Felipe Fernandes Reis
A promoção da concorrência em mercados com plataformas e ecossistemas digitais vem centralizando a atenção de autoridades, profissionais e estudiosos, além de políticos preocupados com o poder das denominadas “big techs”, todos apresentando diversas sugestões e iniciativas para resolver eventuais problemas concorrenciais.
A despeito de tal debate, já existem alguns consensos sobre os desafios à concorrência. Nota-se, por exemplo, diversas evidências de que o modelo de negócio de algumas plataformas digitais tem por fundamento/efeito limitar a capacidade de multihoming dos usuários, os conduzindo a apenas contratar com a sua própria “rede” ou “ecossistema”, o que pode acontecer por meio de diferentes estratégias para aumentar os custos/barreiras de troca e a dependência do usuário à plataforma (efeito lock-in/aprisionamento).
Além disso, já se constatou a presença de barreiras técnicas e operacionais que dificultam a utilização de diversas plataformas ou a migração para aquela com a melhor oferta, o que pode ocorrer em razão da complexidade/empecilhos para integração das interfaces e sistemas de cada plataforma. De todo modo, trata-se de barreiras ao multihoming.
Aliás, é notório a correlação entre essas barreiras e o grau de concentração de mercados com plataformas digitais, conforme apontado no relatório realizado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), com base nos estudos de diversas autoridades antitruste sobre mercados e plataformas digitais[1].
Um exemplo claro de tal realidade é o “mercado de pedidos online de comidas”[2], o qual vem sendo constantemente objeto de análise pelo CADE, inclusive.
Nesse caso, inicialmente vale lembrar que, em 2018, a autoridade de defesa da concorrência autorizou a aquisição da Delivery Hero (“Pedidos Já”) pelo IFood ainda que reconhecendo a elevada concentração e a baixa rivalidade presente no mercado, porém, entendendo que esse “conta com fortes oportunidades de expansão, tendo sido observadas entradas de players internacionalmente relevantes nos últimos anos, como UberEATS e Rappi. Esse cenário gera a expectativa de acirramento da rivalidade no futuro próximo.
Entretanto, em março de 2021, em razão de representação da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (“ABRASEL”) e de concorrentes do IFood, a própria SG/CADE[3] instaurou Inquérito Administrativo[4] e impôs medida preventiva contra o Ifood, impedindo que a plataforma (com aproximadamente 70-80% do mercado) celebrasse novos contratos de exclusividade com restaurantes, sob entendimento de que a continuidade dessa conduta tende a gerar sérios riscos concorrenciais, enquanto a sua cessação pode contribuir para promover um ambiente competitivo no mercado, reduzindo custos e barreiras para tanto.
Apesar dessa decisão, é evidente que ainda permanece o cenário de concentração e barreiras concorrenciais no “mercado de pedidos online de comidas”, sendo recentemente noticiado o fim das operações de importantes agentes, como UberEats e Delivery Center, os quais justificaram, entre outros motivos, que os problemas concorrenciais presentes nesse mercado, como a elevada concentração no player incumbente e as suas práticas restritivas, dificultam o acesso aos restaurantes e a pressão competitiva por outros marketplaces.
Nota-se, portanto, que apesar da medida preventiva da SG/CADE, ainda existem obstáculos operacionais, tecnológicos e de gestão que dificultam os restaurantes a aderirem a diversos marketplaces/plataformas, os conduzindo ao single-homing, geralmente junto ao agente incumbente.
Explica-se: Para contratar com diferentes marketplaces, os restaurantes têm que cadastrar e adaptar seu cardápio conforme as disposições de cada um desses; também terá que monitorar os pedidos que são gerados com as informações, especificações e sistemática de cada plataforma/originadora; e organizar a entrega e experiência do cliente com base nas regras de cada uma dessas. Tais dificuldades desanimam/inviabilizam os estabelecimentos a atuarem com diversos marketplaces, e consistem em barreiras e custos para efetiva rivalidade no mercado.
Desse modo, é necessário reduzir essas barreiras ao multihoming dos usuários, o que pode ocorrer através de medidas que promovam a interoperabilidade e integração entre interfaces, ferramentas, produtos e os agentes do ecossistema de delivery.
Nessa linha, cita-se que, recentemente, o CADE autorizou a formação de joint venture entre importantes redes de food service que tinha por objetivo “estabelecer uma plataforma que consolide os pedidos online de diferentes originadoras em uma única interface, facilitando a gestão dos pedidos pelos operadores de foodservice.”[5]
Vale também lembrar dos casos no âmbito do CADE envolvendo os setores bancário e de pagamentos, como a investigação sobre a negativa de acesso ao Guiabolso dos dados referentes aos clientes do Bradesco, que resultou na celebração de Termo de Compromisso de Cessação (TCC)[6] desse Banco com o CADE, com o compromisso de desenvolver protocolos de API para viabilizar a conexão, integração e interoperabilidade entre o seu sistema com o da referida fintech[7].
Aliás, foram essas as premissas do Open Banking brasileiro, que se espelhou na autoridade antitruste britânica (Competition and Markets Authority- CMA), a qual adotou o protocolo de API como medida para promover competitividade no setor bancário inglês.
Nesse espírito, e diante a situação do “mercado online de pedidos de comida”, a Abrasel, entidade representante dos bares e restaurantes brasileiros, com o apoio de diversos agentes, desenvolveu o Open Delivery, que tem como escopo a elaboração de protocolos de comunicação de API’s para fins de organizar a comunicação e integração dos diversos players e etapas do ecossistema de delivery, como os softwares de gestão (PDV) dos restaurantes com os diversos marketplaces originadores de pedidos, reduzindo barreiras técnicas e operacionais suportadas pelos estabelecimentos comerciais caso desejem trabalhar com múltiplas plataformas. Ou seja, para viabilizar a integração, interoperabilidade e eficiência operacional dos restaurantes que buscarem trabalhar com diferentes marketplaces.
Assim, com a oportunidade de trabalhar com diferentes originadores, a negociação entre restaurante e plataforma tende a ser mais equilibrada, eis que essa terá ciência da possibilidade e probabilidade de migração do restaurante para sua concorrente, o que reduz incentivos para imposição de eventuais cláusulas de exclusividades, subsídios cruzados e empacotamentos de serviços e produtos, por exemplo.
Ademais, as próprias plataformas também têm incentivos para aderirem ao Open Delivery, já que falhas e dificuldades de integração podem impactar o funcionamento de seu ecossistema e a ampliação de sua atuação, pois a integração entre os diversos mercados e agentes envolvidos é imprescindível para a sua eficiência, em razão dos efeitos de rede dos mercados digitais.
Dessa forma, o protocolo Open Delivery permite que informações e etapas básicas de comunicação sejam realizadas de forma organizada, viabilizando a integração eficiente entre os agentes. Até o presente momento, O Open Delivery desenvolveu protocolos de API sobre a jornada de cadastro dos restaurantes, de seus cardápios, da sua operação logística, e do recebimento e conciliação financeira dos seus pedidos, bem como instituiu medidas de transparência e eficiência na fase de contratação do marketplace pelo restaurante, ajudando-o a identificar as condições pactuadas.
Com o Protocolo Open Delivery, os restaurantes terão incentivos e condições para contratarem com diversas plataformas (multihoming), pois, apenas precisarão cadastrar seu cardápio uma única vez; gerenciar os pedidos e sua operação pelo mesmo sistema e de maneira organizada; conseguirão compreender e identificar (de forma simples) as diferentes condições a serem (ou que foram) negociadas com os marketplaces; e melhorar a rastreabilidade da logística ao cliente, independentemente da forma realizada (por terceiros ou pelo próprio estabelecimento). Isso tudo através de seu software de gestão.
Para tanto, vale registrar, que o Open Delivery desenvolveu boas regras de compliance e de governança que permitem a elaboração de protocolos de API de forma isonômica, transparente, competitiva e democrática, considerando os diferentes modelos de negócio dos agentes, ou seja, sem criar reservas de mercado, restrições, dificuldades e barreiras à entrada.
Além disso, o protocolo é aberto, comum e acessível ao público em geral, o qual poderá apresentar dúvidas e sugestões a respeito de sua aplicação.
Ademais, o protocolo Open Delivery não adentra à relação comercial das partes, como: taxas, política comercial, formas e condições de contratação e outras especificações que cabem aos agentes diretamente negociarem. Do mesmo modo, o Open Delivery não uniformiza condutas ou induz ao alinhamento comercial entre empresas concorrentes, o que é expressamente vedado e fiscalizado pelo compliance Open Delivery.
Nota-se, portanto, que o protocolo Open Delivery foi(é) elaborado com a participação de agentes com perfis, tamanhos e modelos de negócios distintos, e devidamente acompanhados por boas regras de compliance e governança, partindo sempre da premissa da: (i) transparência; (ii) isonomia; (iii) competitividade; (iv) livre negociação entre as partes; e (v) eficiência.
Desse modo, é evidente o potencial do Open Delivery para contribuir na promoção da concorrência no mercado online de comida. Na verdade, trata-se de iniciativa que deve servir de exemplo a outros mercados com problemas concorrenciais dessa natureza, o que deve ser encorajado pelas autoridades antitrustes, pois, diferente de outras propostas sugeridas por especialistas, o Open Delivery conseguiu harmonizar e equilibrar objetivos, valores e medidas geralmente apresentados como contrapostos, como: respeito à liberdade negocial dos agentes; promoção da efetiva concorrência; preservação do ambiente inovador; redução de assimetrias e barreiras à entrada; transparência; respeito aos diferentes modelos de negócio e segurança jurídica.
Para mais informações acesse o site: https://www.opendelivery.org.br/sobre
Autor: Felipe Fernandes Reis, advogado, coordenador da equipe de Direito Econômico e Concorrencial do Malard Advogados Associados. Graduado em Direito e Master of Laws (LLM) – Direito dos Negócios e Governança Corporativa pelo IDP/Brasília. Membro Consultor das Comissões de Direito Econômico e de Energia de OAB/Federal; e membro das Comissões de Defesa da Concorrência e de Relações Governamentais e Institucionais da OAB/DF. Associado Internacional da American Bar Association, nos comitês de Antitrust Law e Environment, Energy and Resource Law. Participa como assessor jurídico do Open Delivery, além de coordenador-técnico dos Comitês de Compliance e Comitê de Regulação.
[1] Acessível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2020/documento-de-trabalho-n05-2020-concorrencia-em-mercados-digitais-uma-revisao-dos-relatorios-especializados.pdf
[2] A definição desse mercado relevante guarda certa flexibilidade por parte do CADE, o qual tende a consignar a possibilidade de eventuais alterações, conduto, conforme precedentes recentes (AC’s: 08700.001691/2021-16,08700.001962/2019-19, 08700.002463/2020-82, entre outros) delimitou o mercado em Pedidos Online sendo segmentado conforme o papel do Marketplace, se (i) dedicado/exclusivo (próprio restaurante); se multi-restaurantes (mas sem oferecer a logística); ou se full service (com serviços adicionais ao delivery, especialmente a logística)
[3] Superintendência Geral do CADE.
[4] IA: 08700.004588/2020-47, Nota Técnica n.: 4/2021/CGAA1/SGA1/SG/CADE (SEI 0875341)
[5] PARECER N° 7/2021/CGAA1/SGA1/SG/CADE. Ato’s de Concentração n° 08700.006662/2020-60 e 08700.001691/2021-16
[6] Req. de TCC n.: 08700.003425/2020-47
[7] Conforme previsto no TCC: “3.1. O Compromissário compromete-se a desenvolver interfaces de conexão que possibilitem à empresa Guiabolso Finanças Correspondente Bancário e Serviço Ltda. (“Guiabolso”) oferecer e capturar o consentimento dos seus usuários clientes pessoa física do Compromissário e acessar os sistemas do Compromissário, permitindo-se o acesso a todos os dados de clientes pessoa física do Compromissário acessíveis por meio do canal Bradesco Celular.”