“Fora a necessidade de um controle central para manter o ajuste entre a propensão a consumir e o estímulo para investir, não há mais razão do que antes para socializar a vida econômica”. J.M. Keynes.
Cristina Ribas Vargas
Esta semana os noticiários de economia deram destaque a PEC que propõe o fim da jornada de trabalho no regime de escala 6×1. A jornada 6×1 é aquela em que os dias de trabalho ocorrem durante seis dias consecutivos e o descanso ocorre no sétimo dia. Portanto, no período de uma semana, a cada seis dias trabalhados, obtém-se o direito de descansar um dia. Não obstante, a proposta não foca apenas na redução da jornada 6×1, mas também propõe a implementação da jornada legal de quatro dias de trabalho na semana como segue:
“Esta emenda à Constituição surge a partir das demandas e reivindicações dos trabalhadores, por meio de mecanismos participativos, como a petição pública online do Movimento “Vida Além do Trabalho”, organizado pelo trabalhador Ricardo Azevedo, em que quase 800 mil brasileiros e brasileiras cobram do Congresso Nacional o fim da jornada 6×1 e adoção da jornada de trabalho de 4 dias na semana”
Esse aspecto merece ser observado, na medida em que os segmentos econômicos mais afetados pela redução da jornada em escala 6×1 seriam o comércio varejista e alguns serviços, como aqueles prestados por hospitais, hotéis e restaurantes, por exemplo. Considerando que no Brasil o número de trabalhadores ocupados no comércio corresponde a aproximadamente 10 milhões (2022), e no setor de serviços em torno de 14 milhões (2021) – dados do IBGE -, há quem desmereça a proposta por considerá-la de impacto pouco relevante se considerado o conjunto total da população ocupada. Contudo, dado que a jornada de trabalho mais adotada no país é a 5×2, de 8 horas diárias e 40 horas semanais de trabalho com dois dias de descanso, a alteração de uma jornada de 44 horas semanais de trabalho para 36 horas implicaria na adoção de uma escala 4×3 para a maioria das empresas, gerando impacto significativo na sociedade brasileira.
A Constituição Federal de 1988, especificamente no art. 7º, inciso XIII, trata da duração da jornada de trabalho nos seguintes termos: “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.” Assim, ao ultrapassar tais limites significa dizer que ocorreu trabalho em jornada extraordinária. Alterações na jornada de trabalho exigem alterações nos dispositivos constitucionais, o que significa alterar o principal instrumento legal do Estado Democrático de Direito, e, portanto, a necessidade de considerar a opinião do conjunto da sociedade.
Além disso, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não define o regime de escalas, apenas determina que a jornada de trabalho deve respeitar o limite máximo de 8 horas diárias e 44 horas semanais. Dentro desses parâmetros, é possível ajustar a escala conforme a necessidade da contratante. Além das escalas mencionadas – 6×1, e a mais usual 5×2 – também se observa a adoção da escala 5×1, em que se trabalha cinco dias consecutivos e folga-se no sexto, sendo que neste caso a CLT determina que ao menos um dos dias de folga no mês ocorra em um domingo. Já os serviços de saúde e segurança, que não podem sofrer interrupção, utilizam usualmente escalas de horas tais como 12×36, 18×36, e 24×48, desde que previsto em acordo.
Importante destacar que a referida PEC propõe que a redução da jornada seja implementada sem redução de salário, desta forma o debate torna-se acirrado na medida em que mensurar a produtividade do trabalho passa a ser um ponto central da discussão, e vale ressaltar que existem diferentes formas de mensurar a produtividade do trabalho.
Como não poderia deixar de ser quando se trata do mercado de trabalho, as visões sobre a repercussão econômica e social são diametralmente opostas, e por vezes difíceis de mensurar em termos agregados, ampliando o quadro de incerteza sobre o resultado efetivo da proposta.
A discussão não é recente, e está no cerne do debate econômico clássico que envolve a relação entre salários, preços e lucros. Durante a revolução industrial a jornada de trabalho chegou a 20 horas diárias consecutivas, e contava com o emprego de crianças com menos de 10 anos de idade. O processo de redução da jornada de trabalho tem sido buscado ao longo dos três últimos séculos, e sua discussão é uma necessidade social.
Os críticos argumentam que a proposta é irrealista e que o resultado esperado é inflação, desemprego e recessão. Esse é o esperado quando se considera apenas os aumentos nos custos para o empregador, e desconsidera totalmente a variação nas receitas que um novo arranjo institucional pode promover. Assim sendo, cabe destacar os pontos que tornam a proposta plausível.
Pelo lado dos trabalhadores as justificativas vão desde a humanização da jornada de trabalho, assegurando melhor qualidade de vida aos trabalhadores, até a efetiva possiblidade de qualificação destes trabalhadores em busca de melhores oportunidades no mercado de trabalho, haja vista que dispõem de apenas um dia de descanso para poder investir no próprio desenvolvimento (o que de fato não configura descanso). Sob esse aspecto há que se considerar que a possibilidade de qualificação dos trabalhadores torna mais efetivo o exercício da concorrência entre aqueles que competem por uma colocação no mercado de trabalho.
Além disso, do ponto de vista do antitruste, pressupõe-se que os processos de concentração de empresas possam resultar no enxugamento de postos de trabalho. É o que se observa, por exemplo, no mercado de educação, em que fusões entre instituições de ensino resultam na demissão de funcionários, e resultam na ampliação de jornada de trabalho dos funcionários que permanecem. Neste caso, a implementação do limite da jornada de 4×3 poderia resultar em aumento do número de empregos, crescimento econômico e ampliação da arrecadação.
De certo que a redução da jornada, mantidos os salários e a produtividade constante, implica em aumento de custo para o empresário; porém, o consumo propiciado pelos trabalhadores que passam a integrar esse mercado também implica em ganhos de receita. Relembrando Kalecki, os capitalistas ganham o que gastam e os trabalhadores gastam o que ganham. Além disso, um aumento de produtividade decorrente da jornada 4×3 associada a redução de custos com energia, materiais e equipamentos pode gerar um resultado líquido positivo para o empregador.
Embora a taxa de crescimento do país não seja significativamente elevada nas últimas décadas, o PIB por pessoa ocupada cresceu consideravelmente entre 1991 e 2023 (dados do World Bank), mostrando que há margem para discussão sobre a redução da jornada de trabalho agregada. Considerando que essa evolução ocorreu enquanto a média de horas trabalhadas gira em torno das quarenta horas semanais, parece lógico concluir que os ganhos dos trabalhadores também podem ser alocados via redução da jornada de trabalho.
Fonte: World Bank, 2024.
Dados da PNAD/IBGE mostram que entre 2012 e 2024, considerando todos os trabalhos habituais a média semanal de horas trabalhadas foi de 40,02 horas, enquanto a totalidade dos trabalhos efetivos apresentou uma média de 38,40 horas semanais. Assim, a evolução do PIB por pessoa ocupada vem aumentando, enquanto a escala de 40 horas semanais permanece constante.
Portanto é urgente falar em produtividade e concorrência no mercado de trabalho, para que não só a alocação da mão de obra seja eficiente, mas para que também a distribuição do produto seja mais justa e possibilite novas ondas de crescimento. Nações que prosperam, como dito pelos vencedores do prêmio Nobel de economia de 2024, são includentes, e contam com um Estado atuando para garantir a participação efetiva de todos, assegurando que todos possam desenvolver suas habilidades. Enquanto as nações que fracassam não contam com instituições voltadas para o desenvolvimento social, mas com a dominação e disputa entre grupos de poder.
Ainda amanheço olhando pela janela à espera do espetáculo do crescimento, mas ciente de que o verdadeiro milagre só vai acontecer quando houver um real incentivo ao investimento. Entender que a regulação do Estado nos mais diversos segmentos econômicos, e principalmente no mercado de trabalho é necessária, é entender como o ordenamento jurídico atuando sobre as relações econômicas pode, acima de tudo, salvaguardar a paz.
Referências
IBGE, Pesquisa Anual de Comércio, 2024. Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/comercio/9075-pesquisa-anual-de-comercio.html
IBGE, Agência de Notícias, 2024. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37753-ocupacao-no-setor-de-servicos-cresce-7-8-e-chega-ao-recorde-de-13-4-milhoes
IBGE/PNAD Contínua, 2024. Disponível em http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx .
PEC 6X1, novembro de 2024. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/area/congresso-nacional/pec-do-fim-da-escala-6×1-veja-a-integra-da-proposta-que-mobiliza-as-redes/ .
WORLD BANK, Dataworldbank, 2024. Disponível em https://data.worldbank.org/indicator/SL.GDP.PCAP.EM.KD?end=2023&locations=BR&start=1991
Cristina Ribas Vargas. Doutora em economia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Economia do Desenvolvimento pela PUC/RS e Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atuou como professora substituta na UFRGS e professora adjunta em instituições de ensino privado. É economista da Administração Pública Federal desde 2005, e atualmente está atuando na CGAA2 do Cade.
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