Mauro Grinberg
Pouco (relativamente à relevância) tem sido escrito sobre a importantíssima tarefa do Ministério Público Federal (MPF) junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Comecemos pelo básico (lembrando que aqui tratamos apenas dos processos administrativos sancionadores e não dos atos de concentração), conferindo o art. 20 da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC): “O Procurador-Geral da República, ouvido o Conselho Superior, designará membro do Ministério Público para, nesta qualidade, emitir parecer, nos processos administrativos para imposição de sanções administrativas à ordem econômica, de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator”.
Desde logo notamos que a opção “de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator” bem demonstra que a participação do MPF, embora de enorme importância, não se demonstra obrigatória, ou seja, o representante do MPF pode não emitir parecer se não lhe for solicitado pelo Conselheiro-Relator. Todavia, se o parecer for solicitado, ele se torna obrigatório, face aos termos do dispositivo acima transcrito), ainda que não vinculativo.
Com efeito, estabelece o art. 127 da Constituição Federal: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Ou seja, zelar pela defesa da ordem jurídica, inclusive no Cade, sobretudo quando solicitado a tanto, é dever do MPF, o que se coaduna com o § 2º do art. 6º da Lei Complementar 75/1993: “A lei assegurará a participação do Ministério Público da União nos órgãos colegiados estatais, federais ou do Distrito Federal, constituídos para defesa de direitos e interesses relacionados com as funções da instituição”.
Mas há mais. Em se tratando de interesses individuais disponíveis, sempre que algum/a Representado/a tiver sido declarado/a incapacitado/a para o exercício dos próprios direitos (o que deve ser raro mas possível), o MPF terá a defesa desta pessoa, sendo esta a única situação em que ele terá função de parte no processo administrativo do Cade para imposição de sanções administrativas.
Assim, mesmo quando o MPF oficia ao Cade comunicando a existência de uma infração contra a ordem econômica, sua ação equivale à notícia de um crime levada à autoridade policial. Como instituição, o/a representante do MPF pode (e deve, quando lhe é solicitado) emitir parecer, embora seja recomendável que não seja a mesma pessoa da instituição a fazê-lo. Ou seja, quem avisa ao Cade sobre uma possível infração não deve ser a mesma pessoa a emitir parecer, ainda que a instituição seja a mesma.
Vale aqui lembrar que Stephanie Vendemiatto Penereiro e Wagner José Panereiro Armani demonstram que “a defesa da concorrência é estruturada pelo ordenamento jurídico brasileiro a partir de um tripé, possuindo três frentes de atuação: penal, cível e administrativa”, sendo que “a centralidade e a relevância da atuação do Ministério Público na defesa da concorrência mostra-se evidente quando se verifica estar presente em cada uma dessas fontes”[1].
Todavia, na esfera do processo administrativo sancionador do Cade, o MPF é parecerista – de importância fundamental, como se vê adiante, mas com esta limitação – pois não emite decisão no processo administrativo sancionador do Cade, que pode, se for o caso, decidir de maneira diversa da orientação constante de pareceres anteriores do/a representante do MPF. Com efeito, estabelece o art. 9º, II e III, da LDC que “Compete ao Plenário do Tribunal (…) “decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei” e “decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica instaurados pela Superintendência-Geral”. Ou seja, a decisão é do Plenário do Cade, sem voto do MPF (bem como dos demais participantes do processo).
Mas é claro que não podemos ver o MPF como mero parecerista. Márcio Barra Lima, lembrando que, de acordo com o § único do art. 1º da LDC, “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”, afirma que “tendo em vista a existência de um interesse geral que transcende os limites das estruturas do mercado, a intervenção do Ministério Público Federal é crucial para garantir o fiel cumprimento dos preceitos normativos, tanto dos princípios da ordem econômica como das garantias constitucionais do devido processo legal”[2].
Mais ainda, a Resolução Conjunta PGR/CADE 1/2016, tendo como objetivo estabelecer as condições de atuação do MPF junto ao Cade, atribuiu, já no seu art. 2º, I. a competência (ampla) de “atuar no controle das condutas anticoncorrenciais e na prevenção da concentração de mercado” e, mais adiante, no art. 3º, estabeleceu prerrogativas do MPF, entre as quais, por exemplo, a de “requerer ao Plenário do Tribunal a adoção de medidas de sua competência” (inciso IX). É o mesmo Márcio Barra Lima que conclui que “tais atribuições do MPF perante o CADE demonstram que sua atuação não se restringe à elaboração de pareceres, podendo igualmente atuar ativamente nos variados procedimentos administrativos que tramitam na autarquia”[3].
Como a Resolução Conjunta acima referida regulou em detalhes o relacionamento do/a representante do MPF com o Cade, diz Márcio Barra Lima que “foi conferida uma carga de eficácia antes inexistente àqueles diplomas superiores (Constituição e Lei Complementar nº 75/1993), ao menos no que se refere ao relacionamento interinstitucional”[4]. Mais do que aumentar a carga de eficácia (lembremos dos atributos da norma: existência, validade e eficácia), tal resolução deu ferramental para as autoridades, que antes se valiam de instrumentos outros que não tinham a mesma especificidade, não obstante a sua legalidade.
À parte o fato do/a representante do MPF ter direito, no Cade, a gabinete, assento e voz no Plenário (art. 3º, I e II, da Resolução Conjunta acima referida), a grande atuação do MPF nos processos administrativos sancionadores do Cade é a de fiscal da lei, com sua imparcialidade nata, por vezes contrariando versões que tendem a um determinado comportamento. Já se escreveu alhures que o Cade tem dois organismos distintos dentro dele: o acusador e o julgador, que não devem ser confundidos mas que, de qualquer sorte, sofrem a fiscalização do MPF para que não existam confusões desses dois organismos. Embora a convivência das duas atividades no mesmo órgão não seja uma situação ideal, é a que a lei nos proporciona e que faz avultar a importância do MPF.
Vale aqui lembrar a independência do/a representante do MPF, mencionando Hugo Nigro Mazzilli que “a hierarquia no Ministério Público é administrativa, não funcional. Em outras palavras, o Ministério Público, enquanto instituição, tem autonomia em face de outras instituições e órgãos do Estado; tem autonomia funcional até mesmo em face dos Poderes de Estado. E os membros e órgãos do Ministério Público têm reciprocamente independência funcional” (itálicos no original)[5]
Assim, a presença do/a representante do MPF, como fiscal da lei, nos julgamentos dos processos administrativos sancionadores do Cade, constitui garantia de equilíbrio e sobriedade. Portanto, ainda que a sua função nominal seja a de fornecer pareceres, a presença do MPF constitui garantia da sociedade.
Mauro Grinberg foi Conselheiro do Cade e Procurador da Fazenda Nacional, Presidente do Ibrac e hoje Conselheiro do Ibrac, membro da American Bar Assotiation, advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil
[1] “A atuação do Ministério Público na defesa da concorrência brasileira”, Revista de Direito Concorrencial”, 14.12.2022, pág. 27
[2] “A atuação do Ministério Público Federal junto ao CADE”, RDC, vol. 6, nº 1, maio de 2018, pág. 10
[3] Obra citada, pág. 14
[4] Obra citada, pág. 10
[5] “Regime jurídico do Ministério Público”, Saraiva, São Paulo, 2018, pág. 175