Mauro Grinberg
Durante o recente Antitrust Spring Meeting, da Section of Antitrust Law da American Bar Association, que ocorreu nos dias 29 a 31 de março em Washington DC, um dos painéis chamou a atenção para a (talvez tentativa de) revigoração do Robinson-Patman Act (RPA) de 1936, diploma destinado originariamente a proteger os pequenos empresários num período de recessão pelo qual os Estados Unidos então passavam. Com o passar do tempo, o objetivo, ao mesmo tempo que ampliado, perdeu seu vigor.
O que se procura aqui é traçar o paralelo entre os direitos norte-americano e brasileiro, uma vez que em ambos a discriminação – o tema possivelmente mais importante do RPA – constitui infração não só nos dois países como em todo o mundo ocidental.
Para exemplificar, uma rede de lojas de departamentos normalmente consegue um preço substancialmente mais baixo do que pequenos comerciantes de bairros, já que fazem suas aquisições em quantidades muito grandes. Mas nada é tão simples assim. É importante entender que a grande loja de departamentos pode vender por preço mais baixo mas, por outro lado, o pequeno comerciante de bairro precisa sobreviver para manter a concorrência. As linhas divisórias aqui são tênues.
A conta que um cliente normal deve fazer – e aqui a constatação é prosaica, despida de considerações jurídicas e econômicas sofisticadas – diz respeito aos custos de transporte e de tempo (e talvez até entrem valores emocionais) que precisam ser gastos para procurar um produto mais barato, em vez de recorrer ao comerciante vizinho.
O problema se torna mais gritante quando tratamos de estabelecimentos comerciais em ambientes praticamente encapsulados, como aeroportos, rodoviárias, escolas, etc., em que não ocorre a pressão da concorrência e a procura de outros pontos de venda se torna praticamente inviável. As pessoas não saem, por exemplo, de um aeroporto para tomar um café, comprar uma revista ou (como ocorria antigamente) ter seus sapatos engraxados.
A verdade é que a discussão norte-americana tem andamento de forma um pouco confusa, mesmo sem definir os produtos, que podem ser uniformes ou diferenciados, daí dependendo as conclusões que se pode tirar. É claro que produtos uniformes têm nos preços o seu maior trunfo para a escolha do cliente e produtos diferenciados têm outros atributos para exibir e oferecer, aí entrando prestigio de marcas, gostos pessoais e possivelmente fatores afetivos (“minha mãe usava este produto”). Aqui entra a questão da substitutibilidade dos produtos uniformes e que, nos produtos diferenciados, depende de fatores diversos, como gosto, utilidade, adaptabilidade, etc.
Esse tipo de infração nos leva ainda a uma enorme dificuldade probatória, partindo-se da constatação de que ninguém pode ser condenado sem prova convincente e cabal da infração. Por exemplo, como provar que um determinado medicamento pode substituir outro? No Brasil, com a possibilidade de uso de medicamentos genéricos e/ou similares, essa dúvida se tornou menos aguda; mas ainda assim existe a possibilidade de uso off label de determinados medicamentos. Ou como demonstrar que um determinado alimento contém mais proteínas do que outro? A pergunta é importante porque precisamos sempre definir o mercado relevante, nas suas vertentes tanto material quanto geográfica, acrescentando-se aqui a (por vezes não menos importante) vertente temporal.
Os operadores do direito concorrencial conhecem bem as dificuldades da definição do mercado relevante, sabendo que delas não podem fugir e que elas tornam difícil (embora não impossível) o andamento de um processo administrativo ou judicial para tal punição. É preciso definir quais produtos concorrem pela vontade do adquirente (mercado relevante material) e até onde um adquirente pode ir para comprar um produto de outro fornecedor (mercado relevante geográfico).
Como aferir a vontade do consumidor de sair de sua zona de conforto para adquirir um produto concorrente daquele ao qual está habituado ou de marca para ele desconhecida em favor de determinado ganho que pode ter? Sabemos que há produtos tão tradicionais que suas marcas passam a designar os próprios produtos. A marca, nesses casos, independentemente do produto (é bom? é seguro? satifaz plenamente? etc.) passa então a constituir a zona de conforto do adquirente (comprando desta marca, dá tudo certo…). Na verdade, a intersecção do direito concorrencial com o direito de marcas constitui, desde o caso Colgate/Kolynos, um campo fértil a ser explorado.
Como aferir a vontade do consumidor de sair de uma região para se dirigir a outra com a finalidade de obter um produto melhor e/ou um preço menor? Todas as formulações econômicas esbarram em algo sutil, talvez até psicológico, que fica em torno da vontade. Quando se trata de produto homogêneo, essa vontade pode ser mais clara, tomando-se o exemplo dos postos de combustível: até onde um motorista se desloca para encontrar um produto mais barato (deixamos de tratar aqui das possíveis adulterações, matéria que às vezes aparece no noticiário criminal)? Nem o direito nem a economia podem fornecer respostas precisas; podem, quando muito, tratar de probabilidades, eventualmente altas.
Dito tudo isso, o grande desafio das autoridades concorrenciais é o de definir se e quando ocorre uma infração. Se concordamos em que uma indústria pode conceder descontos em função de quantidades compradas, como definir qual o limite desse desconto? Ou seja, a partir de qual porcentagem o desconto deixa de ser legítimo e passa a constituir uma infração, prejudicando a concorrência? Ou qual o preço que um concorrente verticalizado (indústria – distribuição – varejo) pode cobrar de seus adquirentes não verticalizados (sobretudo em se tratando de produto essencial em que não existam outros produtores e/ou distribuidores)? Qual o preço legítimo, acima do qual tem-se eliminação total ou parcial da concorrência?
As respostas a estas (e tantas outras) dúvidas, às quais as autoridades concorrenciais devem responder, certamente colocam tais autoridades quase na posição de legisladores. Assim, é a jurisprudência que vai ter que responder sobre a legitimidade de determinados comportamentos empresariais. Mas aí entra mais uma das várias faces do problema: o princípio da não surpresa, já constante da nossa legislação. O empresário não pode ser surpreendido ao ver caracterizado como infração uma conduta por ele praticada desde sempre e que ele, de boa-fé, considerava legal.
O dilema da autoridade aqui é: como fazer as advertências prévias ao mercado sem assumir o papel explícito de legislador e ao mesmo tempo deixar claro o que constitui infração? A autoridade tem à sua disposição um arsenal normativo (portarias, instruções normativas, resoluções) que p.ode usar para tanto, assim satisfazendo o princípio da não surpresa. Mas resulta obvio que há pontos sobre os quais não é possível fazer previsões exatas (por exemplo, a porcentagem de desconto). Mas o mercado tem que ser advertido de alguma forma.
Acrescente-se que estamos em uma quadra de aplicação do princípio da razoabilidade, que pode ser alterada de acordo não apenas com o mercado relevante mas com as próprias condições de mercado (este contempla sucessivamente períodos de crise e de escassez com períodos de euforia e abundância).
É extremamente salutar que este tipo de infração esteja novamente na mira das autoridades concorrenciais mas devemos ter em mente que este simples fato não elimina a perplexidade ante as dificuldades antevistas.
Mauro Grinberg foi Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional e Presidente do Ibrac (do qual é hoje Conselheiro). É advogado especialista em Direito Concorrencial, sócio fundador de Grinberg Cordovil Advogados