Daniela Santos
Minha coluna de hoje é sobre o recém-publicado Decreto nº 10.712/21 que regulamenta a Lei nº 14.134/2021 (Nova Lei do Gás) – aprovada e sancionada em abril deste ano.
Em primeiro lugar, chama a atenção o curto tempo entre a publicação da Nova Lei e do Decreto, o que confirma o entrosamento e interesse de todos os órgãos envolvidos no destravamento das barreiras existentes para o pleno desenvolvimento do setor de gás natural no Brasil – considerando, sempre, que a Nova Lei do Gás dispõe sobre todas as atividades do setor, exceto a atividade de distribuição.
Pois bem. Há novas definições no Decreto, inclusive algumas que merecem ser apresentadas aqui, a começar pelo conceito de atividades concorrenciais como as “de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural autorizadas nos termos da regulação da ANP e exploradas de acordo com os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa”. Com efeito, não há mais dúvidas em relação à competência da ANP para autorizar a atividade de comercialização de gás natural!
O Decreto volta ao tema da concorrência ao incluir, entre os princípios e objetivos da Política Energética Nacional (inseridos na Lei nº 9.478/97), a promoção da concorrência e da liquidez do mercado de gás natural, a promoção da livre iniciativa para exploração das atividades concorrenciais, a expansão, em bases econômicas, do sistema de transporte e das demais infraestruturas e promoção da eficiência e do acesso não discriminatório às infraestruturas.
Nesta medida, a interpretação das normas do setor de gás deve considerar tais princípios e objetivos, o que facilitará o trabalho do regulador em conjunto com as regras dispostas no art. 33 da Nova Lei do Gás[1].
Sobre a esperada transparência em todos os elos da cadeia de gás natural, oportuno mencionar que o legislador conceitua como informações concorrencialmente sensíveis aquelas “específicas que versam diretamente sobre o desempenho das atividades-fim das empresas que exercem atividades concorrenciais ou que possam conferir às empresas vantagem competitiva, em especial os dados não públicos sobre custos e planos de expansão, preços e descontos, estratégias competitivas, principais clientes, salários de funcionários, marcas, patentes e pesquisa e desenvolvimento, entre outros”. Parece repetitivo, mas é um conceito que deverá ser muito (bem) utilizado, inclusive por conta da implementação do acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais.
Atendendo a pedidos, as definições incluem os conceitos de biogás e biometano – o qual terá tratamento regulatório equivalente ao gás natural (assim como outros gases intercambiáveis).
O Decreto também disciplina a situação de congestionamento contratual, que envolve o “impedimento contratual ao atendimento de demanda por capacidade de transporte, quando esta não se encontra plenamente utilizada”. Volto ao assunto em breve.
Em relação ao Pacto Nacional para o Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural, o Decreto o define como “acordo voluntário entre representantes da União, dos Estados e do Distrito Federal, que estipula a cooperação federativa para a efetivação das medidas necessárias para a harmonização das regulações estaduais e federais e para desenvolvimento do mercado de gás natural no País, e que contém a formalização de compromissos nas esferas nacional, estadual e distrital”. E tal Pacto decorre do novo objetivo da Política Energética Nacional de harmonização entre as regulações federal e estatuais relativas à indústria de gás natural. No meu entendimento, o tema é o mais desafiador do Novo Mercado de Gás e deverá ser priorizado, observando as especificidades de cada Estado.
Outra definição que chama a atenção no Decreto é a do usuário final de gás natural, ou seja, aquele “destinatário do gás natural situado no fim da cadeia de valor da indústria do gás natural”, não se enquadrando, porém, as pessoas jurídicas que utilizam o gás para “consumo próprio” ou “em outras etapas intermediárias da cadeia, tais como compressão, liquefação, regaseificação e acondicionamento de gás natural”. Tal definição tem desdobramentos na conexão direta entre transportador e usuário final (o que dependerá, segundo o Decreto, da norma estadual) e na atividade de comercialização de gás aos usuários finais.
Especificamente sobre a atividade de transporte de gás natural, considerando que a Nova Lei do Gás substituiu a concessão pela autorização para a outorga da atividade de transporte, restou ao Decreto esclarecer que tal processo deverá ser realizado de forma célere, eficiente e transparente, além de confirmar a competência da ANP para a sua regulação.
Outro ponto que chama atenção no novo Decreto é a definição do gasoduto de transporte com bases técnicas (diâmetro, pressão e extensão). Isto porque, enquanto a Nova Lei do Gás estabeleceu que será considerado como gasoduto de transporte, entre outros, aquele destinado à movimentação do gás natural cujas “características técnicas de diâmetro, pressão e extensão superem limites estabelecidos em regulação da ANP”, a nova regulamentação acrescenta que tal definição deverá considerar a promoção da “eficiência global das redes”, podendo ser diferenciados conforme a “finalidade dos gasodutos”.
Em outra passagem, o Decreto amplia ainda mais a definição, ao elencar hipóteses nas quais a ANP poderá deixar de classificar determinado duto como de transporte, apesar de atender aos – futuros – requisitos técnicos. Ou seja, as (futuras) definições técnicas do regulador não serão os únicos basilares para a determinação de gasoduto de transporte.
Sobre o sistema de transporte disposto na Nova Lei do Gás, é esperado o aumento da liquidez do ponto virtual de negociação. O Decreto também reforça o papel do gestor de mercado, especialmente para assegurar a troca rápida de informações entre os transportadores (os quais poderão trocar a titularidade do gás natural sob sua custódia, nos termos da regulação da ANP) e o bom funcionamento dos mercados de gás natural.
Ainda sobre a atividade de transporte, o Decreto reforça o direito de acesso não discriminatório dos carregadores no ponto virtual de negociação, de forma eficiente e transparente, e a eliminação do já mencionado congestionamento contratual nos pontos de entrada e saída do sistema de transporte, de modo a evitar gargalos que criem ou mantenham obstáculos ou dificuldades para implementar os novos princípios e objetivos da Política Energética Nacional – possibilitando, inclusive, a adoção de medidas de cessão compulsória de capacidade de transporte. Avanço importante para o setor.
Sobre a atividade de estocagem subterrânea, o Decreto se reporta bastante à ANP, tanto na articulação com outras agências para a regulação do exercício da atividade, como para a regulação do acesso de terceiros, detalhando as hipóteses de acesso não obrigatório temporário – ainda que isso tenha conferido ao tema uma dose excessiva de subjetividade, especialmente se considerarmos a hipótese de “relevância da instalação de estocagem para o abastecimento nacional de gás natural”.
Em relação ao acesso não discriminatório e negociado de terceiros aos gasodutos de escoamento da produção, às instalações de tratamento ou processamento de gás e aos terminais do GNL – garantido pela Nova Lei do Gás – o Decreto fala em transparência, confidencialidade (que não afasta o acesso da ANP às informações sobre as tratativas entre as partes), prazos e condições pré-definidos e na possibilidade de a ANP atuar de ofício para “verificar a existência de eventuais condutas anticoncorrenciais ou de controvérsias entre as partes”. Espero que a implementação de tais regras somadas à elaboração do Código de Condutas e Práticas de Acesso à Infraestrutura (indicado na Nova Lei do Gás), realmente equacionem o problema que, se não resolvido, poderá resultar em grande prejuízo para a concorrência/competitividade no setor de gás.
Por outro lado, em relação às atividades de distribuição e comercialização de gás natural, o Decreto corrobora a possibilidade de relação societária entre empresas que exerçam atividades concorrenciais e as distribuidoras, mas estabelece uma série de regras parar evitar práticas anticoncorrenciais no mercado. A ANP deverá acompanhar o mercado assegurando transparência em relação à formação dos preços e regular a organização e o funcionamento do mercado atacadista de gás natural.
O Decreto reforçou que a ANP não autoriza a atividade de fornecimento de gás canalizado – cuja competência é dos Estados. Por outro lado, esclareceu que a atividade de comercialização abrange a venda do gás acondicionado sob as formas gasosa, líquida ou sólida, transportado por modais alternativos ao dutoviário, inclusive aos usuários finais – repita-se. O intuito foi diferenciar as atividades e, com isso, assegurar algum avanço na ponta da cadeia de gás natural.
Por fim, nas Disposições Finais, além de esclarecer que “os bens vinculados à atividade de transporte de gás não reverterão à União e não caberá indenização por ativos não depreciados ou amortizados”, o Decreto detalha a articulação – contemplada na Nova Lei do Gás – entre Ministério de Minas e Energia, ANP, Estados e Distrito Federal para a harmonização e aperfeiçoamento das normas atinentes à indústria do gás natural. O texto fala nos mecanismos que poderão ser adotados pelos Estados interessados e, como indicado acima, sinaliza para a adesão voluntária ao Pacto Nacional para o Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural. Vamos aguardar para ver qual será o primeiro Estado a aderir ao Pacto – e os desdobramentos decorrentes de tal adesão.
Ainda nas disposições finais, não poderia deixar de mencionar a faculdade disposta no Decreto para “a adoção de soluções individuais que visem ao atendimento do disposto na Lei nº 14.134, de 2021, respeitado seu rito decisório, até que seja editada regulação específica pela referida Agência”. A possibilidade – que já foi utilizada no caso do acesso à UPGN Guamaré – é importante para garantir a eficiência do setor, mas é preciso que todas as informações referentes às soluções individuais sejam devidamente fundamentadas e publicadas, de modo a garantir transparência e uniformidade às decisões.
Em conclusão, afirmo, mais uma vez, que o estímulo à competitividade/ concorrência realmente é o aspecto central do Decreto, assim como da Nova Lei do Gás. Com base nisso, resta contribuir não apenas para a realização da agenda da ANP, de modo a finalizar a regulação federal, mas também as adequações dos Estados no âmbito do mencionado Pacto Nacional, de modo a garantir harmonia e coordenação ao setor. Não é pouco. Mas é inequívoco que estamos cada vez mais próximos do sucesso que todos nós aguardamos para o setor de gás no Brasil.
[1] Art. 33. Caberá à ANP acompanhar o funcionamento do mercado de gás natural e adotar mecanismos de estímulo à eficiência e à competitividade e de redução da concentração na oferta de gás natural com vistas a prevenir condições de mercado favoráveis à prática de infrações contra a ordem econômica.
§ 1º Os mecanismos de que trata o caput deste artigo poderão incluir:
I – medidas de desconcentração de oferta e de cessão compulsória de capacidade de transporte, de escoamento da produção e de processamento;
II – programa de venda de gás natural por meio do qual comercializadores que detenham elevada participação no mercado sejam obrigados a vender, por meio de leilões, parte dos volumes de que são titulares com preço mínimo inicial, quantidade e duração a serem definidos pela ANP; e
III – restrições à venda de gás natural entre produtores nas áreas de produção, ressalvadas situações de ordem técnica ou operacional que possam comprometer a produção de petróleo.
§ 2º A ANP deverá ouvir o órgão competente do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) previamente à aplicação das medidas de que trata o § 1º deste artigo.