Danielli Gilbert de Souza L´Apiccirella
Essa foi uma pergunta que fiz infinitas vezes ao sentar-me às mesas para negociar operações de M&A (fusões e aquisições). Regra geral, eu era a única, senão uma das únicas mulheres naqueles ambientes de negociação multimilionários. E esse cenário predominantemente masculino foi me intrigando cada vez mais com o passar dos anos.
A mesma fotografia repetidas vezes: homens brancos, de todas as faixas etárias, sentados ao redor das mesas negociando. Por quê? A curiosidade quanto a essa resposta abriu caminho para minha dissertação de mestrado intitulada “A mulher na negociação de fusões e aquisições: presença, destaque e habilidades negociais”, disponível no link https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/32356?show=full.
Onze pessoas de renome no mercado de M&A responderam a essa pergunta como parte da pesquisa. Profissionais de sucesso com incontáveis projetos gigantescos, dentre eles, empresários, economistas, advogados sócios de escritórios e altos executivos, no total seis mulheres e cinco homens.
Todas as respostas de uma maneira ou de outra revelaram dois pontos centrais pra essa pergunta, o primeiro levando ao segundo, mas antes de falar deles, é importante fazer o alerta de que trabalhar com M&A pode ser apaixonante, mas que sem dúvida quase sempre envolverá uma relação de amor e ódio:
O primeiro se relaciona com o tipo de rotina de vida imposta por esses modelos de negociação – há total imprevisibilidade de quando e onde essas reuniões de negociação vão ocorrer, começar e terminar, até que dois momentos principais aconteçam: a assinatura dos contratos definitivos (signing da operação – seria equivalente a um noivado) e a conclusão da operação (closing – seria como um casamento).
O segundo tem a ver com o fato da vida pessoal precisar ficar em segundo plano quando o dever chama e o lugar dos filhos ou o desejo de maternidade. Todos os entrevistados, sem exceção, cansaram de testemunhar, ou mulheres que foram adiando a sua decisão de serem mães, ou que enfrentaram enormes batalhas diárias na tentativa de conciliação desses mundos paralelos, ou que acabaram desistindo da carreira de M&A.
Pois bem, se a palavra gênero não fizesse a menor diferença, esse segundo ponto central poderia até parecer absurdo, pois a única lógica posta seria o cuidado compartilhado dos filhos de forma equilibrada entre homens e mulheres.
Porém, M&A ainda não existe nos contos de fadas e embora nas cartilhas mais atuais se ensine que a responsabilidade quanto ao cuidado dos filhos é conjunta, do pai e da mãe, a única lógica para muitos ainda hoje continua sendo a seguinte: o cuidado da família e dos filhos deve estar em primeiro lugar na vida das mulheres, não o trabalho, muito menos em M&A.
Mas por que continua tão viva ainda essa crença de que esse trabalho de cuidado é mais da mulher?
E a resposta é simples, por mais complexas que sejam as razões por detrás: porque por milênios foi assim que fomos ensinados em casa ou pelas religiões, que esse dever de cuidado é da mulher e mais, que ele decorre de sua natureza biologicamente falando. Afinal de contas, por que ela que carregaria um útero (ler as obras feministas é imprescindível pra aprofundar o entendimento)?
Nesse raciocínio, que força possuem algumas décadas de novos pensamentos frente a uma cultura milenar ensinando que o cuidado dos filhos é o verdadeiro e mais nobre papel da mulher?
Além das respostas dos 11 entrevistados, a pesquisa demonstrou que no ano de 2019, numa amostra de 19 escritórios de advocacia de renome do total de 26 avaliados, 31% dos sócios em M&A e Corporate eram mulheres, mas que apenas 7 mulheres advogadas desses escritórios foram ranqueadas no guia Chambers Latin America, face ao total 71 advogados ranqueados, ou seja, apenas 10%.
Com isso, constata-se uma discrepância entre o percentual de mulheres da alta cúpula dos escritórios e o percentual de advogadas reconhecidas na área de M&A e Corporate pelo referido guia.
Há um trecho interessante das entrevistas que vale registrar: uma das advogadas que participou da pesquisa, que inclusive é ranqueada por esse tipo de guia com frequência, contou que ela própria uma vez, consternada, questionou o entrevistador de um desses guias, sobre o motivo de haver tão poucas mulheres nessas listas de destaque, considerando que essas mulheres existem no mercado de trabalho aos montes e são tão competentes quanto os homens.
Quanto à resposta que ela recebeu, foi mais ou menos essa: os nomes que constam das listas são recomendados pelos próprios escritórios (majoritariamente comandados por homens – afirmação confirmada pela pesquisa acima citada com a amostra de 26 escritórios de advocacia).
Logo, não parece haver outra saída para que essa pergunta quanto ao paradeiro das mulheres nas mesas de negociação de M&A (assim como em outros espaços de poder) deixe de fazer sentido, a não ser a de cada vez mais colocar luz no tema e desmistificar esse conceito de que é a mulher a maior responsável pelo cuidado com os filhos e família, o que torna mais difícil o caminho da mulher na carreira de M&A.
Nenhuma mudança estrutural acontece de um dia para o outro sem muito trabalho e grandes doses de suor e lágrimas.
Danielli Gilbert de Souza L´Apiccirella
Advogada e Mestre em Direito dos Negócios pela FGV Law. Executiva da área jurídica com 20 anos de experiência na consultoria jurídica estratégica, com destaque para fusões e aquisições, operações financeiras e direito societário nacionais e internacionais, além de direito ambiental, imobiliário rural e propriedade intelectual. Mestre em Direito dos Negócios pela FGV Law com a dissertação “A mulher na negociação de fusões e aquisições: presença, destaque e habilidades” (2022).