Lucia Helena Salgado e Cristiane A. J. Schmidt
Quando foi indicada por Joe Biden para presidir o órgão antitruste americano – a Federal Trade Commission (FTC), em 2021 –, Lina Khan foi recebida com emoções conflitantes: júbilo, por parte de alguns profissionais da área, críticos à leniente aplicação da doutrina antitruste; espanto, por parte do público, em vista da sua pouca idade, 34 anos, e por ser a primeira mulher a presidir a FTC; e desapreço, por parte da indústria, especialmente de tecnologia, pois Khan faria vigilância ferrenha com respeito ao poder econômico das empresas. Com seu mandato findando em 2024, quais as lições ela deixa, especialmente, agora, em que se está analisado no Congresso Nacional o PL2768/22, que trata da regulamentação das plataformas digitais?
De fato, a liderança de Khan implicou uma guinada de 180º na política mais benevolente da FTC desde o governo Bush, iniciado em 2000. A partir de 2021, o FTC passou a ter um papel mais rigoroso sobre o exercício do poder de mercado, especialmente com relação às BigTechs. Como a FTC tem influência no debate, uma ampla querela internacional passou a vigorar acerca de se uma maior intervenção da FTC seria justificável ou mesmo benéfica para aumentar o bem-estar social; e qual seria o objetivo do direito antitruste: se um ou diversos. Nos EUA, contudo, esta contenda já ocorria havia anos.
Enquanto Khan estudava Direito em Yale, formava-se uma convergência sobre os alcances da política antitruste, que buscava resgatar as origens da legislação dos EUA, identificando a preocupação com a concentração econômica e com a defesa das virtudes do capitalismo: a liberdade de empreender, de deter propriedade, de gerir seus negócios, de poder escolher e de ter livre arbítrio. A lei Sherman, de 1890, a lei Clayton, 1914, e a própria criação da FTC, também de 1914, tinham como base combater os trustes, regular condutas empresariais e evitar a formação de negócios que pudessem ferir os princípios da livre concorrência.
Khan, crítica ácida à forma amena da atuação da FTC, especialmente a partir de 2000, tornou- ativa nos debates acadêmicos e respeitada pela comunidade antitruste, especialmente depois da publicação do seu livro “O Paradoxo Amazon”[1], em 2017. Ela defendia que o antitruste deveria ter múltiplos objetivos (como preconizava a Escola estruturalista de Harvard) e que sua solução passava por interpretações jurídicas das leis. O título de seu livro é uma alusão ao livro de Robert Bork[2], “O Paradoxo Antitruste”[3], de 1978, que, assim como a Escola de Chicago, entendia que a finalidade única do antitruste é perseguir pelo bem-estar do consumidor e que as concentrações econômicas e as restrições verticais podem ser justificáveis, se houver eficiência econômica que não seria alcançada de outra forma[4].
Enquanto Bork questionava o paradoxo de que, na tentativa de proteger a concorrência, a aplicação equivocada das leis podia prejudicar o bem-estar do consumidor e a eficiência econômica (objetivos do direito antitruste em sua visão); Khan indagava o paradoxo de que, na tentativa de proteger bem-estar do consumidor e a eficiência econômica, o órgão antitruste não observava a dinâmica dos mercados, tomando decisões lenientes e controversas por diversas perspectivas (produção, renda, emprego, poder de mercado, etc.). Para ela, a FTC não acompanhou a evolução de um mercado com base em dados e fez uma leitura da lei equivocada, permitindo que mercados se estruturassem de forma a prejudicar o interesse comum.
Khan, assim, é uma crítica à Bork e à Escola de Chicago, porém, mais importante ainda, ela reprovada veementemente à atuação complacente da FTC. Para ela, por exemplo, a Agência não observou o elevado poder de mercado das BigTechs (como o da Amazon) e permitiu fusões por parte destas empresas, detentoras de elevado poder de mercado, ainda que conglomeral e potencial, e uma série de condutas anticompetitivas. Como Tim Wu (que pensa similar à Khan) reconhece[5], e ainda que possa discordar da visão de Bork, a Escola Pós-Chicago se defende ao dizer que o objetivo do “bem-estar do consumidor” tem sido mal interpretado e mal utilizado (especialmente pela autoridade antitruste). Ou seja, para estes, não é o “objetivo do antitruste” que deveria estar sendo questionado, mas a “forma” como a FTC entende (ou não!) o problema econômico (seja estrutural, seja de conduta) e como esta aplica a lei antitruste.
Khan, assim, ao assumir o cargo com o apoio do Partido Democrata[6], pôs em marcha uma verdadeira revolução na condução do antitruste pela FTC. De imediato, em 2021, ela contestou judicialmente: 1) as aquisições da Meta Inc., identificando dano das killing acquisitions, pela eliminação de um potencial concorrente[7]; 2) a aquisição da Microsoft, como tentativa de manter poder de mercado no segmento de jogos eletrônicos[8]; e 3) as práticas da Amazon – obsfuscation e cancelation trickery –, como lesivas aos consumidores. Mais recentemente, ingressou com diversas ações contra empresas operando no mercado digital com práticas consideradas abusivas, por induzir consumidores ao engano[9].
A inovação da abordagem antitruste – tanto de Khan, na FTC, quanto de Jonathan Kanter, chefe da divisão antitruste do Departamento de Justiça dos EUA (DOJ)[10] –, que tem questionado fusões conglomeradas com potencial de gerar elevado poder econômico, e não mais fusões capazes “apenas” de elevar preços aos consumidores em um mercado específico, passou a seguir a tendência europeia, de maior intervenção por uma preocupação acerca dos trustes e de seus efeitos nocivos ao crescimento econômico. Ademais, Khan e Kanter procuraram recuperar a noção de concorrência potencial, enfrentando o desafio hercúleo de convencer juízes com a construção de cenários contrafactuais. Se no início a dupla perdia todos os casos no judiciário, aos poucos começaram a convencer os juízes e a ganharem algumas causas.
Note-se que estando a defesa do consumidor também sob sua responsabilidade na FTC, Khan adotou noções mais recentemente incorporadas ao repertório econômico, trazidas pela economia comportamental, para questionar hidden taxes – taxas escondidas em passagens aéreas, acomodações, ingressos e outros serviços e bens comercializados no mercado digital – e a prática de fishing, que manipula mecanismos de captura da atenção do usuário. É o caso da ação contra o aplicativo de adiantamento de dinheiro on line (online cash advance app Dave Inc)[11].
Muito embora as ações em curso pela FTC devam ser desmobilizadas no governo Trump; assim como a proposta de revisão metodológica de análise da concentração econômica, impressa no “novo guia”[12], proposta pela FTC e pelo DoJ; a passagem de Khan pelo comando da FTC deixará marcas na história da condução do antitruste mundo a fora. A despeito das críticas e polêmicas que levanta, não se pode negar que Lina Khan mexeu nas placas tectônicas do antitruste, por décadas intactas.
As lições, ao menos para o Brasil, são várias, mas seguem quatro. A primeira é enfrentar “com coragem” a pressão contrária de grandes corporações (muitas das quais financiaram o candidato opositor ao governo incumbente) em prol do interesse comum. A segunda é enfrentar o debate de um pensamento incumbente, com argumentações sólidas, estudos, evidências e objetivos republicanos, sem deixar ser capturada (seja pelas empresas, seja pelos políticos). A terceira é perceber que, como os mercados são dinâmicos, novas tecnologias surgem e, portanto, os órgãos antitrustes precisam se atentar que o poder de mercado pode ser (além dos tradicionais horizontal e vertical) potencial e conglomeral, podendo ocorrer de inúmeras formas. Por exemplo, se o Facebook permite ao usuário ter seu serviço “de graça”, obviamente não é “preço” o fator de poder de mercado. No caso, o poder é adquirido pela “obtenção dos dados dos usuários”. A quarta lição é de que a economia dos dados pode gerar um poder monumental para as empresas que foram pioneiras e que podem fechar mercado ou discriminar usuários. Neste sentido, uma regulação de dados, tal como propõe o Brasil, precisa ocorrer, de modo a ajudar a dirimir o poder de mercado das grandes (as BigTechs).
Por um lado, Khan está com a razão ao questionar uma FTC leniente e pouco efetiva para barrar práticas de grandes conglomerados na era dos dados e da IA. Permitir que os grandes trustes (BigTechs) fechem seus mercados para concorrentes potenciais (novas Fintechs, por exemplo) não traz benefícios, de nenhum ponto de vista. Mas por outro lado, se a autoridade antitruste cuidar de garantir espaço para que a eficiência econômica revele-se pela concorrência – seguindo os ensinamentos de Bork – já estará cumprindo magnificamente seu papel, sem necessidade de ampliá-lo.
Como exemplo, consultem-se os votos XP-Itaú[13] e Bovespa-Cetip[14] no Cade, que passaram por uma análise criteriosa de possíveis condutas anticompetitivas, ainda que potenciais, e anti-crescimento do país, à la Kahn; contudo, foram realizadas objetivando um só ponto: a eficiência econômica, à la Bork.
Em 2001, 568 economistas associados da American Economic Association foram entrevistados e 87% concordaram com a afirmação “As leis antitruste devem ser aplicadas vigorosamente”[15]. O legado maior de Khan, assim, é que, ainda que se possa discordar dela (de que um órgão antitruste deva ter inúmeros objetivos), ela, nas entrelinhas, lutou com entusiasmo pelo fortalecimento de uma instituição importante, a FTC. De fato, como ensinado pelos economistas premiados com o Nobel de 2024[16] – Acemoglu, Robinson e Johnson –, as ações das instituições importam para que um país cresça gerando prosperidade compartilhada.
[1] https://www.yalelawjournal.org/pdf/e.710.Khan.805_zuvfyyeh.pdf
[2] Robert Heron Bork (1927-2012) foi professor de Yale e um importante jurista norte-americano conservador, sendo até hoje uma importante (e controversa) referência no direito concorrencial. Indicado para a Suprema Corte em 1987 pelo presidente republicano Ronald Reagan, Bork teve seu nome barrado pelo Senado, então dominado por democratas, por causa da sua filosofia jurídica conservadora.
[3] https://www.amazon.com.br/Antitrust-Paradox-Robert-H-Bork/dp/1736089706
[4] Uma análise sobre algumas escolas do direito concorrencial pode ser encontrada em FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Uma apresentação mais antiga desse debate ao Brasil está em SALGADO, Lucia H. A Economia Política da Ação Antitruste, ed. Singular, São Paulo, 1997.
[5] https://scholarship.law.columbia.edu/faculty_scholarship/2291/
[6] Oposto do que apoiou Bork no passado, quando ele foi rejeitado pelo Senado para ocupar uma cadeira na Suprema Corte. https://www.conjur.com.br/2015-mai-10/analise-constitucional-legado-bork-papel-senado-indicacoes-suprema-corte/
[7] A aquisição de Instagram e Whatsapp por Facebook, atual meta, foi questionada ainda no governo Trump, o processo foi fortalecido com a condução de Khan e será em breve julgado. https://www.ftc.gov/legal-library/browse/cases-proceedings/191-0134-facebook-inc-ftc-v https://nypost.com/2024/11/13/business/meta-must-face-ftcs-antitrust-suit-over-instagram-whatsapp-acquisitions/
[8] A ação contra a Microsoft é uma clássica petição de bloqueio de aquisição, com pedido de liminar para suspender os efeitos da aquisição da Activision Blizzard em dezembro de 2022.
[9] https://www.ftc.gov/business-guidance/blog/2023/07/e-i-e-i-no-operation-stop-scam-calls-targets-operators-facilitate-illegal-robocalls-including
[10] https://www.justice.gov/atr/staff-profile/meet-assistant-attorney-general
[11] https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2024/11/ftc-takes-action-against-online-cash-advance-app-dave-deceiving-consumers-charging-undisclosed-fees
[12] https://www.justice.gov/atr/2023-merger-guidelines
[13] https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yO4010JuIg1b1Ijy5nQXmigasajw0F1yZwi9NpFATflCQMeEHdC64mpgFkuLeQkOCwzZv2NMZT1JJuMy70SmtZb
[15] https://www.researchgate.net/publication/261884738_Consensus_Among_Economists-An_Update
[16] https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/
Lucia Helena Salgado e Cristiane A. J. Schmidt são economistas e ex-conselheiras do Cade.