Marco Aurélio Bittencourt
A validade “Datada” dos Teoremas econômicos e o de Balassa-Samuelson (B-S)
Teoremas econômicos, como o Balassa-Samuelson (proposto em 1964), oferecem lentes analíticas cruciais para compreender fenômenos macroeconômicos. Contudo, é fundamental reconhecer que suas premissas foram formuladas em um contexto histórico e tecnológico específico. O B-S, ao categorizar a economia em setores “transacionáveis” (com alta produtividade) e “não transacionáveis” (com produtividade supostamente mais estagnada), reflete uma realidade industrial de meados do século XX. A validade desses teoremas não é questionada em sua lógica fundamental, mas sim em sua capacidade de capturar a plenitude dos mecanismos econômicos em um mundo transformado pela digitalização, globalização e ascensão da economia do conhecimento.
O teorema B-S estabelece que países com maior crescimento da produtividade no setor de bens transacionáveis (tipicamente a indústria) tendem a ter salários mais altos em toda a economia (devido à mobilidade do trabalho) e, consequentemente, preços relativamente mais elevados nos serviços não transacionáveis. Isso resulta em um nível geral de preços mais alto e uma taxa de câmbio real mais apreciada em nações mais ricas.
O “milagre dos números” – o que ajustes nas estatísticas poderiam suscitar com base nesse Teorema B-S, reside na aparente distorção do Produto Interno Bruto (PIB). Em muitas economias avançadas, observa-se uma participação esmagadora do setor de serviços no PIB, o que poderia levar à falsa impressão de que a indústria perdeu sua relevância. No entanto, essa predominância é, em parte, um artefato estatístico do modo como o PIB é mensurado. Se devidamente ajustada para a paridade de poder de compra ou outros métodos que considerem os diferenciais de preço, essa mensuração levaria a uma identificação mais precisa da força do setor transacionável no PIB. É o que advocam a validade ubíqua do teorema B-S.
Elementos dinâmicos que afetam as premissas do Teorema em economias desenvolvidas
Hoje presenciamos diversos elementos dinâmicos que afetam as premissas originais do B-S em economias avançadas:
- A Inovação e a Universalização da Produtividade nos Serviços: A premissa de que os serviços são intrinsecamente de “baixa produtividade” é atualmente desafiada. A revolução digital, a Inteligência Artificial (IA), a automação e as novas tecnologias têm permitido ganhos substanciais de produtividade em áreas como educação (e-learning, tutores de IA), saúde (robótica cirúrgica, telemedicina) e serviços pessoais (sistemas de agendamento, equipamentos de alta qualidade). A inovação em serviços frequentemente se manifesta na melhoria da qualidade, eficiência na entrega e personalização, e não apenas em uma redução de custo unitário. Essa elevação de preços ocorre por múltiplos fatores:
- Primeiramente, a remuneração ao investimento em capital humano de profissionais altamente qualificados (mais abundantes e efetivamente utilizados em países desenvolvidos) se reflete diretamente na qualidade, sofisticação e valor agregado dos serviços. Uma consulta com um médico especialista ou uma consultoria com um engenheiro experiente é precificada pelo conhecimento e pela capacidade de resolver problemas complexos.
- Em segundo lugar, a inovação manifesta-se na utilização de equipamentos de alta qualidade e softwares sofisticados no setor de serviços, cujos custos de capital e tecnologia são repassados aos preços.
- Por fim, a inovação em serviços frequentemente se traduz em melhoria da qualidade, eficiência na entrega e personalização, que os consumidores de alta renda estão dispostos a pagar. Assim, embora o volume físico de serviços produzidos possa não ser proporcionalmente maior do que o de bens, o valor monetário desses serviços no PIB é artificialmente elevado, reflexo dessas inovações de alcance ubíquo.
- A Crescente “Transacionabilidade” de Serviços: A distinção rígida entre bens transacionáveis e não transacionáveis está se tornando mais ambígua. Serviços como consultoria, desenvolvimento de software, suporte ao cliente e até mesmo algumas formas de educação e saúde podem ser prestados remotamente e exportados/importados, sujeitando-os a uma competição global e, potencialmente, a pressões de preços semelhantes às dos bens manufaturados.
- Abundância e Qualificação da Força de Trabalho (Lado da Oferta): A proliferação da educação superior e a disponibilidade de uma força de trabalho altamente qualificada em muitos países desenvolvidos introduz uma nova camada de complexidade na dinâmica salarial. Vejamos:
- Produtividade Qualitativa: Profissionais mais qualificados elevam a produtividade e a qualidade dos serviços que entregam, justificando preços mais elevados.
- Custo de Oportunidade Elevado: O alto investimento em educação cria uma expectativa salarial que eleva o “piso” de remuneração em todos os setores, incluindo os serviços.
- Impacto da Oferta de Trabalho: Se a oferta de profissionais qualificados excede a demanda em certas áreas, pode haver uma pressão de baixa nos salários, mesmo para aqueles com alto nível de educação. Isso difere da premissa de um “puxão” salarial ascendente uniforme e pode atenuar o impacto do B-S.
Elementos que modulam o Teorema em economias desenvolvidas
Os elementos dinâmicos acima fazem o teorema B-S ser moderado, ou seja, exigem uma interpretação mais sofisticada de seus efeitos:
- Diluição dos Diferenciais de Produtividade: Se a taxa de crescimento da produtividade nos serviços se aproxima daquela nos setores transacionáveis, o principal motor do Balassa-Samuelson – o diferencial de produtividade entre setores – enfraquece. Isso poderia levar a uma convergência nos níveis de preços e uma menor apreciação da taxa de câmbio real nos países ricos.
- Segmentação do Mercado de Serviços: Em vez de um setor de serviços homogêneo, observa-se uma polarização: serviços automatizáveis (que podem ter preços mais contidos pela eficiência) versus serviços de alto contato ou personalização (que continuam caros pela dependência de capital humano qualificado). Além disso, a emergência de serviços digitais transacionáveis introduz uma dinâmica de precificação globalizada.
- Pressão Salarial pela Oferta vs. Demanda: A dinâmica salarial torna-se uma interação complexa entre a produtividade dos setores transacionáveis (que puxa salários para cima) e a oferta e demanda de trabalho qualificado em diferentes segmentos de serviços (que pode conter salários ou impulsioná-los, dependendo da escassez de habilidades específicas).
Fatores específicos do custo de vida em países desenvolvidos: saúde e previdência
A explicação para o elevado custo de vida em países desenvolvidos transcende a atuação direta do efeito Balassa-Samuelson, sendo significantemente influenciada por setores e regulamentações específicas:
- Custos Elevados em Serviços de Saúde: O alto custo dos serviços de saúde nesses países é multifacetado. Ele se justifica, em parte, pelo uso intensivo de equipamentos e pessoal de alta qualificação e especialização e constante inovação, refletindo o investimento em capital humano e tecnologia que eleva o valor intrínseco do serviço. No entanto, o custo também é exacerbado por regulamentações e estruturas de mercado que podem ser ineficientes, burocráticas ou excessivamente fragmentadas, contribuindo para preços mais altos sem uma correspondente melhora na produtividade ou qualidade que justifique integralmente o aumento. Isso inclui custos administrativos, o poder de negociação de grandes empresas farmacêuticas e a complexidade dos sistemas de seguro.
- Programas de Aposentadoria e Previdência: Os custos associados a programas de aposentadoria e previdência, frequentemente robustos em economias desenvolvidas, também contribuem para o custo de vida dos trabalhadores que arcam em parte com o seu custo. Embora sejam fundamentais para o bem-estar social, sua sustentabilidade pode ser desafiada por fatores econômicos (encurtamento do PIB) e, crucialmente, pela regulação de seus sistemas financeiros subjacentes. Uma regulação fraca ou inadequada do sistema financeiro, que é a base de sustentação desses planos previdenciários (públicos ou privados), pode levar a retornos insuficientes sobre os investimentos, custos de gestão elevados ou crises que exigem capitalização adicional. Esses custos são, em última instância, repassados aos contribuintes ou aos beneficiários através de impostos mais altos ou menores benefícios futuros, impactando o custo de vida geral.
Esses fatores setoriais demonstram que, embora o B-S explique a tendência geral de serviços mais caros em países ricos, a magnitude e as causas específicas em áreas críticas como saúde e previdência são moldadas por decisões políticas e regulatórias que fogem da simples lógica de diferenciais de produtividade.
O Contexto dos países em desenvolvimento: desafios estruturais e o B-S
A aplicação do teorema B-S a países em desenvolvimento revela um cenário distinto e mais complexo. Nesses contextos, a predominância de serviços de baixa produtividade é ubíqua, não como um resultado da alta produtividade industrial que eleva os salários (como no B-S), mas por razões estruturais e históricas:
- Negligência de Políticas Industriais e Comerciais: A ausência de políticas industriais e comerciais coerentes e de longo prazo impede o desenvolvimento de setores transacionáveis robustos e de alta produtividade. Isso resulta em uma base industrial fraca, incapaz de gerar os ganhos de produtividade que puxariam os salários da economia.
- Qualificação Aparente vs. Efetiva: A “superqualificação” é frequentemente aparente, dada a baixa qualidade do ensino. Há muitos formados, mas com pouca qualificação efetiva e habilidades que atendam às demandas de um mercado de trabalho sofisticado. Essa desconexão entre oferta e demanda de qualificações não permite que a educação se traduza em ganhos generalizados de produtividade ou salários elevados, como visto em economias desenvolvidas.
- Escassez de Instrumentos de Trabalho Sofisticados: Políticas tarifárias ineficazes ou “esquizofrênicas” e a proibição ou restrição de contratação de empresas estrangeiras para executarem obras de infraestrutura ou construção civil limitam o acesso a tecnologias avançadas e “melhores práticas” internacionais. Isso restringe a capacidade dos serviços locais de se tornarem mais produtivos e modernos.
- Serviços com Baixa Produtividade: Em países em desenvolvimento, a vasta maioria dos serviços ainda se caracteriza por baixa produtividade, alta intensidade de mão de obra não qualificada ou semi-qualificada, e pouca inovação. Isso contrasta com a realidade dos países desenvolvidos onde, mesmo nos serviços, a tecnologia e a qualificação tendem a ser elevadas, principalmente pela qualificada estrutura de equipamento e conhecimento disponíveis em larga escala a trabalhadores alocados em áreas como a construção civil ou outras de grande empregabilidade de mão de obra.
Em suma, em países em desenvolvimento, o domínio de serviços de baixa produtividade reflete falhas estruturais na política econômica e educacional, e não o efeito de um setor transacionável de alta produtividade “puxando” o restante da economia. A dinâmica de salários e preços nesses contextos é, portanto, moldada mais pela ineficiência e falta de competitividade do que pelos mecanismos de transbordamento de produtividade de um setor transacionável robusto.
Conclusão: Balassa-Samuelson reinventado, não refutado, e suas limitações contextuais
O teorema Balassa-Samuelson, embora formulado em um contexto diferente, permanece relevante para entender as diferenças de preços e câmbio real entre países. No entanto, ele não é um teorema “estático”, mas uma estrutura analítica que exige reinterpretação à luz das profundas transformações econômicas.
Os elementos dinâmicos discutidos – a crescente produtividade dos serviços, sua maior transacionabilidade e a complexa interação entre oferta e demanda de uma força de trabalho cada vez mais qualificada – moderam o efeito B-S em economias desenvolvidas. O “milagre dos números” ainda pode existir, mas suas causas e manifestações são mais multifacetadas. A convergência de preços para bens transacionáveis é notória, e alguns serviços de alto padrão também podem exibir certa convergência devido à busca por qualidade e capital humano globalmente comparável. Contudo, para a maioria dos serviços, a divergência persiste, mas parecem estar restritos a um grupo de baixíssima produtividade.
Para países em desenvolvimento, o cenário é substancialmente distinto. O predomínio de serviços de baixa produtividade reflete problemas estruturais mais profundos relacionados à ausência de políticas de fomento à produtividade, à inadequação da qualificação da força de trabalho e a barreiras à adoção de tecnologias e suas melhores práticas. Nesses contextos, o B-S pode ter uma aplicabilidade limitada para explicar o padrão de preços e produtividade, que é mais moldado por deficiências sistêmicas do que pelos mecanismos de transbordamento de produtividade de um setor transacionável robusto. Além disso, o custo de vida elevado em países desenvolvidos não se explica unicamente pelo B-S, mas também por fatores setoriais e regulatórios específicos, como a organização e eficiência dos sistemas de saúde e previdência, que têm um impacto significativo nos preços e na carga econômica para os cidadãos.
Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br