Nelson Siffert e Katia Rocha

O hidrogênio, elemento químico mais abundante no universo, cuja produção mundial é da ordem de 95 Mt/ano, há mais um século tem sido produzido em larga escala, fazendo uso de combustíveis fósseis (gás natural e carvão), com base no processo SMR (Steam-Methane Reforming), com emissões de cerca 8 tCO2/tH2.  A indústria do hidrogênio de baixo carbono, por outro lado, onde a mesma molécula é produzida com níveis de emissões diretas próximas de zero, pode ser considerada uma indústria nascente, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.  Agentes públicos e privados, neste contexto, balizam suas expectativas, reduzem as incertezas e direcionam suas ações, tomando como referência marcos (milestones) de médio e longo prazo, que expressam expectativas de crescimento do mercado.

O ano de 2030 pode ser tomado como um importante marco temporal de médio prazo, sobre o qual é preciso construir uma visão que venha a ser compartilhada, considerada crível, pelos agentes públicos e privados, sobre metas e objetivos relacionados à produção e demanda de hidrogênio de baixo carbono. Enfim, é preciso que cadeia de valor se movimente de forma coordenada, visando objetivo comuns, com sincronismos de tempos e movimentos.

Desse modo, à luz da experiência internacional, qual cenário, em termos de volume de produção de hidrogênio de baixo carbono, o Brasil poderá alcançar em 2030? Quais etapas são necessárias superar?

As projeções da Agência Internacional de Energia (IEA) apontam que até 2030 é esperado que o mercado mundial do hidrogênio venha crescer 57%, em relação ao atual patamar de produção (95 Mt/ano), atingindo 150 Mt/ano. Deste total, 70 Mt é estimado que seja hidrogênio de baixo carbono, sendo 51 Mt com base na rota eletrolítica e 19 Mt com base no gás natural com captura de carbono (CCUS).

Os anúncios e intenções de investimento nesta indústria se multiplicam diariamente em todo o mundo, somando mais de 490 GW de capacidade de eletrolisadores Mas, como ressalta o IEA, apenas 4% deste montante tem se transformado em decisão final de investimento (FID). Este descompasso, entre os anúncios e intenções de investimentos, é observável nos principais mercado mundiais, bem como no Brasil.

A expansão do mercado dependerá nos próximos anos, em grande medida, da velocidade com que venha ocorrer: i) a precificação das emissões de carbono em setores específicos; ii) ganhos de escala na produção dos eletrolisadores, reduzindo o valor do Capex; iii) elevação dos indicadores de eficiência tecnológica ao longo da cadeia de valor; e iv) redução no preço das energias renováveis, especialmente, a eólica e solar fotovoltáica. A atuação destes vetores tem potencial para eliminar o gap de preços hoje existente entre o hidrogênio de baixo carbono, cujo custo nivelado de produção (LCOH) chega a superar US$ 4,5/kg de H2, contra US$ 1,5/kg de H2 de origem fóssil, a depender do preço do gás natural. A diferença de preços a depender da tecnologia empregada na produção de hidrogênio é o principal obstáculo à expansão da indústria.

Uma planta de produção de hidrogênio de 100 MW de capacidade, com geração própria de energia, em níveis próximos à demanda de energia do eletrolisador, representa um investimento da ordem de US$ 400 milhões. O volume de produção estimado alcança 15.000 t/ano, com demanda de energia de 850.000 MWh/ano, absorvendo toda a geração de energia de um parque renovável híbrido de 300 MW de capacidade.

Para os provedores de funding para um investimento desta ordem (100 MW), sejam eles acionistas ou credores, é preciso que os riscos estejam mitigados, incluindo o regulatório e financeiro. Um dos principais pilares é obter um contrato de longo prazo de compra e venda de hidrogênio de baixo carbono, em preços iguais ao maiores que o LCOH, onde a contraparte do offtaker apresente baixo risco de crédito. Não se verifica no mercado condições atrativas, tanto pela ponta compradora como vendedora, condições para que tais contratos venham ser celebrados visando grandes volumes de produção.

Neste contexto, estratégias gradualistas são aquelas em que projetos demonstração ou piloto, em menor escala, mas ainda assim em escala comercial, antecedem os projetos em larga escala, permitindo que seja observada, com menor grau de risco, a performance técnica, operacional, econômico-financeira e comercial. Uma vez demonstrada a sustentabilidade do modelo de negócios, estruturas de financiamento com base na modalidade de project finance são capazes de promover a escalabilidade tão desejada.

O uso do hidrogênio de baixo carbono, em projetos de menor escala, no mercado interno, a partir de relações bilaterais entre offtakers industriais e provedores de energia renovável, propiciam que aprendizados e novos conhecimentos sejam incorporados. 

A Chamada Estratégica PDI 023/2024 da Aneel para hidrogênio de baixo carbono deve ser observada com atenção. Mais de 60 empresas de transmissão, geração e distribuição demonstraram interesse em participar, estando aberta a possiblidade de se apoiar projetos-piloto em hidrogênio de baixo carbono com recursos não-exigíveis.

Sob a ótica da Aneel, procura-se avaliar os possíveis impactos que a expansão desta atividade poderá ter sobre o setor elétrico brasileiro. Para os empreendedores que atuam no setor elétrico brasileiro, a Chamada da Aneel é uma oportunidade excepcional no contexto brasileiro, à medida que contribui para reduzir o custo de capital dos projetos, ampliando as possibilidades para se viabilizar (match) o mercado entre produtores e offtakers de hidrogênio de baixo carbono. Certamente, modelos de negócios inovadores serão descortinados à medida que uma safra, de pelo menos uma dezena de projetos-piloto, iniciarem sua implantação física no próximo ano, distribuídos regionalmente, com diferentes arranjos técnico-operacionais, financeiros e comerciais.

O aprendizado a ser proporcionado por esta política pública em curso, somando-se a outras iniciativas na área da certificação, regulação e funding, como vem sendo sinalizado pelo PNH2 com os respectivos marcos temporais estabelecidos no seu plano de trabalho 2023-2025: i) até 2025, disseminar plantas piloto de hidrogênio de baixo carbono em todas as regiões do país; ii) até 2030 consolidar o Brasil como o mais competitivo produtor de hidrogênio de baixo carbono do mundo; e iii) até 2035 consolidar hubs de hidrogênio de baixo carbono no Brasil; serão determinantes para a decolagem da indústria do hidrogênio de baixo carbono no Brasil.

Sendo assim, o mercado interno deve ser priorizando antes de se voltar para o mercado externo. Não há atalhos para se chegar a projetos de larga escala. É preciso gradualismo e consistência. O espaço fiscal não permite experimentalismos. As estimativas para a produção brasileira de hidrogênio de baixo carbono em 2030 – da ordem de 200 kt/ano a 800 kt/ano – a depender da maturação das condições de contorno (redução do LCOH, precificação do carbono, redução do Capex) é equivalente, em seu limite superior, às estimativas do IEA (2023) e Hydrogen Council (2022).  Se vamos nos situar, em 2030, próximos do piso ou do teto desta banda, é uma questão em aberto.  

A Chamada Estratégica da Aneel, a despeito das limitações que apresenta, possui o condão de pôr em movimento a indústria de hidrogênio de baixo carbono no Brasil. Não é um jogo jogado, mas está em aberto. Não temos tempo a perder. Mais de 40 países já lançaram suas Estratégias Nacionais para o Hidrogênio. A janela de oportunidade para se estabelecer como um player relevante na cadeia de valor do hidrogênio renovável se fecha nos próximos anos, à medida que o Inflation Reduction Act – IRA  nos EUA e os Leilões de Hidrogênio na Europa avançam. Temos que nos focar em atingir marcos críveis e factíveis para a produção de hidrogênio renovável até 2030, no médio prazo, mas sem supor que haja atalhos nesta jornada.


* Diretor ICT – Resel. E-mail: nelson.siffert@ictresel.org.br

** Pesquisadora do IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br

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