Amanda Flávio de Oliveira & Sandro Leal Alves

Há quatro anos, a ANS revogava a então recentemente publicada Resolução Normativa nº433/2018, que estabelecia, entre outros, parâmetros para a cobrança de franquia e coparticipação. A norma entraria em vigor apenas no fim de dezembro daquele ano, mas foi suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A então Ministra Presidente, no exercício do plantão do mês de julho, atendeu o pedido de medida cautelar em Ação de Descumprimento Fundamental promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O tema “Mecanismos Financeiros de Regulação”, que engloba coparticipação e franquia, talvez seja um dos mais debatidos na história da saúde suplementar, ao longo das duas décadas de existência da ANS. Desde 2005 ele já foi objeto de duas Consultas Públicas, nos anos de 2006 e 2017, uma Câmara Técnica, no ano de 2012, um Grupo de Trabalho, em 2015, e um Grupo Técnico que deu origem à RN nº 433/18, que se reuniu desde julho de 2016. Todas as discussões foram públicas, com a participação de todos os agentes interessados no tema. Foram produzidos muitos estudos, notas técnicas e até mesmo Análise de Impacto Regulatório (AIR), prévia à publicação da Resolução Normativa n. 433/2018, mencionada. Sublinhe-se que apenas em 2019 a exigência de prévia AIR passou a ser conteúdo de determinação legal às agências, com a publicação das Leis n. 13.848 e 13.874. Mesmo sem obrigatoriedade de assim agir, a Agência do setor achou por bem empreender AIR sobre o tema.

Conhecer a trilha da produção e desfecho da então Resolução n. 433/2018, da ANS, é suficientemente frustrante para todos que se debruçam sobre o tema do aprimoramento regulatório em saúde.

Em primeiro lugar, porque debate não faltou. Tampouco abertura à contribuição dos interessados. Em segundo lugar, porque ele revela a verdade inquietante a todos os que vislumbram no instrumento da AIR um procedimento de racionalização e melhoria de normas regulatórias: de nada adianta fazê-lo, por melhor que ele seja, tecnicamente falando, se o Judiciário suspende os efeitos de seus resultados liminarmente, no caso, com efeitos definitivos, vez que essa decisão gerou como consequência a revogação da norma pela própria agência. Por fim, a decisão do STF colocou mais um obstáculo e ponto de insegurança no longo caminho de definição dos limites do poder normativo das agências: se elas foram criadas para serem braços independentes e técnicos do Poder, há que se definir com segurança se haverá ou não deferência às suas normas que não contenham fragilidade formal que as invalidem.

Do ponto de vista técnico, o assunto segue em aberto, e quem está perdendo são os excluídos do mercado (leia-se, as pessoas com menor poder aquisitivo). É que a falta da regulação, no caso, afugenta esses potenciais consumidores do mercado, dado o fato de que um produto mais acessível deixa de ser oferecido com maior vigor. A insegurança jurídica, em um país obcecado pela regulação, significa, em casos assim, redução de oferta.

Na trilha da história da regulação de coparticipação e franquia, a incompreensão vem ganhando de lavada. Trata-se de dois mecanismos comumente utilizados em outros ramos do seguro no Brasil, e o seguro de automóveis é um exemplo à mão. Transportado para o mercado de saúde, o argumento de que “saúde não é mercadoria” vem preponderando, superficializando o debate e revelando uma confusão jurídica e econômica importante.

É que a norma da ANS não regula saúde. Nenhuma norma da ANS regula saúde. A norma referida, assim como todas as normas administrativas por ela produzidas regulam a prestação do serviço de saúde suplementar, um mercado expressamente autorizado pela Constituição de 1988 e facultado à iniciativa privada. Nesse ponto, tem-se, sim, mercadoria, negócio, empresas, lucro. O exercício dessa atividade econômica, no entanto, não pode se dar de forma irrestritamente livre, nos termos do ordenamento jurídico. E é aí que entra a regulação, a Agência do setor, sua atribuição normativa.

Por outro lado, o plano de saúde funciona nas mesmas bases técnicas e atuariais que o seguro de automóvel, seguro de navio, seguro de plataformas de petróleo, seguro rural, seguro de crédito etc. Há uma mutualidade que se solidariza no risco. Muitos indivíduos contribuem com o pagamento de mensalidades para que aqueles que precisarem utilizar os serviços possam fazê-lo. Há necessidade de garantias financeiras das operadoras, reservas técnicas, ativos garantidores para garantir a solvência da operadora. Os preços são baseados em notas técnicas atuariais segundo critérios científicos para o cálculo de forma a garantir que sejam suficientes para honrar com os compromissos futuros. Os eventos devem ser aleatórios para que o sistema funcione. Caso contrário não seria seguro, mas financiamento.

Ainda na comparação entre o plano de saúde e os demais ramos do seguro, duas diferenças chamam a atenção. Em primeiro lugar, enquanto em todos os seguros é comum, e até mesmo indispensável, que a seguradora tenha liberdade para realizar a sua avaliação e aceitação de riscos, processo conhecido como subscrição, na saúde não há essa liberdade, desde que a Lei dos Planos de Saúde (Lei n. 9.656/1998) determinou que ninguém pode ser impedido de participar de planos em razão da idade, ou da condição de pessoa portadora de deficiências, como prevê o art. 14. Em segundo lugar, outro instrumento muito utilizado no setor de seguros é a determinação da importância segurada no contrato. Essa limitação regula o risco a que a seguradora está disposta a correr. Na saúde suplementar, a Lei n. 9.656/1998, em seu art. 1º, determina que o Plano Privado de Assistência à Saúde é a prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecidos, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde. Nos dois casos acima, os fundamentos do mutualismo, que fornecem a base técnica para o funcionamento do setor de seguros, foram rearranjados para acomodar a preocupação do legislador com a possibilidade de as operadoras de planos de saúde selecionarem os bons riscos (cream-skimming) ou interromperem a prestação do serviço ao longo de um tratamento ou internação, por exemplo.  Evidentemente, essa opção traz consequências para a precificação, realizada com base em critérios técnicos-atuariais, e para o negócio em si.

Nos Estados Unidos, país em que a prática do cost-sharing é mais difundido, as seguradoras voluntariamente reduziram ou eliminaram as coparticipações em diversos procedimentos associados à Covid19 e tratamentos relacionados.[1] Não custa lembrar que é do interesse da operadora manter seus beneficiários saudáveis, evitando complicações de saúde que evoluiriam para um cenário de maiores despesas. Muitas seguradoras utilizaram os mecanismos de incentivos à sua disposição para estimular a vacinação contra a covid19.

No Brasil, a coparticipação é uma tendência no mercado de saúde suplementar e está presente em praticamente 50% dos planos. Sua existência contribui para equilibrar as contas e os reajustes das despesas médicas, pois os custos são divididos entre as operadoras e os beneficiários. Ou seja, na coparticipação a mensalidade é menor, mas o usuário paga um valor à parte em cada procedimento, como consultas e exames. O uso mais consciente e o combate a fraudes são outras importantes vantagens. Mas a oferta de um produto mais acessível revela-se um valor importante pelo seu caráter inclusivo: mais pessoas podem se inserir no mercado consumidor.

A franquia agregada anual, muito comum nos EUA (deductibles), consiste na divisão de risco entre a operadora e o consumidor com base em um valor contratado. Até chegar a este valor, as despesas são de responsabilidade do beneficiário e a partir desse limite, ficam sob responsabilidade da operadora. No mercado americano, o limite máximo anual do dedutível é limitado a US$ 8.700,00. [2] No Brasil, o que inibe esse tipo de plano é o fato de estar previsto, na Resolução CONSU nº 08/1998, que a incidência de coparticipação e franquia não pode configurar um fator restritor severo ao acesso à cobertura, sem, contudo, definir ou conceituar o que seria esse fator restritor severo. A referida Resolução, feita há mais de duas décadas, restringiu-se a conceituar estes mecanismos e afirmar: i) que os mesmos não poderiam representar o custeio integral do procedimento; ii) que a coparticipação só poderia incidir em valor fixo nas hipóteses de internação, sem prever ou estabelecer qualquer limite.

A Resolução da ANS, de curta vigência, previa um limite máximo de 30% para incidência de coparticipação. O objetivo era conceder segurança e objetividade ao tema, estimulando o mercado e esse tipo de produto. Reitere-se, a medida concluiu longo processo de debate e uma AIR.

Se saúde não tem preço, ela tem custo. A oferta de planos de saúde no mercado agrega bem-estar e dignidade às pessoas e é, sim, mercadoria no sentido estrito do termo, ou seja, um produto ou serviço suscetível de ser comprado ou vendido no mercado. A saúde individual não é transacionável, por óbvio. Mas o acesso aos serviços de saúde por meio da saúde suplementar está sujeito à lei da demanda e da oferta. E não é possível revoga-la pois as pessoas desejam acesso aos planos, os médicos precisam ser remunerados por seus serviços e as operadoras precisam buscar lucro e não prejuízo. Ou seja, o conjunto de serviços que integra toda a cadeia produtiva está sujeito às forças de mercado, em um mercado já extremamente regulado. Na pressa das decisões oficiais, sacrifica-se o acesso a esse mercado. Ainda está em tempo. Retomemos, com racionalidade e parcimônia, um tema de interesse de todos que se indignam com a falta de acesso à prestação de saúde de qualidade a pessoas de padrão aquisitivo menor.

REFERÊNCIAS

Robert H. Brook, John E. Ware, William H. Rogers, Emmett B. Keeler, Allyson Ross Davies, Cathy Donald Sherbourne, George A. Goldberg, Kathleen N. Lohr, Patti Camp, and Joseph P. Newhouse. The Effect of Coinsurance on the Health of Adults: Results from the RAND Health Insurance Experiment. Santa Monica, Calif.: RAND Corporation, R-3055-HHS, December 1984.

Amitabh Chandra,A, Flack, E and Obermeyer, Z. (2022). The Health Costs of Cost-sharing. National Bureau of Economic Research Working Paper 28439


[1] https://www.ahip.org/news/articles/health-insurance-providers-respond-to-coronavirus-covid-19

[2] https://www.federalregister.gov/documents/2021/05/05/2021-09102/patient-protection-and-affordable-care-act-hhs-notice-of-benefit-and-payment-parameters-for-2022-and.


[1] As afirmações constam do voto da Relatora na ADPF 532-MC.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *