Vanessa Vilela Berbel
Iniciemos com uma situação hipotética: Ana estabeleceu convivência com Marcos; desta relação adveio Susana, hoje com três anos. Ana foi agredida psicologicamente por Marcos, que lhe proferiu xingamentos e humilhações, o que culminou no deferimento de medida cautelar para preservar a integridade psicológica da vítima. Marcos paga pensão à sua filha em valor é insuficiente para o adequado cuidado da prole. Aprovado em concurso público, Marcos restou impedido de tomar posse no cargo, em razão de possuir medida cautelar decorrente de violência doméstica.
O Projeto de Lei 2.556/21 visa, a partir de alteração das Leis nº 8.112 de 1990 e 14.133 de 2021, criar mecanismos para impedir que pessoas que estejam sob medidas cautelares ou condenadas por crimes de violência doméstica, contra mulher, crianças e adolescentes e contra idosos não possam tomar posse em cargos públicos, nem contratar com a Administração Pública Direta e Indireta.
Apesar de ser uma resposta social ao agressor, as consequências negativas do impedimento à posse em concurso nem sempre serão suportadas por ele, podendo atingir o próprio sustento da prole, da vítima e daqueles que sofreram a violência.
Nestas hipóteses, creio que ao legislador caberá a missão de reformular o texto legal, refletindo sobre situações em que há a transcendência dos efeitos negativos da lei; talvez, a via melhor, em alguns casos, não seja o impedimento à posse em cargo público, mas o estabelecimento de desconto compulsório da remuneração auferida, destinando-o aos afetados pela violência ou até, por hipótese, a fundo destinado a ações positivas para as vítimas de violência doméstica e familiar.
A justificativa do projeto invoca boas razões para seus termos. Também não se discute a necessidade de se estabelecer medidas que efetivamente reprimam ou desestimulem a violência; sem dúvida, combater a impunidade e não premiar os malfeitores é um caminho correto.
Contudo, a par das excelentes intenções, precisamos discutir os reais efeitos sociais da norma e desenhá-la de forma adequada para que atinja de fato os efeitos desejados. Nesta senda, faz-se necessário ter maior atenção com as situações em que há a transcendências dos efeitos da medida punitiva, afetando negativamente aqueles que dependam economicamente do agressor e que sejam vítimas diretas ou indiretas da ofensa.
O princípio da moralidade impõe que a investidura em cargo ou emprego público seja reservada a pessoas probas, não sendo ilícita a previsão editalícia de inexistência de condenação criminal como requisito para a posse. Todavia, conforme reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, não se pode estabelecer a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações excepcionalíssimas e de indiscutível gravidade; seria, a medida cautelar nos casos de violência contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos uma dessas exceções?
Talvez o caminho precise ser inverso. Em um país em que a cultura da informalidade no emprego se legitima como via para burlar o pagamento de pensões alimentícias, o impedimento à posse em concurso público não parece ser o caminho mais adequado de coibir o potencial agressor ou de dar a ele a justa repreensão. Ao invés, o desconto compulsório de indenização e pensão aos atingidos parece-me um modo mais inteligente de se realizar a resposta social.
Outrossim, não se afasta, nesta ou em outras situações, o princípio da presunção de inocência. Há de se primar pelo trânsito em julgado da ação condenatória para que o impedimento à posse se legitime, não bastando a concessão de medida cautelar. Se contrário for, nestas hipóteses, a lei, ao invés de garantir a repreensão adequada ao agressor, pode se tornar um obstáculo à própria concessão da cautela, visto que os magistrados poderão refrear o uso de seus poderes.
Não vamos, porém, jogar fora o bebê com a água do banho. O PL anda bem no objetivo geral de impedir condenados por violência contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos de tomar posse em concurso público, mas, nesta hipótese, não se pode dispensar o trânsito em julgado da decisão condenatória.
Outrossim, deve-se pensar em situações excepcionais em que o impedimento afete o sustento das vítimas diretas e indiretas da tragédia; deste modo, não havendo correlação entre o crime e as funções públicas a serem exercidas, não sendo conferido ao agressor o acesso a porte de armas ou meios que facilitem a reiteração da violência (ao exemplo dos agentes de segurança pública ou de inteligência), deve-se formatar medida em que, ao invés de se impedir a posse, imponha-se desconto compulsório de indenização e pensão alimentícia aos agredidos ou às vítima indireta da tragédia (filhos e dependentes economicamente do agressor).
Parece-me, neste ponto, que o PL ainda carece de amplo debate e de um desenho mais elaborado das hipóteses sociais afetas ao tema, a fim de não prejudicar as próprias vítimas com o desamparo econômico quando dependentes do agressor ou credoras de indenização indispensável à reparação da lesão sofrida.