Fevereiro 21, 2025 18:50

Colunista

Vanessa Vilela Berbel

Lei que Institui o Programa Emprega + Mulheres

Vanessa Vilela Berbel & Iany Macedo Brum

Os efeitos sem precedentes da crise sanitária causada pelo COVID-19 somaram-se à crise econômica e social, agudizando as desigualdades sociais já presentes na sociedade brasileira, dentre elas a desigualdade de gênero. O aumento da demanda de cuidados e a sobrecarga dos esforços desenvolvidos pelas mulheres importam em um olhar mais atento a esta seara do trabalho remunerado e não remunerado indispensável à manutenção da vida.

Apesar de sua função estrutural para o desenvolvimento humano e bem-estar social, o cuidado esteve à margem de análises de teóricos sociais e distante de consenso quanto à sua definição. Hirata e Guimarães (2020) destacam que as variações ao definir o cuidado tratam-se de um detalhe significativo, visto que demonstram a diversidade com que tal atividade se estrutura e desenvolve em diferentes contextos sociais. Para elas, o cuidado é um trabalho que descreve processos, atividades, relações e sentimentos, na oferta de uma resposta concreta às necessidades dos outros, bem como implica um sentido de responsabilidade em seu exercício, seja remunerado ou não.

A economia do cuidado é descrita, por José Manuel Salazar-Xirinachs, Secretário Executivo da CEPAL, como “um setor econômico central para potenciar a dinâmica de crescimento, reduzir as desigualdades de gênero e facilitar a incorporação das mulheres ao mercado laboral” (Prólogo, 2022, p. 11). Inclui-se neste setor todo o trabalho, remunerado ou não, que se destine à satisfação do cuidado com o outro, dentre eles os afazeres domésticos, compras no supermercado e preparo de refeições até a educação e o cuidado de crianças, pessoas idosas e com deficiência.

Desde a Primeira Conferência Regional sobre a Integração da Mulher no Desenvolvimento Econômico e Social de América Latina e do Caribe, ocorrida em Havana, em 1977, se reconhece a urgência na redistribuição e valorização dos cuidados como elemento indispensável para a promoção do desenvolvimento social, estando previstas dentre os 17 objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

Esta coluna já pontuou os impactos econômicos exclusionários causados pela desigual distribuição do trabalho não remunerado no âmbito doméstico. Vale recordar que dados do IBGE apontam que as mulheres dedicam 73% a mais do tempo aos trabalhos domésticos e tarefas de cuidado de outras pessoas em comparação com os homens. Em todo o mundo, 76,2% do tempo dedicado ao trabalho de cuidado não remunerado é desenvolvido pelas mulheres (OIT, 2019).

 Aliado a esses dados temporais está o déficit de suas remunerações, seja pela redução da carga horária dedicada ao trabalho externo ou pela impossibilidade de aceitar promoções e desafios profissionais que exijam mais tempo de dedicação. Não só, o desequilíbrio da distribuição das tarefas também lhes retira a capacidade de destinar tempo ao autocuidado e a outras atividades centrais para suas autonomias e aspirações.

O trabalho de cuidado remunerado também é por elas exercido prioritariamente. As mulheres são a maioria nas ocupações ligadas ao cuidado, como no caso dos profissionais da enfermagem, dos quais 84% são mulheres, e trabalho doméstico remunerado, composto por 92% de mão –de-obra feminina, de acordo com a Fiocruz e o IPEA. Portanto, atentar a este setor da economia é também olhar para as mulheres.

Na outra ponta, temos que os profissionais mais bem remunerados no setor do cuidado, os médicos, são representados em sua maioria por homens. Dados da Demografia Médica 2020 informam que desses profissionais, 53,4% são do sexo masculino; ou seja, apesar da redução das diferenças ano a ano, os homens ainda são a maioria do setor. Ainda, anote-se que em algumas regiões, como os Estados do Piauí e do Maranhão, os homens chegam a representar 60%.

Este fenômeno associa-se à distribuição histórica das atividades do cuidado, onde este universo foi compreendido como algo relativo às classes subalternizadas da sociedade. Inicialmente, aos escravos de guerra, negros escravizados, pobres e nos últimos dois séculos, às mulheres. Este deslocamento associa-se, dentre outros, à fabricação do “amor materno”, de modo que é possível localizar na maternagem, amparada pela não diferenciação entre procriar e cuidar, expectativas de que mulheres assumam atividades de cuidado, especialmente, às mulheres negras e pobres (Zanello, 2018).

Conscientes da importância do cuidado para a sociedade e de uma melhor atenção ao setor, países da América Latina, dentre eles o Brasil, participaram da XV Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e Caribe, promovida pela Cepal em coordenação com a ONU Mulheres, na cidade de Buenos Aires, entre os dias 07 a 11 de novembro deste ano. No ato, os países assinaram o Compromisso de Buenos Aires, em que se comprometeram a um novo modelo de desenvolvimento: a sociedade do cuidado. Esse ato, significou o compromisso em adotarem marcos normativos que garantam o direito ao cuidado, sob uma perspectiva de gênero, interseccionalidade, interculturalidade e direitos humanos.

Esse compromisso dialoga diretamente com o conteúdo da ADI 7222, por meio do qual a Confederação Nacional De Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços – CNSAÚDE questiona a constitucionalidade da Lei nº 14.434/2022, que promoveu o aumento do piso salarial para R$ 4.750 para profissionais enfermeiros, 70% desse valor para técnicos de enfermagem e 50% para auxiliares de enfermagem e parteiras. Neste ponto, uma retificação, melhor seria, ao invés de enfermeiros, falarmos em enfermeiras, técnicas em enfermagem e parteiras, público majoritário atingido pela decisão.

Segundo dados do DIEESE, a medida teria um impacto de R$ 4,4 bilhões ao ano para os Municípios, R$ 1,3 bilhões ao ano para os Estados e de R$ 53 milhões ao ano para a União. Amparado nestes dados e no risco de insolvibilidade e demissões em massa apontados pelos afetados, o Min. Luis Roberto Barroso deferiu, em 04/09/22, medida liminar suspendendo os efeitos da lei e conferindo prazo para que os entes públicos e privados da área da saúde esclarecerem o impacto financeiro, os riscos para empregabilidade no setor e eventual redução na qualidade dos serviços.

Como informa o Conselho Federal de Enfermagem – COFEN, foram justamente essas mulheres que atuaram prioritariamente no combate ao COVID-19. São também elas que, fora dos hospitais, amparam os cuidados domésticos necessários às vítimas diretas e indiretas da pandemia. Portanto, o aumento salarial promovido pela Lei nº 14.434/2022, é um aumento salarial diretamente vinculado a questões de gênero.

Pari passu com o compromisso brasileiro de se estabelecer uma sociedade do cuidado digna, o alor do orçamento do Ministério da Saúde foi fixado com a redução de R$ 22,7 bilhões, quando comparado a 2022, inviabilizando inclusive o funcionamento básico do setor, quiçá a remuneração digna de seus profissionais, fato que foi denunciado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 26/10/22, à Relatoria da Saúde da Organização das Nações Unidas (ONU).

Ora, para promoção de regimes de cuidado mais democráticos e baseados em serviços universais, faz-se necessário modificar o contrato de gênero. É preciso apostar em mudanças normativas quanto ao papel dos homens no cuidado, bem como na compreensão de que o cuidado é uma prática e quanto mais se faz, mais se sabe. Aumentar a cobertura de serviços para o cuidado destinados primeira infância, estabelecer, implementar e igualar os salários mínimos, tomar medidas efetivas contra a discriminação laboral, estabelecer um piso de direitos laborais para toda população trabalhadora, reformar licenças parentais, reconhecer, reduzir e redistribuir o trabalho doméstico e de cuidado não remunerado e avançar na construção de sistemas de proteção social universal com foco no gênero. 

Em conclusão, não se é possível estabelecer uma sociedade de cuidado, compromisso este adotado internacionalmente pelo Brasil, sem que, além da redistribuição equânime das tarefas do trabalho não remunerado, haja uma remuneração justa e suficiente aos profissionais (especialmente mulheres) atuantes no setor, o que, como afirmou o Min. André Mendonça, implica em “escolhas difíceis, complexas, que tentam compatibilizar valores constitucionais”.

Referências

Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), La sociedad del cuidado: horizonte para una recuperación sostenible con igualdad de género (LC/CRM.15/3), Santiago, 2022.

Demografia Médica no Brasil 2020 / Coordenação de Mário Scheffer; equipe de pesquisa: Alex Cassenote, Alexandre Guerra, Aline Gil Alves Guilloux, Ana Pérola Drulla Brandão, Bruno Alonso Miotto, Cristiane de Jesus Almeida, Jackeline Oliveira Gomes e Renata Alonso Miotto. – São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Federal de Medicina, 2020.

Hirata, H, & Guimarães, N. A. (2020). O gênero do cuidado: desigualdades, significações e

identidades. Ateliê Editorial.

Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação.

Appris.

IANY MACEDO BRUM. Psicóloga e especialista em perspectivas de cuidado e gênero.

VANESSA VILELA BERBEL. Professora adjunta do Instituto Federal do Paraná. Pesquisadora dos temas direito e desenvolvimento econômico.

SHS Quadra 6, Conjunto A, Torre C, Sala nº. 901, Business Office Tower – Brasil 21, Asa Sul, Brasília-DF, CEP: 70.322-915 – Tel: (061) 3032-2733

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