Editorial

José Saramago na sua obra “Intermitências da Morte” traz reflexões muito importantes a respeito do custo e do benefício de algo que chega para alterar o status quo. De maneira breve, o autor apresenta a alegria da cidade ao saber que a morte não se fazia mais presente entre eles. No primeiro momento a imortalidade foi vista com regozijo, mas em pouco tempo os conflitos começaram a surgir. 

A ausência das mortes colocou em xeque, por exemplo, a existência das funerárias e das seguradoras de vida. O desajuste dos setores econômicos resultou em soluções criativas e um dos principais efeitos colaterais apontados por José Saramago foi o surgimento da clandestinidade, da contravenção e da criminalidade. 

A descoberta de que a morte não estava extinta nas cidades que faziam fronteira foi o estopim para o surgimento de empreendimentos para fazer o transporte dos enfermos moribundos para as cidades vizinhas, onde estes poderiam alcançar a morte tão desejada, com o retorno da sociedade ao equilíbrio social anterior.

A extinção da morte no Estado era um fenômeno repentino e o Estado, com as suas leis e regras administrativas, não encontrava ajuste ao novo. Na presença de tamanha rigidez legal e de hábitos, o resultado foi o crescimento das atividades clandestinas e do envolvimento do próprio Estado nestas atividades. A existência de policiais de fronteira complacentes com a prática do transporte de moribundos para além da fronteira vizinha é um exemplo de como as alterações na sociedade caminham de avião supersônico e o Estado de carroça.

Pois então, o novo atropela, desafia e causa transtorno e o Estado somente se acautela quando o novo fica velho, mas é entre o novo e o velho que surgem o oportunismo e o descaminho.

A partir da reflexão de José Saramago coloca-se a seguinte pergunta para reflexão: o que está por surgir no Estado brasileiro como resultado da avassaladora transformação digital? 

Bem, parece que ainda estamos “abestalhados” com toda esta transformação digital, tal como foi a atitude dos moradores da cidade mediante a extinção da morte. Os órgãos públicos mergulham de cabeça nestas tecnologias e, ao se deliciarem com as maravilhas virtuais, transferem informações relevantíssimas do Estado para bancos de dados, se não suspeitos, pelo menos bastante obscuros. 

Tá bem, o discurso sempre é de que não podemos perder o bonde etc etc etc!!!

Sim, não podemos perder o bonde, mas também não podemos viajar pendurados na porta, pois a chance de cairmos dele é uma questão de tempo.

Estaria a soberania econômico-orçamentária brasileira em perigo?

A soberania do Estado é um tema constitucional, ela está em tudo aquilo que diz respeito a uma nação e a soberania econômico-orçamentária faz parte da soberania nacional. Alguns autores têm afirmado que a sociedade tem experimentado conjuntamente as transformações econômicas, sociais, jurídicas, políticas e morais, ao contrário do que acontecia anteriormente.

Como tratar a soberania econômico-orçamentária de um país frente aos contratos internacionais de transferência de tecnologia, em que empresas poderosas como as big techs (Microsoft, Apple, Google etc), que possuem PIBs superiores ao de muitos países, estão enraizadas em todos os continentes e detêm acesso a todas as informações fiscais relevantes dos países a velocidades inimagináveis. 

Talvez porque o saudoso romancista José Saramago seja português, a Europa já luta como nunca para proteger as suas fronteiras do avanço destas transformações digitais sobre a sua soberania, mas e o Brasil? Para onde vamos?

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