículo novo, o valor do ICMS pago pelas locadoras na revenda é inferior na medida da diferença de preços do novo/seminovo.

Essa regra de isenção de ICMS apenas após um ano estabelecida pelo Confaz certamente inibe, mas possivelmente não elimina, os incentivos para a arbitragem tributária.

III)A Contestação da Regra de Não Isenção e a Decisão do Supremo Tribunal Federal(STF) pela Constitucionalidade: A Tese da Transformação Fundamental (TF)

A regra de não isenção por um ano do Convênio 64/2006 do Confaz foi desafiada pela Localiza no Recurso Extraordinário 1.025.986 Pernambuco[3]. A locadora entendeu que seria inconstitucional o Estado de Pernambuco cobrar ICMS pela venda do carro seminovo pelas locadoras mesmo antes de um ano da aquisição do veículo.

Conforme o voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes no STF, a tese da Localiza é de que “as vendas de veículos usados realizadas pela impetrante (locadora de automóveis) consubstanciam alienação de ativo fixo e não de mercadorias, pelo que tais vendas não se sujeitariam à tributação pelo ICMS”.

A réplica do Ministro foi bastante simples e, principalmente, correta. Reconhece que “a venda de bens oriundos do ativo fixo não configura operação de circulação de mercadorias”. Acrescenta, no entanto, que “essa regra…. deriva não da circunstância de que tais bens tenham integrado ou sejam oriundos do ativo fixo, e sim da circunstância de não terem eles a destinação mercantil que subjaz inerente ao conceito de mercadoria”. Assim, se o ativo for “reinserido na circulação depois de período fora do comércio”, deixa de ser bem de capital e, portanto, volta a ser devido o ICMS.

Assim, na venda do veículo pela locadora é como que se o produto passasse por uma “transformação fundamental” (TF) do ponto de vista da legislação do ICMS: de ativo ou bem de capital para mercadoria ou bem final. Daí em sua alienação a posteriori, a incidência do ICMS se faz considerando o veículo como o bem de consumo que se tornou e não como o bem de capital que já foi.

Um parêntesis aqui é importante. Apesar de não abordado no voto do ministro, pelo mesmo argumento levantado da TF, seria possível distinguir quando a locadora vende para outra locadora, mantendo a característica de “bem de capital” ou para outros consumidores em que a TF, de fato acontece. Assim, seria cabível manter a isenção do ICMS a qualquer tempo para vendas de veículos de locadoras para outras locadoras já que a TF não ocorre e a característica de bem de capital do veículo é mantida.

Na verdade, esta ressalva pode ir bem além. Por exemplo, por que um motorista de aplicativo que usa seu veículo para gerar o serviço de transporte de passageiros e, portanto, receitas, também não pode ser considerado “bem de capital” tal como o é para as locadoras? Outras atividades em que o veículo entra na “função de produção” de autônomos poderiam teoricamente indicar que a natureza do veículo também é de “bem de capital”, o mesmo princípio usado para os veículos de locadoras. O problema de aplicação mais genérica do princípio seria naturalmente a complexificação da regra e a maior possibilidade de fraude para pagar menos impostos.

Voltando à questão principal, o Ministro, contrariamente à pretensão da Localiza, definiu a tese de que “É constitucional o Convênio CONFAZ n.64/2006 ao prever recolhimento da diferença de ICMS quando da revenda de veículo por locadora em prazo inferior a 12 meses”. Ou seja, o Convênio CONFAZ nº 64/2006 não pode ser considerado inconstitucional.

Note-se que isso ocorreria provavelmente também com várias outras regras que considerassem a TF do veículo de bem de capital para bem de consumo para locadoras, eventualmente adotadas pelo CONFAZ ou mesmo por lei aprovada no Congresso. Ou seja, poderia valer para um prazo de não isenção de seis meses ou de dois anos, por exemplo. Assim, de uma forma mais genérica, o STF sinalizou que não deverá ser inconstitucional, portanto, o Confaz ou uma lei estabelecerem prazos para a não isenção. Ou mesmo para não haver isenção alguma na revenda.

  1. Incentivo à Arbitragem Tributária e o Prazo de Não Isenção do ICMS de um Ano

Como destaca artigo do site trademap[4] de junho de 2022 “as locadoras são consideradas prestadoras de serviço, já que o core business é o aluguel dos carros. Mas, como elas já compram os carros das montadoras com 20% a 35% de desconto em barganha volumosa, surge a oportunidade de revender esses veículos de forma vantajosa”. A mesma matéria mostra o percentual da venda de veículos seminovos em três importantes locadoras de automóvel no Brasil.

Fonte: trademap

Note que o percentual da venda de seminovos na receita total de Localiza, Movida e Unidas está entre 38,3% e 49,5%, números expressivos.

A matéria também informa que no primeiro trimestre de 2022, a Movida reportou um crescimento de 253,2% na receita bruta da operação de seminovos, para R$ 981,5 milhões. No mesmo período, o número de carros vendidos saltou 184,3%, atingindo a marca de 15.225 negócios.

Conforme ainda a matéria da trademap, o veículo da Movida é vendido com uma idade média de 14 meses.

Ou seja, a relevância da venda de veículos é grande no negócio das locadoras e está aumentando. Isso pode ser um indicador de que o período de não isenção de um ano ainda seja insuficiente para reduzir o incentivo à arbitragem tributária. E esta arbitragem compromete o principal objetivo da política: incentivar investimentos.

  • Contradição entre Funções Objetivo: Fluxo de Investimento X Estoque de Capital 

Como já destacado, o principal objetivo dos estados em relação à isenção do ICMS é fomentar investimentos.

Não há dúvida que reduzir o incentivo à arbitragem aumentando o período de não isenção do ICMS para mais de um ano também reduz o incentivo a este investimento específico que é a aquisição de veículos por locadoras para o objetivo de locação.

No entanto, dada a TF, pode-se questionar o próprio mérito do objetivo “incentivar investimentos” neste caso. O que há de importante nesse incentivo a investimentos, ao final e ao cabo, é o incremento da capacidade de produzir bens e serviços pelo incremento do estoque de bens de capital na economia.

No caso em tela, no entanto, estamos discutindo a própria redução do período em que veículos funcionam como bens de capital e, portanto que integram o estoque de bens de capital na economia. Quando os veículos são revendidos para consumidores finais, de fato, acontece um “desinvestimento” da locadora, reduzindo aquele estoque de capital.

Ou seja, ao estimular o investimento em veículos mantendo a isenção parcial do ICMS por período inferior a um ano, teríamos também uma redução da vida útil deste capital, o que tem o efeito oposto ao desejado que é reduzir o estoque de capital da economia.

Sendo assim, como o período de isenção afeta as duas variáveis, o investimento e o desinvestimento neste tipo de bem de capital específico, os veículos de locadoras, cabe ter como objetivo ampliar o “investimento líquido” para um dado período de tempo, o que seria dado pela diferença entre a aquisição e a venda dos veículos pelas locadoras. Com esta métrica, o ganho da política pública de reduzir o ICMS para veículos revendidos por locadoras se reduz bastante.

  • Conclusões

Mesmo em uma regra em que não houvesse qualquer isenção do ICMS com muito tempo de uso do veículo nas locadoras (por exemplo, cinco anos), permanece havendo ainda incentivo na aquisição de veículos bens de capital pelas locadoras por meio do desconto de 90% de ICMS (referência São Paulo) dado que a alíquota incidirá em um preço do automóvel muito menor e ainda mais longe no tempo. E com um agravante: dado haver uma quilometragem média maior dos veículos de locadoras, gerando uma depreciação real maior do veículo, o preço desses usados específicos tendem a ser bem menores, reduzindo a base de incidência do ICMS na hipótese de inexistência de isenção. Ou seja, o incentivo inicial da isenção na compra

Além do tempo mínimo para a venda com isenção, outras regras são plausíveis para o mesmo objetivo de desincentivar a arbitragem tributária. Por exemplo, é possível escalonar a isenção do ICMS das locadoras conforme o tempo. Ou seja, não é necessário ter uma solução de um período de tempo fixo (hoje de um ano) em que para mais a isenção é completa e para menos não há isenção alguma. A não isenção pode ser mais gradual.

No entanto, a virtude da regra atual é sua grande simplicidade: até um determinado período (de um ano como atualmente ou qualquer outro período fixo), não tem isenção alguma e após este período isenção total. Tratando-se do ICMS, simplicidade é algo muito relevante e, portanto, complexificar a regra com escalonamentos não deve ser uma boa ideia.

Com base na premissa de reduzir o incentivo para a arbitragem tributária e manter a simplicidade da regra, seria interessante ampliar o prazo de não isenção de um para dois anos ou mais, não sendo impensável que simplesmente se acabe com a isenção do ICMS para a revenda de veículos de locadoras, dada a TF bem identificada pelo STF. De outro lado, caberia também manter a redução do ICMS para a revenda de veículos entre locadoras, inclusive sem prazo algum dado que a TF não se observa e o automóvel se mantém como bem de capital.


[1] Ver art. 1º inciso IV do DECRETO Nº 66.391, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2021 do Estado de São Paulo que altera o Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – RICMS do Estado de São Paulo. https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Decreto-66391-de-2021.aspx

[2] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=16085

[3] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344342941&ext=.pdf

[4] https://trademap.com.br/agencia/analises-e-relatorios/icms-locadoras-localiza-rent3-movida-movi3#:~:text=Isso%20porque%20as%20locadoras%20de,ap%C3%B3s%2012%20meses%20de%20uso.

Características Econômicas das Grandes Plataformas Digitais e o Poder de Mercado

César Mattos

O poder econômico das grandes plataformas digitais (ou “Big Techs”) tem sido cada vez mais destacado nas análises de concorrência em todo o mundo. O fundamental Relatório do Congresso Americano-RCA-(2020)[1] sobre concorrência e Big Techs, organizado pela atual Presidente da Federal Trade Commission (FTC) americana, Lina Khan, descreve o que seriam as condutas anticompetitivas das quatro principais plataformas: Google, Amazon. Facebook e Apple.

A emergência deste fenômeno é algo relativamente novo, tendo início neste século e surpreendendo com a rapidez com que aconteceu. Wu (2018)[2] aponta a grande concentração de mercado nas Big Techs: “de repente, não havia uma dúzia de mecanismos de busca, cada um com uma ideia diferente, mas apenas um mecanismo de busca (o Google). Não havia mais centenas de lojas que todos iam, mas apenas uma “loja de tudo” (a Amazon). E evitar o Facebook era como fazer de você mesmo um hermitão digital”.

Além dos vários casos antitruste que apareceram e continuam surgindo no mundo, a partir do Relatório americano de 2020 foi proposto em 2022, o American Innovation and Choice Online Act[3] para conter este processo de concentração pela via regulatória. O Digital Market Act (DMA) Europeu também caminha na mesma direção. Ambas as iniciativas americana e europeia apresentam uma postura hostil ao conjunto de condutas de self-preferencing, que ocorre quando a Big Tech privilegia empresas de seu grupo em detrimento de outras.

Mas afinal, quais são as características econômicas das Big Techs que propiciam esta tendência de concentração dos mercados de plataformas digitais? O objetivo deste artigo é fazer uma síntese de quais elementos explicariam este fenômeno. Vejamos um a um.

Efeitos de Rede

Quando uma plataforma digital traz diferentes grupos de usuários para interagirem, são gerados “efeitos de rede” (network effects): quanto mais usuários, maior o valor da plataforma para cada usuário.

Esta característica repete a falha de mercado dos mercados de telecomunicações, a qual justificou a regulação de interconexão neste setor. Como o valor de um telefone para qualquer pessoa se deriva de quantas pessoas de suas relações também possuem telefones e podem ser contactados, uma nova companhia telefônica que entre no mercado, mas que não seja capaz de se interconectar com os usuários da empresa incumbente, não será de grande valor, ainda que tenha a melhor tecnologia e serviço disponível.

Da mesma forma, uma rede social como o Facebook, o Instagram, o Twitter ou o Linkedin apenas atraem mais usuários porque já têm muitos usuários com quem se deseja interagir. Documentos internos do Facebook[4], inclusive com falas de Mark Zuckerberg, indicam que a empresa montou sua estratégia de competição apoiada no reforço destes efeitos de rede na “família de produtos” desta rede social.

A questão econômica relevante é que, de um lado, os efeitos de rede induzem a uma lógica “the winner takes most[5] ou “the winner takes it all[6], o que concentra o mercado. De outro lado, a realização desses efeitos de rede pela interação entre usuários é, ao mesmo tempo, positiva para os usuários, o que é um benefício. 

O RCA (2020) aponta dois tipos principais de efeitos de rede nos mercados digitais. Primeiro, os “efeitos diretos” nos quais quanto mais pessoas usam um produto, mais pessoas obtêm valor desse produto como é o caso dos serviços de E-mail ou Whats app por exemplo.

Segundo, há os chamados efeitos de rede indiretos quando o maior uso de um serviço digital estabelece um padrão tecnológico no setor que induz terceiros a inventarem e desenvolverem produtos com tecnologias compatíveis e que podem ser utilizadas de forma complementar ao serviço digital inicial. Essa multiplicação de serviços compatíveis reforça a popularidade dos serviços originais, o que constitui os efeitos de rede indiretos. Estes são muito relevantes nas duas grandes lojas de aplicativos, Apple Store (sistema ioS) e Google Play (sistema Android).

Mercados de Dois ou Vários Lados

Os usuários das plataformas podem estar “no mesmo lado” ou em “mais de um lado” do mercado. O Google oferece acesso não apenas para os usuários finais que realizam buscas na internet em “um lado do mercado” como para os sites a serem acessados, no “outro lado do mercado”. O Google também intermedeia os usuários finais em um lado com outros sites de acesso no outro lado que, por sua vez, intermediarão estes com sites em um terceiro lado. 

A questão relevante aqui é que a microeconomia de mercados de mais de um lado é diferente da convencional e isso afeta diretamente a lógica da análise concorrencial. Por exemplo, como destacado pela OCDE (2022), os testes SSNIP (o que acontece com a quantidade e o lucro quando há um pequeno, mas substantivo e não transitório aumento nos preços), usados para delimitar mercados relevantes na análise concorrencial, devem ser completamente ajustados em mercados de vários lados. Isso porque passam a ser requeridos múltiplas interações, estimando o impacto inicial de um aumento de preço em um lado, a reação em outros lados e o retorno dos efeitos nestes outros lados no lado original. Nesse contexto, não faz sentido pensar no exercício de poder de mercado em apenas um lado da plataforma, cabendo avaliar as elasticidades da demanda e as taxas de desvio (diversion ratios) dos usuários de uma plataforma a outra em resposta a alterações em preços relativos em todos os lados dos mercados analisados.

Estas múltiplas interações fazem com que o cálculo das participações de mercado e índices de concentração se tornem menos significativos para a análise concorrencial nos mercados com mais de um lado, dado que não capturam as relações em todos os lados das plataformas e entre plataformas.

Note-se o incentivo para subsídios cruzados entre os diversos lados do mercado. Por exemplo, se a existência de muitos usuários em um lado do mercado gera maior atratividade para aderir ao outro lado, os usuários desse último se tornam mais dispostos a pagar pelo produto. Daí pode fazer sentido reduzir bastante o preço no primeiro lado para induzir à adesão no segundo lado, inclusive podendo cobrar mais. É o caso de casas noturnas em que homens (um lado do mercado) pagam mais do que mulheres (o outro lado do mercado), o que no mundo digital tem o seu equivalente em sites de namoro como o Tinder[7]. Assim, se o “preço” do lado feminino estiver abaixo do custo não quer dizer que haja uma conduta de preço predatório, pois é economicamente racional subsidiar este lado para atrair mais usuários para o outro lado que se tornará mais disposto a pagar mais caro.

Para avaliar se isso é uma conduta anticompetitiva, cabe verificar se preços abaixo de custo em um dos lados é lucrativo porque amplia a base de usuários, gerando receitas em outros lados, ou apenas porque enfraquece concorrentes. O problema é diferenciar as duas.

Economias de Escala[8] e Escopo[9]

“junte todos os nossos produtos, e assim nós prenderemos os consumidores ainda mais em nosso ecossistema”     Stevie Jobs

Os mercados digitais apresentam altos custos fixos para desenvolver a plataforma, incluindo hardware e armazenamento de dados, e custos variáveis e marginais baixos para incorporar cada novo usuário. Isso inclusive em produtos relevantes distintos, mas relacionados, com custos comuns de hardware e de know-how sobre como operar a plataforma, configurando economias de escopo. Conforme o CADE (2021)[10], em alguns casos, os “custos e/ou dados de desenvolvimento podem ser compartilhados entre linhas de negócios. Inclusive, os aplicativos podem ter uma aparência e um comportamento parecidos para que os usuários se acostumem com as plataformas de forma mais rápida”.

Tanto como nos efeitos de rede, economias de escala e escopo induzem a mercados mais concentrados (um custo), mas tais estruturas são mais eficientes por reduzir o custo médio da plataforma (um benefício), tal como ocorre nos mercados de infraestrutura que têm alta proporção custo fixo/variável.

O CADE (2021) ressalta que os mercados digitais, diferente dos setores de infraestrutura, possuem a chamada “escala sem massa”, por não possuírem um bem tangível físico, possibilitando às plataformas crescer de maneira mais rápida e barata comparativamente aos mercados de bens físicos e com custos marginais de processamento, armazenamento, replicação e transmissão de dados muito baixos. Isso, no entanto, vale tanto para incumbentes quanto para entrantes, o que indica não representar uma barreira à entrada no sentido de Stigler.

Vantagem da Firma Pioneira

Um ponto comum das quatro Big Techs é o desafio bem sucedido às então “firmas pioneiras”, questionando o que se considera usualmente como a vantagem de ser incumbente pelas autoridades de concorrência.

De fato, segundo Picker (2020)[11], em julho de 2001, a FTC iniciou investigação sobre os mecanismos de busca da Microsoft, AOL Time Warner, AltaVista, Direct Hit Technologies, iWon, Looksmart e Terra Lycos. O curioso é que nesse momento o Google era tão pequeno em relação a essas outras empresas (e só as duas primeiras ainda existem!!!!) que não integrava a lista das investigadas. Apenas dois anos depois, o Google já era considerado o líder claro deste mercado, tendo a Microsoft chegado a propor uma aquisição do Google que foi recusada pela empresa.

Conforme Picker (2020), a Apple que lançou o iPhone em janeiro de 2007 desafiando as posições dos incumbentes Research in Motion (RIM) que aperfeiçoava o seu Blackberry original e da clara líder em aparelhos celulares, a Nokia. A loja de aplicativos da Apple, um conceito até então inexistente, foi aberta um ano e meio depois.

Prossegue o autor, lembrando que Jeff Bezos lançou a Amazon em julho de 1995 para vender livros online, disputando o mercado com incumbentes bem estabelecidos como as livrarias Barnes & Noble e Borders. A empresa estende sua venda de livros para CDs e DVDs em 1998 e eletrônicos em 1999. A partir de outubro de 1999, começa a vender vários produtos de terceiros em seu novo programa zShops. Nesse alcance maior de produtos, uma das concorrentes da Amazon é a Walmart que teve em 1996 um faturamento de US$ 93,6 bilhões, muito maior que o da Amazon em seu negócio com livros no mesmo ano de US$ 15,7 milhões.

Por fim, Picker (2020) aponta que quando Mark Zuckerberg lançou o Facebook em 2004, já existiam redes sociais, sendo a mais conhecida a Friendster.com, a Tribe.net de 2003, a Tickle (de encontros amorosos) e o Linkedin (profissional). A SixDegrees.com havia sido lançada em 1997, mas não deu certo. O Myspace chegou a ser a maior rede social em julho de 2005, antes de ser ultrapassado pelo Facebook.

No entanto, apesar de não serem tão pioneiras assim, as Big Techs conseguiram “enraizar” (uma medida de como firmas pioneiras conseguem adquirir uma vantagem sobre entrantes) melhor a sua posição dominante do que os predecessores e a dificuldade de entrada parece maior que antes.

Um exemplo relevante de maior “enraizamento” da posição dominante é o do Google. O RCA (2020) aponta que a indexação de títulos da busca requer elevados custos fixos e grandes capacidades de armazenamento e de computação. O rastreamento da internet (web crawling) é custoso e favoreceu o pioneirismo do Google que rastreou toda a rede mundial de computadores. E o custo deste rastreamento, mesmo com o avanço da tecnologia, aumentou muito por causa do crescimento exponencial da internet.

A grande vantagem da firma pioneira “Google” ou “Bing” (da Microsoft) decorre do fato que, como ser rastreado pode causar danos às páginas, as maiores páginas da web permitem a apenas uma pequena parte dos “rastreadores” existentes rastrearem suas páginas. Ao mesmo tempo não estar nos índices dos principais buscadores, Google e Bing, implica perder tráfego. Assim, as principais páginas da Web autorizam o rastreamento apenas daqueles buscadores principais. Ou seja, buscadores entrantes serão provavelmente bloqueados pelas principais páginas da web, dificultando sua operação. Buscadores horizontais como Yahoo e DuckDuckGo não rastreiam, mas adquirem acesso dos índices de Google e Bing por meio de acordos. Esta atuação dependente reduz, naturalmente, o vigor competitivo daqueles buscadores.

Custos de Troca e Dados

Os usuários investem tempo e esforço para utilizar uma plataforma, gerando custos de troca.

A plataforma, por sua vez, coleta e “acumula” os dados desses usuários. No caso de redes sociais como o Facebook ou Instagram, são fotos, vídeos, textos e outras informações que os usuários vão postando e que se tornam os seus “dados” naquelas plataformas.

Nesse contexto, se um usuário desejar mudar de plataforma, mas não puder levar este histórico de dados, há custos de troca (switching costs), reduzindo a capacidade de entrantes capturarem a clientela (locked-in) dos incumbentes.

Conforme o RCA (2020), no Facebook, os usuários não são capazes de migrar ou fazer o download de seus dados para uma plataforma concorrente. Caso quisesse migrar, o usuário teria que refazer o upload de suas fotos e informação pessoal na nova plataforma. Na Amazon, quando um vendedor online já gerou várias avaliações de produto, terá problemas similares de recuperação desses rankings se migrar para outra plataforma.

Mesmo para aplicativos, o custo de troca pode ser alto. Um exemplo são os usuários do Spotify que quando assinam pelo Facebook, conforme o RCA (2020) “não conseguem desconectar o Spotify do Facebook”. Para fazê-lo, apenas por uma nova conta no Spotify, o que implica perder as playlists, história do que escutou e outros dados do aplicativo.

A regulação da “portabilidade de dados” visa justamente reduzir esses custos de troca, dando conveniência para o usuário migrar de plataforma, promovendo a concorrência. Por isso é uma medida de promoção da concorrência indicada no RCA (2020).

O CADE (2021) foi particularmente sanguíneo quanto a restrições de uma plataforma relativamente à negativa de portabilidade dos dados, entendendo que tais restrições seriam anticompetitivas quase per se.

Relacionada à regulação de portabilidade de dados está a interoperabilidade das plataformas, o que também diminui custos de troca dos usuários. Quanto mais os sistemas se comunicarem, mais fácil para os usuários não só trocarem de plataformas, mas também usarem as duas simultaneamente, fazendo o multihoming, o que favorece a concorrência.

O mais importante é que, conforme lembra o RCA (2020), a interoperabilidade “quebra o poder dos efeitos de rede”, ao permitir que os entrantes também se beneficiem destes efeitos “ao nível do mercado e não apenas ao nível da firma”. 

Obrigar a interoperar pela regulação, por outro lado, pode impor restrições à inovação já que o desenho dos produtos estará sempre condicionado a ter que interoperar com outros produtos. Essa restrição técnica será tão mais significativa quanto mais diferentes e/ou inovadores forem aqueles. De fato, de um lado, o desenho de um produto pode ser concebido de forma deliberada para restringir a interoperabilidade e/ou a portabilidade de dados, diminuindo a concorrência.

De outro lado, o próprio fato de haver muita inovação pode gerar uma dificuldade técnica genuína de o inovador promover a interoperabilidade com as plataformas existentes. O produto é tão diferente do que existe que dificulta tecnicamente a ser interoperável. Alternativamente, para viabilizar a interoperabilidade, é possível que o inovador tenha que tornar o seu novo produto um “pouco menos diferente”, o que pode reduzir o próprio grau de inovação. Em síntese, pode haver um trade-off grau de inovação/interoperabilidade.   

Papel Competitivo dos Dados em Mercados Digitais

Dados são o novo óleo”. Clive Humby, 2006

A aprendizagem dos vendedores sobre como agem os consumidores é decorrência do tempo e das transações realizadas nesse período em qualquer negócio. Quanto mais transações, mais se aprende sobre os consumidores. Tocar um negócio é intensivo em experiência. 

Em mercados digitais, esse aprendizado é particularmente intenso e se faz com a intermediação da plataforma que dispõe de ferramentas que continuamente analisam tudo o que está sendo feito (ou clicado) pelos usuários. Mais do que nunca, a geração de dados sobre os usuários é resultado do próprio “processo produtivo” das plataformas que vai “revelando” continuamente como se comportam.

Os dados são gerados inclusive daqueles que não concretizaram as transações, algo que nos mercados físicos os vendedores apresentam capacidade de observação bem mais reduzida sobre os comportamentos dos usuários. Quem já fez uma busca de um destino em site de viagem, por exemplo, mesmo sem ter comprado já teve a experiencia de, logo depois, receber várias ofertas exatamente para este destino.  É como uma “câmera espiã” contínua funcionando no “chão de fábrica” dos mercados digitais. O fato é que a capacidade de as plataformas processarem e avaliarem os dados dos usuários é multiplicada várias vezes nos mercados digitais. Conforme o CADE (2021), os dados constituem um insumo tão essencial nos mercados digitais que pode se falar de “economias de escala dinâmicas” derivadas disso.

E quanto mais usuários uma plataforma tiver, mais ela terá acesso a dados. Como é difícil para entrantes replicar a quantidade de dados e aprendizado das plataformas incumbentes, há dificuldade para os primeiros em entender tão bem o comportamento dos usuários quanto os segundos, o que é mais um indutor à concentração de mercados.

Cientes desta vantagem competitiva dos dados, os incumbentes muitas vezes buscam ampliá-la, coletando também informações dos usuários de seus concorrentes que acessam sua plataforma ao mesmo tempo que dificultam o acesso aos seus próprios dados.

Uma consequência fundamental dessa enorme capacidade de conhecer o usuário nas plataformas digitais é poder direcionar propaganda para os usuários mais predispostos a serem influenciados. Ou seja, os gastos de marketing são particularmente eficazes no mundo digital, tendendo a atingir mais diretamente o público-alvo, o que resulta em mais vendas por dólar investido em propaganda.

Para terem capacidade de gerar valor, no entanto, os dados devem ser intensamente trabalhados. Como Clive Humby[12] ressaltou: “isso (o óleo) tem valor, mas se não for refinado, não poderá ser efetivamente utilizado. Ele tem que ser transformado em gás, plástico, químicos etc  para criar algo valioso que direciona a atividade lucrativa; logo os dados devem ser desagregados, analisados para terem valor”  

Petit e Teece (2021) [13] destacam que dados podem ser tidos como o novo lego: “o problema que os dados colocam para os negócios é muito prático. Tem a ver com analisar, organizar, combinar e utilizar os dados para criar novos produtos, modelos de negócios e oportunidades comerciais. Uma miríade de combinações é possível. Para levar a metáfora adiante, em um mundo de informação digitalizada, as firmas digitais são desafiadas a construir milhões de peças de legos, só que sem as instruções. A vantagem competitiva é criada pela capacidade de criativamente combinar ciência de dados, tecnologia e negócios. Não se pode concluir que o controle passivo sobre grandes bancos de dados permite à firma viver uma vida tranquila. Ao contrário, a “orquestração” dos dados é um elemento crítico e requer fortes capacidades dinâmicas”.

Isso implica que nos mercados digitais a capacidade de acessar, processar e utilizar uma enorme massa de dados (montar os milhões de legos) é parte indistinguível do processo concorrencial.

Assim, uma regulação de portabilidade de dados deve ser muito cuidadosa. De um lado, os “dados” que, regulatoriamente, devem ser “portados” não podem ser aqueles já trabalhados sob pena de expropriar a empresa justamente naquilo que define o seu esforço na “competição nos méritos”, destruindo os incentivos à concorrência que se deseja gerar. Assim, cabe limitar a regulação de portabilidade aos dados mais brutos, àquele diamante sem lapidação, não estendendo aos dados mais trabalhados.

De outro lado, esta portabilidade dos dados mais brutos de cada usuário de uma plataforma para outra equivale a apenas uma parte ínfima das milhões de peças de lego com as quais a primeira plataforma está construindo a sua forma de operação. O impacto real na capacidade de competir da plataforma para a qual ocorre a migração dos dados do usuário pode ser muito pequena para justificar a regulação.

A OCDE (2022) recomenda uma regra para avaliar o papel dos dados na concorrência, o que pode ser pensado como uma forma de evitar uma regulação excessiva. É importante considerar para cada mercado se

  1. o conjunto de dados é único ou obtenível de outras fontes;
  2. o conjunto de dados é replicável facilmente ou não;
  3. há economias de escala e escopo associadas à coleta, uso e armazenamento destes dados;
  4. há algum tipo de “lock-in” que impede que os dados sejam interoperáveis.

Modelo de Negócio Baseado em Propaganda

“quando propaganda está envolvida, você, o usuário, é o produto” Fundadores do Whats app

O RCA (2020) reporta que Google e Facebook representam 99% do crescimento anual do mercado de propaganda digital americano, dando uma dimensão da importância das Big Techs no segmento. Isso está associado à “produtividade” da propaganda propiciada pela coleta de dados dos usuários das Big Techs apontada acima.

Quando o modelo de negócio é muito baseado em propaganda, os preços são muito baixos ou mesmo zero, o que remove uma importante forma de competir, desviando clientela para entrantes via preços mais baixos. Conforme a OCDE (2022)[14], “sete das dez maiores companhias globais trabalham com produtos e serviços a preço zero nos mercados digitais”.

Como o serviço não tem preço, as ferramentas de delimitação de mercado clássicas do antitruste como o efeito de “um aumento pequeno, mas significativo e não transitório” de preços não apresenta qualquer serventia.

Concorrência Baseada em Inovações

Schumpeter (1950) criticava a microeconomia convencional que via como principal virtude da concorrência a redução de preços. Conforme o autor, a competição por meio da “destruição criativa” seria muito mais importante para a economia do que por meio da “redução de preços”:

na realidade capitalista, que é diferente daquela mostrada nos livros textos, não é a competição de preços que conta, mas a competição que vem do novo produto, da nova tecnologia, da nova fonte de oferta, do novo tipo de organização…..aquela que comanda uma vantagem decisiva de custo ou qualidade, a qual afeta não as margens dos lucros e produtos das firmas existentes mas os seus fundamentos e a sua própria existência. Este tipo de competição é tão mais efetiva que a outra, que seria como se comparássemos um bombardeio a um arrombamento de uma porta”.

Mais do que nunca, a concorrência nos mercados digitais se aproxima de Schumpeter, com o foco em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), inovação e qualidade do produto. Petit e Teece (2021) defendem, inclusive, uma mudança no paradigma de análise das agências de concorrência: “a concorrência estática domina os modelos analíticos empregados na política de concorrência….(i) faz uso extensivo de modelos de equilíbrio enquanto as tecnologias digitais apresentam propriedades de desequilíbrio; (ii) conta essencialmente com a expertise de economia industrial e apenas marginalmente utiliza “insights” da literatura de negócios e gestão de tecnologia; e (iii) frequentemente elimina incerteza de maneira a formular regras simples. Estamos, portanto, ainda longe de uma mudança de paradigma coerente para alguns funcionários de agências e instituições de concorrência”.

Uma diferença analítica fundamental defendida por estes autores quando a concorrência é Schumpeteriana e muito baseada em inovações faz conexão aos questionamentos já trazidos em seção anterior sobre a “vantagem da firma pioneira”. Enquanto as agências antitruste consideram a incumbência como uma vantagem competitiva em si com o conhecimento do mercado e do negócio e a lealdade dos consumidores à marca, a literatura sobre gestão de tecnologia considera a incumbência muitas vezes como uma desvantagem. Incumbentes estariam relativamente mais presos à “sabedoria da gestão convencional”, aos valores estabelecidos nas redes ou às trajetórias tecnológicas existentes, o que prejudicaria sua propensão a inovar.

A ideia de Schumpeter de “destruição criativa” já embutiria esta diferença entre os dois paradigmas. O conceito é formado de duas palavras, uma positiva “criativa” e outra negativa “destruição”. A parte “positiva” diz respeito ao fato de que empreendedores, usualmente entrantes, criam novos produtos ou novas formas de produzi-los, incrementando o bem-estar.

Tais novidades podem ser tão superiores aos produtos existentes que os consumidores substituem os antigos pelos novos. E daí vem a “parte negativa”: os negócios existentes que têm substituídos os seus produtos podem ser “destruídos”. Na verdade, dado o “efeito substituição” da inovação[15], os entrantes tendem a inovar e “destruir criativamente” mais do que os incumbentes. Isso mitigaria a preocupação concorrencial usual das agências antitruste nos mercados com muita inovação em geral, e nos mercados virtuais em particular.

Assim, a incumbência nos mercados digitais, onde a concorrência é regida pela inovação, pode ser simultaneamente uma vantagem e um fardo.

Verticalização

Os mercados virtuais são verticalizados e as preocupações concorrenciais usuais que ocorrem quando pelo menos um dos elos apresenta características monopolistas e pode discriminar terceiros em outros elos são aplicáveis.

Sendo verticalizadas, as plataformas teriam um “papel duplo” de fornecedores e concorrentes de serviços com outras plataformas. A questão competitiva chave dos mercados digitais seria a exploração do “poder de controle de acesso”[16] pelas plataformas dominantes na mesma linha da chamada “facilidade essencial”.

O RCA (2020) aponta para a necessidade de medidas de quebra vertical de Big Techs, tal como foi utilizado nos casos históricos da Standard Oil e AT&T e que as agências desejaram aplicar na Microsoft. Havendo esta quebra, muitas relações econômicas que hoje ocorrem dentro da Big Tech passariam a ser regidas apenas pelo mercado. Conforme Petit e Teece (2021), isso faria perder importantes economias de coordenação nos mercados digitais: “Criar e orquestrar ativos digitais de forma a alcançar um valor aos clientes finais envolve atingir uma convergência de expectativas dentro da gestão do ecossistema de um tipo que o sistema de preços não é capaz de atingir por ele mesmo”.

As economias de escopo nos dados em especial podem ser perdidas. Não há algo como os dados que vão servir para uma linha de negócio “A” e outros dados separados que vão servir para a linha de negócio “B”. Dados provenientes de “A” servem para “A”, “B” e “C”. Como colocado por Petit e Teece (2020) “os dados vêm de várias fontes diferentes e podem ser utilizados de várias formas diferentes, é frequentemente impossível saber ex-ante de quais fontes e de quais usos serão gerados mais valor”.  

Vieses Comportamentais em Mercados Digitais

Como destacado no RCA (2020), osvieses comportamentais dos consumidores seriam particularmente fortes nos mercados virtuais como i) o viés de enquadramento (framing bias), quando a decisão de compra é influenciada pela forma que as diferentes opções são apresentadas; ii) o viés de saliência (salience bias) com decisões focando no item mais proeminente e iii) o viés de default, com baixa tendência a alterar a escolha para ofertas inequivocamente melhores.

Estes vieses facilitariam a estratégia das Big Techs de implementar o self-preferencing. Quando a Apple, por exemplo, coloca nos iphones, os seus próprios aplicativos como “default”, está usando este tipo de viés para induzir os usuários a utilizá-los em lugar de aplicativos concorrentes em um típico self-preferencing.

Para se ter uma ideia das dificuldades que seriam impostas à regulação se, porventura, buscasse, eliminar o reforço dos vieses comportamentais pelas grandes plataformas, imagine-se que o regulador proíba que a Apple ou o Google coloquem seus próprios aplicativos como default nos smartphones, tal como fazem hoje. Assim, a plataforma poderia colocar o aplicativo de um terceiro, mas não o seu como default? Isso não geraria enorme desincentivo à inovação nos aplicativos da Big Tech?

O consumidor não perderia em termos de funcionamento com os aplicativos próprios da Big Tech melhor calibrados para o aparelho ou sistema operacional respectivo?

Alternativamente se for proibido colocar aplicativos próprios como default, aumentam-se os custos de uso, obrigando ao consumidor correr atrás de todos os aplicativos que deseja em lugar de ter a comodidade de ter pelo menos os principais já instalados no smartphone.

Outra opção seria obrigar a Big Tech colocar todos os aplicativos existentes para uma dada função (por exemplo, maps) no celular, de forma a não haver discriminação. A questão é que se isso for imposto para todos os aplicativos com concorrentes, sobrecarregaria o sistema? E ainda haveria intermináveis discussões regulatórias quando a Big Tech entender que algum aplicativo de terceiros puder prejudicar o funcionamento do aparelho do sistema operacional ou de outras funções. Enfim, mitigar os vieses comportamentais pela via regulatória está longe de ser trivial.

Conclusões

As características econômicas das plataformas digitais apresentam várias peculiaridades que, de fato, geram uma tendência à concentração do mercado, o que suscita preocupações concorrenciais. Estas mesmas características, ao mesmo tempo, indicam não ser eficiente uma oferta com muitos agentes.

Nesse ponto há paralelos a se fazer com os mercados de infraestrutura com monopólios naturais e com integração vertical. E muito da discussão regulatória se dá em relação a como não perder economias de escala e escopo, mas garantir acesso às plataformas que tenham se tornado insumos essenciais para os serviços. 

Em particular, a relação entre vigor concorrencial e concentração de mercado não é clara, sendo medidas como o HHI ou o C4 de pouca serventia.

Economistas da área de concorrência e regulação são mais preocupados com a possibilidade de que uma intervenção excessivamente tardia possa tornar o poder de mercado dos incumbentes perene, sem chances de contestação.
Haveria, ademais, similaridade da necessidade de acesso dos concorrentes aos serviços principais das Big Techs com o que ocorre com monopólios naturais verticalmente integrados na infraestrutura, o que pressupõe uma lógica típica de facilidade essencial.

Já economistas da tecnologia com um viés mais Schumpeteriano acreditam que sempre há um entrante disruptivo à espreita que, com muito capital humano, pode achar formas mais inovadoras de “montar os legos” dos dados dos usuários e do mercado e superar boa parte da aparente inércia da incumbência. Esta inexpugnável economia de escala e escopo no uso de dados seria, na verdade, uma grande ilusão, sendo que inteligência artificial e machine learning seriam os novos veículos do processo de destruição criativa Schumpeteriana que estão longe de serem monopólios dos incumbentes apenas pela quantidade maior de dados que dispõem.

Ademais, os economistas da tecnologia não acreditam tanto que o acesso ao serviço principal das Big Techs seja realmente “essencial”, mas apenas uma forma mais cômoda e menos custosa de entrar. Até porque seria quase uma contradição um entrante “disruptivo raiz” depender do negócio que está a ser “criativamente destruído”.

As características econômicas distintivas dos mercados digitais jogam alguma luz sobre por que têm surgido tantas questões concorrenciais no setor. Em outros artigos discutiremos um pouco mais das condutas das plataformas digitais que vêm sendo analisadas pelas agencias antitruste mundo afora e as iniciativas de regulá-las.        


[1] Investigation of Competition in Digital Markets. competition_in_digital_markets.pdf (house.gov)

[2] Wu,T.: “The Curse of Bigness”. Antitrust in the New Gilded Age. Columbia Global Reports.

[3] H.R.3816 – 117th Congress (2021-2022): American Choice and Innovation Online Act | Congress.gov | Library of Congress

[4] Ver RCA (2020).

[5] O ganhador leva a grande parte.

[6] O ganhador leva tudo.

[7] Aqui o “preço” pode ser entendido como vantagens e promoções que são dadas pelo site a um ou outro lado do mercado.

[8] Economias de escala ocorrem quando os custos médios caem quando o produto aumenta, Custos fixos elevados podem ter este efeito ao serem mais diluídos com o aumento do produto. 

[9] Economias de escopo ocorrem quando é mais barato produzir dois produtos juntos do que separados. Custos comuns entre os dois produtos, muitas vezes fixos, podem ser a fonte das economias de escopo.

[10] MERCADO DE PLATAFORMAS DIGITAIS – CADERNOS DO CADE https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/plataformas-digitais.pdf. Agosto de 2021

[11] https://judiciary.house.gov/uploadedfiles/submission_from_randalpicker.pdf.

[12] Ver nesta interessante referência sobre o assunto de Amol Mavoduru Is Data Really the New Oil in the 21st Century? | Towards Data Science.

[13] Petit,N. e Teece,D.: “Innovating Big Tech Firms and Competition Policy: favoring dynamic over static competition”. Industrial and Corporate Change, Vol. 30, Issue 5, October 2021.

[14] OECD Handbook on Competition Policy in the Digital Age 2022. OECD Handbook on Competition Policy in the Digital Age

[15] No caso das chamadas “inovações drásticas”, o entrante se transforma em monopolista (Reinganum, J.: Uncertain Innovation and Persistence of Monopoly.American Economic Review 73 (4), 1983).

[16] Gatekeeper power.