Marcio de Oliveira Junior*
Luiz Alberto Esteves**
Failing Firm Defense
A saída de uma empresa do mercado decorrente de sua falência pode implicar a diminuição da oferta e o aumento de participação de mercado das empresas sobreviventes, que, assim, aumentarão seu poder de mercado. Ademais, a failing firm defense reconhece que objetivos para além da concorrência podem ser considerados quando se analisa uma aquisição, entre os quais o de manter os ativos de uma empresa em estado falimentar em uso, de modo a garantir o emprego dos fatores de produção. Em assim sendo, a reprovação da venda de uma empresa pode causar prejuízos maiores que a aprovação, ainda que a venda seja feita para um concorrente com poder de mercado.
Do ponto de vista econômico, a doutrina é consistente com o princípio da eficiência, que pode ser aferida comparando-se os efeitos da saída da empresa em estado falimentar do mercado com aqueles decorrentes de sua aquisição, ainda que por um concorrente com poder de mercado. A saída da empresa em situação falimentar do mercado pode fazer com que seus ativos tenham outro uso, com menor valor social, ou fiquem ociosos, sem gerar emprego e renda. Em ambos os casos, haveria perda de bem-estar. A questão, portanto, seria estimar qual dos efeitos seria menor.
No entanto, a doutrina não prevê o sacrifício da concorrência a qualquer custo em prol da manutenção da operação dos ativos da empresa em situação falimentar. Na verdade, a doutrina propõe critérios objetivos para orientar a escolha a ser feita pela autoridade de concorrência ao avaliar essa possibilidade. Esses critérios foram incorporados aos guias para análise de fusões e aquisições usados pelas principais autoridades de concorrência.
O Horizontal Merger Guidelines de 2010 dos órgãos antitruste dos EUA (Federal Trade Commission e US Department of Justice) estabelece três exigências para a aplicação da doutrina: 1) a empresa adquirida deve estar prestes a falir, ou seja, incapaz de cumprir suas obrigações financeiras no curto prazo; 2) as perspectivas de recuperação da empresa que está sendo vendida devem ser inexistentes ou muito remotas, de acordo com o disposto no Bankruptcy Act; 3) não deve haver outros compradores para a empresa em estado falimentar ou para seu estoque de ativos; não havendo a aquisição da empresa em estado falimentar, seus ativos sairiam do mercado, gerando desemprego de capital e trabalho.
Na Europa, o Guidelines on the assessment of horizontal mergers under the Council Regulation on the control of concentrations between undertakings prevê que a failing firm defense será usada de forma excepcional. Três critérios são especialmente relevantes para seu uso: 1) a empresa em situação falimentar sairia do mercado em um futuro próximo devido a dificuldades financeiras caso não fosse adquirida; 2) não há alternativa de venda da empresa com menor impacto concorrencial; 3) na ausência da aquisição, os ativos da empresa em situação falimentar sairão do mercado.
O Guia para Análise dos Atos de Concentração Horizontal (Guia H) do CADE também trata da doutrina da empresa em situação falimentar, chamando-a de teoria da empresa insolvente. São três as condições cumulativas para a aplicação dessa teoria: 1) a empresa sairia do mercado caso reprovada a operação; 2) se a operação for reprovada, os ativos da empresa alvo não permaneceriam no mercado, causando uma possível redução da oferta e um maior nível de concentração, com consequente queda de bem-estar; 3) a empresa alvo deve demonstrar que buscou alternativas de venda com menor impacto concorrencial e que não há alternativa para se manter no mercado a não ser a aprovação da operação.
As condições para aplicação da doutrina nos três guias são similares e restritivas. Além disso, o ônus da prova cabe ao vendedor, que deve mostrar à autoridade de concorrência que se esforçou para obter compradores alternativos. Mas, principalmente em um período de forte retração econômica, um concorrente com poder de mercado pode ser o único interessado em adquirir a empresa em estado falimentar, por conhecer bem o setor de atividade, o que reduz os riscos da compra, e/ou pela necessidade de consolidação do mercado decorrente da queda da demanda. Nesse caso, o requisito de busca de um comprador alternativo que represente um menor impacto concorrencial pode nunca ser alcançado, inviabilizando a aplicação da failing firm defense.
No caso brasileiro, há uma restrição adicional, que torna o padrão probatório ainda mais oneroso ao vendedor. Essa restrição decorre da seguinte afirmação contida no Guia H do CADE:
“… o requisito de efeitos líquidos não-negativos deve ser preenchido. É dizer que o CADE deve concluir que os efeitos antitrustes decorrentes da reprovação da operação (e da, acredita-se, provável falência da empresa) seriam piores que a concentração gerada pela operação. O ônus da prova da existência desses elementos recai sobre as requerentes”.
Depreende-se dessa passagem do Guia H que o vendedor tem que provar ao CADE que os efeitos líquidos não são negativos, o que é bastante desafiador e pode impedir que a doutrina seja usada.
As restrições são rígidas e o ônus da prova é alto porque se trata de uma situação excepcional. No entanto, em um período de grave retração econômica como o que se avizinha, a doutrina da empresa falimentar tende a ganhar relevância. Para ter parâmetros sobre seu uso, as empresas que nela julgam se enquadrar poderiam buscar amparo na jurisprudência, mas são poucos os casos em que a failing firm defense foi usada. Seguem três exemplos sob a vigência da Lei nº 12.529/2011.
A compra da PSUAPE e da CITEPE (subsidiárias da Petrobras) pelo Grupo Petrotemex[1] foi impugnada pela Superintendência Geral (SG) do CADE com recomendação de aprovação mediante acordo, o que foi feito pelo Tribunal do órgão. O então Conselheiro João Paulo de Resende apresentou voto vogal em que discutiu o argumento de failing firm.
O voto vogal reconheceu a dificuldade financeira das empresas que foram vendidas, mas afastou a aplicação da doutrina da empresa falimentar ao questionar o argumento de que só havia um interessado nos ativos, que teria sido o único requisito demostrado pela vendedora (Petrobras). Para o ex-Conselheiro, o desenho dos processos de venda afeta o número de interessados. Como os concorrentes diretos valorizam mais os ativos à venda, suas ofertas serão maiores, desestimulando a participação de entrantes. Com base nesse argumento, o voto vogal propôs que as evidências apresentadas pela vendedora de que não havia vários compradores potenciais deveriam ser afastadas.
Embora o voto vogal tenha sido vencido, isso mostra como o padrão probatório para se aprovar uma aquisição com base na failing firm defense é restritivo.
Outro exemplo que ilustra o quão restritivos são os critérios da doutrina da empresa falimentar é a venda da Mataboi para a JBJ[2], em que foi elaborado um parecer do Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do CADE afastando a aplicação da doutrina para a aprovação da aquisição. O parecer da DEE/CADE afirma que, apesar de a Mataboi estar em recuperação judicial e de suas dificuldades financeiras, não houve a comprovação de que o plano de recuperação era inviável e que ela sairia do mercado sem a venda para a JBJ.
Em relação à possibilidade de outros compradores, o DEE/CADE afirmou que a vendedora deve provar (por meio de propostas públicas ou particulares críveis, por exemplo) que não houve outros interessados. Além de listar todos os interessados, a empresa deveria ainda fundamentar a rejeição caso não aceite alguma proposta com menor potencial de dano concorrencial. Como essa prova não foi feita, considerou-se que o critério de inexistência de compradores alternativos não foi cumprido.
O Tribunal do CADE corroborou a posição do DEE/CADE e concluiu que a doutrina da empresa em situação falimentar não se aplicava à operação de venda da Mataboi.
O terceiro exemplo que vale ser mencionado é a aquisição de controle da Neobus pela Marcopolo[3], que detinha 45% do capital social da empresa alvo e adquiriu os 55% restantes. As requerentes da operação informaram ao CADE que a operação viabilizaria a continuidade das atividades produtivas da Neobus, pois a empresa se encontrava em má situação financeira. Ressaltando que não estava aplicando a failing firm defense e que recuperação judicial da Neobus não foi analisada, a SG/CADE afirmou que não podia “deixar de considerar a situação econômica da empresa e a participação de 45% já detida pela Marcopolo” em seu capital social.
Portanto, a lei de defesa da concorrência não prevê um rito especial para empresas em situação falimentar, a jurisprudência é escassa e as condições previstas nos guias são restritivas e corretamente previstas para situações excepcionais. Além disso, os poucos casos em que a doutrina da empresa em situação falimentar foi discutida mostram que o ônus da prova é das empresas requerentes. Ainda, os precedentes não permitem às empresas ter informações precisas sobre qual padrão de provas é esperado pela autoridade, gerando incerteza. Nesse sentido, considerando que esta é uma crise excepcional e que a venda para concorrentes pode ser uma alternativa de saída do mercado para várias empresas, seria útil o CADE fornecer aos jurisdicionados algumas diretrizes sobre como lidará com a failing firm defense.
É com base nisso que propomos um mecanismo de screening que poderia ser adotado pela autoridade de concorrência para caracterizar a situação falimentar das empresas e a possibilidade de usar a failing firm defense. Com isso, as empresas teriam uma diretriz para saber quando é viável levar essa tese ao CADE, ainda que, por suposto, não consigam saber previamente se ela será aceita, pois isso depende da análise concorrencial a ser feita.
Uma Proposta de Screening Test para Failing Firm Defense
Comecemos pelas seguintes premissas: os agentes econômicos tomam decisões de investimento em condições de risco e incerteza. Por isso, projetam diferentes cenários para exercícios envolvendo fluxos de caixa, tais como a taxa interna de retorno (TIR) e o valor presente líquido (VPL). Isso ocorre porque muitas das variáveis que constituem os fluxos de caixa são aleatórias, tais como receitas e despesas futuras. O investidor também constrói cenários de estresse, bem como planos de contingência para mitigar eventuais riscos, de modo a assegurar a atratividade mínima do negócio.
Contudo, choques adversos imprevisíveis e exógenos, de grande magnitude, chamados de cisnes negros, podem proporcionar resultados muito piores que os inicialmente projetados pelos agentes econômicos quando da decisão pelo investimento. Situações do tipo cisnes negros são excepcionais e devem ser tratadas como tal.
Não parece um absurdo sugerir que um investidor que tenha incorrido em uma perda real decorrente de choques adversos muito superior àquela que seria normalmente esperada em uma análise estressada de investimento liquide sua posição de forma não estratégica (no-exit strategy), ou seja, se desfaça de seus ativos sem que os lucros esperados tenham sido realizados. Em uma situação do tipo cisne negro, tais ocorrências podem se tornar comuns. A questão passa a ser, então, como identificar as situações de no-exit strategy por meio de um screening test. É o que propomos a seguir.
Nosso objetivo é apresentar uma proposta para o caso de empresas que tenham (i) sofrido impactos negativos; (ii) queiram se desfazer de ativos de forma não estratégica (no-exit strategy); (iii) e que a operação de venda seja objeto de escrutínio pela autoridade antitruste. A proposta de screening test é composta de cinco passos:
- A autoridade de concorrência determina qual é o marco do evento adverso.
- Coletar informações da empresa que liquida os ativos (vendedora, ou alvo) para um período anterior ao marco. Por exemplo, coletar uma série histórica de variáveis de resultado, como as margens brutas ou receitas brutas mensais nos últimos cinco anos, pelo menos;
- A partir dos valores das distribuições das variáveis selecionadas, computar valores extremos negativos ( , que são thresholds distantes da média) que poderiam ser considerados em um cenário de estresse para uma análise de investimento com aquelas informações. Existem métodos alternativos de se obter esses thresholds a partir de uma distribuição estatística;
- Coletar informações da empresa que liquida os ativos para o período que sucede o marco. Trata-se das mesmas variáveis do segundo passo. Computar os valores médios das variáveis de interesse para o período pós-marco ( ).
- Subtrair o valor médio obtido no quarto passo do valor estressado (threshold) obtido terceiro passo ( ).
Um valor negativo da significa que a média observada pós-marco foi menor que o valor extremo negativo da distribuição anterior ao marco. A empresa, em função da crise econômica, está em uma situação pior que o extremo negativo que ela planejou quando fez o investimento. Nesse caso, a venda da empresa poderia ser encarada como uma saída não estratégica (no-exit strategy), pois a saída de um investidor ou empresa dos negócios em uma situação de estresse geralmente está associada a perdas inesperadas e exógenas que inviabilizariam a continuidade nos negócios. Em outras palavras, haveria uma evidência robusta de que a empresa à venda está em uma situação falimentar, e de que a sua venda (saída do mercado) não tem objetivos estratégicos (exit strategy), como, por exemplo, a realização de lucros.
Em adição a esses cinco passos, é importante que o CADE considere indicadores adicionais, como, por exemplo, a análise do Índice de Herfindahl-Hirschman (HHI). Se a for negativa e se a análise do HHI indicar mercados moderadamente concentrados, o CADE poderia considerar a análise da operação tomando como base a failing firm defense.
Considerações Finais.
Há algumas vantagens em se usar um mecanismo de screening. O CADE poderia reduzir a incerteza que cerca o tema failing firm. As próprias empresas poderiam fazer os cálculos e decidir se elas usarão o argumento. Como o número de empresas em dificuldade tende a crescer, a autoridade antitruste pode se beneficiar disso, pois as empresas que não atingirem as condições estabelecidas no teste acima saberiam de antemão que o CADE não aceitaria o argumento da empresa em situação falimentar. Além disso, essa metodologia seria aplicada a todos os setores de atividade, e não apenas àqueles que sofrem mais com a crise. Usando o mesmo critério objetivo, o CADE afastaria qualquer argumento de que privilegia alguns setores ou empresas e de que faz política industrial. Além disso, como a economia é cíclica, o mesmo mecanismo de screening poderia ser utilizado no futuro. Outra questão importante é que o CADE teria um critério objetivo de análise caso seja questionado por algum órgão de controle no futuro.
Há ainda outro ponto a destacar: para uma empresa provar que está em situação falimentar, ela deve mostrar que enfrenta problemas de fluxo de caixa por um longo período antes de sua venda. No entanto, um choque adverso como o atual é uma quebra estrutural, ou seja, ele pode deteriorar as condições financeiras de uma empresa que não necessariamente vinha tendo problemas no passado. Em outras palavras, o conteúdo informacional do passado cai e deixa de ser um bom previsor para o futuro. Nossa proposta contorna esse ponto, pois propõe como base de comparação um limite inferior de uma distribuição de probabilidade.
Em suma, considerando a gravidade da crise econômica, a expectativa de que muitas empresas irão enfrentar dificuldades financeiras, que a venda para concorrentes poderá ser uma alternativa de saída não estratégica do mercado e que há muita incerteza em relação à aplicação da failing firm defense, sugerimos que um mecanismo de screening como o que propomos seja adotado pelo CADE.
Por último, mas não menos importante, destacamos que esse é um instrumento para ser usado em situações excepcionais, do tipo cisne negro, quando há uma forte retração da economia.
[1] Ato de Concentração nº 08700.004163/2017-32.
[2] Ato de Concentração nº 08700.007553/2016-83.
[3] Ato de Concentração nº 08700.002084/2016-14.
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[*] Doutor em Economia. Foi Conselheiro e Presidente Interino do CADE. É Consultor da Charles River Associates (CRA) e sócio da Pakt Consultoria e Assessoria. E-mail: mdeoliveirajr@crai.com
[**] Doutor em Economia. Foi Economista-Chefe do CADE. É Consultor da Charles River Associates (CRA) e sócio da Pakt Consultoria e Assessoria. E-mail: luiz.esteves@pakt.com.br