Rodrigo Zingales*
Em 25 de março último, entrou em vigor o Decreto Presidencial nº 10.634/21, que dispõe sobre a divulgação de informações aos consumidores referentes aos preços dos combustíveis automotivos.
Embora esse tema não tenha relação direta com a série de artigos “De Quem é a Responsabilidade pelos Preços Elevados dos Combustíveis no Brasil”, que propus escrever nessa coluna, tem, de certa forma, uma relação indireta que justifica as provocações, ponderações e sugestões que pretendo tecer nas linhas a seguir.
Em seu artigo 1º é definida expressamente a motivação que levou a Presidência da República a editar esta norma, assim como a sua finalidade. Conforme destaca o caput o objetivo deste Decreto é a “divulgação de informações aos consumidores referentes aos preços dos combustíveis automotivos”, e a sua finalidade é garantir aos o “direito de receberem informações corretas, claras, precisas, ostensivas e legíveis sobre os preços dos combustíveis automotivos no território nacional”.
Para atingir, a princípio, esta finalidade, o artigo 2º determina que “os postos revendedores de combustíveis deverão informar aos consumidores os preços reais e promocionais dos combustíveis” em placa que traga “o preço real de forma destacada, o preço promocional vinculado ao uso de aplicativo de fidelização”; e, ainda, “o valor do desconto”. O artigo 4º deste Decreto ainda determina a necessidade de o posto de combustíveis fixar painel contendo os seguintes “componentes do preço do combustível”: (a) “valor médio regional no produtor ou no importador”; (b) “o preço de referência do ICMS” (“preço pauta”); (c) o valor do ICMS pago; e (d) o valor da PIS, COFINS e CIDE pagos”.
Especificamente em relação às informações indicadas no citado artigo 2º não tenho qualquer reparo a fazer, à exceção da necessidade de os órgãos responsáveis pela fiscalização (ANP, SENACO e PROCONs) editarem normas infralegais para regulamentação do tamanho do painel, tamanho da letra etc.[1]
Já, em relação às informações destacadas no referido artigo 4º, considero que o “valor médio regional no produtor ou no importador” não atende a finalidade da norma de garantir aos consumidores “informações corretas, claras, precisas, ostensivas e legíveis sobre os preços dos combustíveis automotivos no território nacional”.
Isso ocorre, pois, em primeiro lugar, em razão de vedação regulatória da ANP, os postos de combustíveis não estão autorizados a adquirir combustíveis diretamente do produtor ou do importador. Segundo o artigo 6º da Resolução ANP nº 43/09, o artigo 14 da Resolução ANP nº 41/13 e o artigo 18 da Resolução ANP nº 58/14, os postos de combustíveis estão atualmente obrigados a adquirir gasolina, diesel e etanol ofertados por distribuidoras, as quais, por seu turno, adquirem esses combustíveis de produtores ou importadores[2].
Em decorrência dessa vedação regulatória, a informação prevista no Decreto sobre o “valor médio regional no produtor ou no importador” traz ao consumidor a falsa informação de que o preço do produtor ou importador seria aquele pago pelo posto revendedor; e, portanto, que a diferença entre o preço final cobrado pelo posto e o preço do produtor / importador, somado aos tributos, equivaleria à margem bruta do posto.
Esta confusão é inclusive destacada pela própria Petrobras em seu site: “o valor pago pelo consumidor final não está sob gestão da Petrobras e é composto por 4 fatores: 1) preços do produtor ou importador de gasolina A [ou diesel A]; 2) carga tributária; 3) custo do etanol obrigatório [ou biodiesel]; e 4) margens da distribuição e revenda”[3], no entanto não consta refletida no Decreto e no painel que deve ser afixado no posto revendedor de combustíveis.
Além disso, a informação do “valor médio” também passa uma informação não clara e imprecisa.
Isso porque, há uma variação não pequena no valor do combustível fornecido pelas refinarias da Petrobras, importadores e usinas, seja em razão da localização da unidade produtora ou importador, seja em razão da forma de entrega do produto (CIF ou FOB) ou ainda da unidade da federação.
Apenas a título ilustrativo, a Petrobras divulga em seu site, semanalmente, os “preços de venda às distribuidoras” à vista da gasolina e diesel, sem a incidência dos tributos[4]. Percebe-se por essas informações que os preços à vista praticados pela Petrobras são divididos entre estados e “bases”; e, ainda, pelas modalidades de vendas “EXA, LPA, ETM, ETT e LTM”.
Nesse sentido, se analisado os dados de preço de venda da gasolina A no estado de São Paulo, tem-se, por exemplo, 15 preços diferentes, sendo que o mais elevado, na semana de 01.04.21, foi de R$ 2,6728 (Ribeirão Preto – LPA) e o mais baixo, de R$ 2,5108 (Santos – LTM), conforme destaca a tabela abaixo:
Local | Modalidade da Venda | Preço (R$/l) |
Barueri (SP) | EXA | R$ 2,6187 |
Barueri (SP) | LPA | R$ 2,6206 |
Cubatão (SP) | EXA | R$ 2,5512 |
Cubatão (SP) | LPA | R$ 2,5535 |
Guarulhos (SP) | EXA | R$ 2,6126 |
Guarulhos (SP) | LCT | R$ 2,6272 |
Paulínia (SP) | EXA | R$ 2,6297 |
Paulínia (SP) | LPA | R$ 2,6320 |
Ribeirão Preto (SP) | EXA | R$ 2,6673 |
Ribeirão Preto (SP) | LPA | R$ 2,6728 |
Santos (SP) | LTM | R$ 2,5108 |
São Caetano do Sul (SP) | EXA | R$ 2,5916 |
São Caetano do Sul (SP) | LPA | R$ 2,5968 |
São José dos Campos (SP) | EXA | R$ 2,5870 |
São José dos Campos (SP) | LPA | R$ 2,5893 |
Preço Médio | R$ 2,6041 |
Se considerados: (a) o preço médio (2,6041), (b) o preço mais baixo (R$ 2,5018) e (c) o preço mais alto (R$ 2,6728) registrados nessa semana, percebe-se uma diferença entre o preço mais baixo e o preço médio de R$ 0,1023 e entre o preço médio para o preço mais alto, de R$ 0,0687. A diferença entre o preço mais baixo e o preço mais alto é ainda maior, de R$ 0,1710.
Para qualquer outro produto, essas diferenças de centavos não significariam muito, no entanto, qualquer consumidor médio sabe que uma diferença de R$ 0,10 por litro, por exemplo, tem grande impacto no custo de abastecimento do seu veículo carro e no seu orçamento do final do mês.
Nota-se que este mesmo problema de “valor médio” também se verifica no caso do etanol anidro e do etanol hidratado, divulgado pela CEPEA/ESALQ[5] e indicado pela ANP como fonte de cálculo[6], com a agravante de que esta instituição audita apenas preços mensais de alguns estados (AL, PE, PB, MT, PE, GO, AL e PB), tendo apenas o estado de SP com preços semanais.
Esse problema informacional sobre o “valor médio do produtor / importador” trazido no referido Decreto é de fácil solução. Bastaria incluir no Decreto a necessidade de ser informado no painel os preços reais praticados pelo produtor/importador e pela distribuidora fornecedora do combustível comercializado pelo posto e, ainda, exigir que na nota fiscal de compra do combustível, emitida pela distribuidora fornecedora ao posto, constassem discriminados esses preços reais de compra do combustível pago ao “produtor/importador”, além do preço cobrado pela distribuidora do posto, que já vem discriminado, os quais deveriam ser reproduzidos pelo posto no painel exposto aos consumidores.
Apenas dessa forma, o consumidor terá a “informação correta, clara e precisa” sobre o real preço dos combustíveis ao longo de toda a cadeia.
Ressalte-se, ainda, que a divulgação de todos esses preços reais permitirá ao consumidor ter informações completas sobre os preços ao longo da cadeia, além de aperfeiçoar suas escolhas sobre o posto onde abastecer. Isso porque, com essas informações de preços reais, o consumidor poderá verificar quando o posto está cobrando abaixo ou próximo ao preço de custo, o que pode ser um sinal de algo estranho com o combustível ou mesmo quando o posto está obtendo margem acima daquela média do mercado.
Esta maior transparência nos preços ao longo da cadeia também poderá facilitar a atuação das autoridades públicas para a constatação de práticas discriminatórias, sonegação de tributos, preços predatórios e lucros abusivos de todos os agentes da cadeia brasileira de combustíveis (produtor, importador, distribuidora e revendedor) e tomar as medidas cabíveis para solucioná-las.
Por fim, chamo ainda a atenção para a necessidade de fazer ajustes nas informações sobre os valores dos tributos incidentes na comercialização dos combustíveis que devem ser apresentadas no painel afixado no posto e aquelas constantes dos documentos fiscais emitidos pelos postos.
No setor de combustíveis há a chamada regra de “substituição tributária”, onde a responsabilidade pelo pagamento dos tributos recai sobre os produtores / importadores e distribuidoras, conforme o tributo e o combustível.
Além disso, os tributos incidentes nos combustíveis e destacados no artigo 4º do referido Decreto (ICMS, PIS, COFINS e CIDE) são cobrados com base em valores (alíquotas) fixas, incluindo o ICMS cujo valor percentual é aplicado em cima do chamado valor pauta do ICMS ou “Preço Médio Ponderado ao Consumidor Final” (PMPF), definido pelas autoridades fazendárias estaduais e divulgados nos chamados “Atos Cotepe”[7] do CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária do Ministério da Economia.
Ocorre, contudo, que na nota fiscal (ou cupom fiscal) emitida pelo posto aos consumidores as informações ali divulgadas sobre os tributos incidentes são obtidas a partir do sistema IBPT que, além de serem aproximadas, conforme destacam os exemplos de Nota Fiscal trazidos no site da ANP[8], não refletem os valores reais pagos pelos produtores / importadores de gasolina, etanol ou diesel e pela distribuidora, mas, sim, percentuais definidos no sistema IBPT que é aplicado em cima do valor efetivamente cobrado.
Isso acarreta um problema sério aos consumidores e proprietários de postos, pois, por exemplo, se o preço cobrado pelos postos for superior ao PMPF, o valor do ICMS constante na nota fiscal será superior do que aquele divulgado no painel, baseado no PMPF, gerando uma desconfiança do consumidor de que o posto está cobrando um valor maior de ICMS. Por outro lado, se o valor cobrado pelo preço for menor do que aquele do PMPF, o valor do ICMS divulgado na nota será menor e, nesse caso, o consumidor poderá pensar que o posto está sonegando o imposto.
A solução para este problema também é simples: basta constar na Nota Fiscal o valor correto do ICMS, PIS, COFINS e CIDE incidentes sobre o combustível comercializado pelo posto, uma vez mantida a sistemática do ICMS pauta. Para tanto, é fundamental que o CONFAZ determine alterações no sistema do IBPT para que apresente na nota fiscal (ou cupom fiscal) os valores reais dos tributos federais e estadual incidentes na operação de compra e venda de combustíveis realizada pelos postos aos consumidores finais.
[1] Nota-se que, em 18 de março de 2021, a ANP emitiu em seu site comunicado com sugestão de “modelos de painéis”. Embora estas sugestões sejam úteis para orientação dos postos, na prática, não possuem força cogente. Isso significa que há ainda a necessidade de edição de norma regulamentadora de forma a garantir, por um lado, a efetivação do poder de polícia da agência em termos de aplicação de sanções; e, por outro, maior segurança jurídica aos postos de combustíveis, uma vez que a regulamentação correta deverá eliminar o efeito “poder discricionário” de fiscais quanto ao tamanho correto do painel, letra e, por conseguinte, cumprimento integral do Decreto nº 10.634/21.
[2] Segundo o artigo 14 da Resolução ANP nº 777/19, as distribuidoras autorizadas podem, inclusive, importar diretamente esses combustíveis.
[3] Disponível em <https://duvidasgasolina.hotsitespetrobras.com.br/como-e-feita-a-composicao-do-preco-da-gasolina-ao-consumidor/>. Acessado em 09.04.21.
[4] Disponível em <https://petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/precos-de-venda-as-distribuidoras/gasolina-e-diesel/>. Acessado em 09.04.21.
[5] Disponível em <https://www.cepea.esalq.usp.br/br/indicador/etanol.aspx>. Acessado em 09.04.21.
[6] Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/orientacoes-sobre-painel-de-composicao-dos-precos-decreto-no-10-634-2021>. Acessado em 09.04.21.
[7] Disponível em <https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/atos-pmpf/2021>. Acessado em 09.04.21.
[8] Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/orientacoes-sobre-painel-de-composicao-dos-precos-decreto-no-10-634-2021>. Acessado em 09.04.21.
[*] Rodrigo Zingales Oller do Nascimento, advogado, mestre em economia e atualmente colunista de WebAdvocacy. A presente carta reflete exclusivamente os pensamentos e opinião do autor.