Andrey Vilas Boas de Freitas
A promulgação da Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024[1], marca um avanço significativo na regulamentação da pesquisa com seres humanos no Brasil. Esta legislação estabelece diretrizes éticas e procedimentos rigorosos para a condução de pesquisas, além de instituir o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (SINEPSH). No entanto, apesar dos avanços, diversos aspectos da lei necessitam de regulamentação para garantir a sua plena eficácia.
Um dos aspectos a serem regulamentados é a composição e as competências do SINEPSH. A Lei nº 14.874/2024 institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, mas carece de detalhamento sobre a composição do SINEPSH, suas competências específicas e os critérios para a escolha de seus membros. Uma alternativa sugerida seria regulamentar a composição do SINEPSH com base em exemplos internacionais, como o Comitê de Ética da União Europeia[2], que inclui especialistas de diversas áreas, representantes da sociedade civil e membros independentes. A escolha dos membros poderia seguir critérios de qualificação acadêmica e experiência prática em ética de pesquisa, garantindo diversidade e representatividade.
Outro ponto que necessita de regulamentação é o processo de consentimento informado. A lei aborda o consentimento informado, mas não especifica os requisitos mínimos para sua obtenção, especialmente em contextos vulneráveis ou com populações específicas, como crianças ou pessoas com deficiência. Uma alternativa seria inspirar-se em diretrizes como as da Declaração de Helsinki e do CIOMS (Council for International Organizations of Medical Sciences)[3], que estipulam a necessidade de processos adaptados ao nível de compreensão dos participantes, incluindo consentimento informado por escrito e, em certos casos, audiovisuais. A regulamentação deve garantir que o consentimento seja um processo contínuo, com revisões periódicas durante a pesquisa.
A proteção de dados pessoais e privacidade também é um aspecto que precisa ser regulamentado. A proteção de dados pessoais dos participantes de pesquisa é mencionada na lei, mas falta um detalhamento sobre como as informações devem ser coletadas, armazenadas e compartilhadas, especialmente em estudos multicêntricos ou internacionais. A regulamentação pode seguir o modelo da GDPR (General Data Protection Regulation) da União Europeia, impondo regras estritas sobre a anonimização dos dados, a limitação do acesso a informações sensíveis e o direito dos participantes de acessarem e controlarem seus dados. É importante assegurar que as instituições de pesquisa estejam em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) do Brasil.
A fiscalização e as penalidades são outro ponto que exige regulamentação. A lei estabelece penalidades para violações das diretrizes de pesquisa, mas não especifica os mecanismos de fiscalização, nem os critérios para a aplicação de penalidades. A regulamentação poderia detalhar as competências das comissões de ética locais e do SINEPSH na fiscalização contínua das pesquisas, incluindo auditorias periódicas e mecanismos de denúncia anônima. A aplicação de penalidades deve ser proporcional à gravidade da violação e incluir desde advertências até a suspensão de licenças de pesquisa.
Por fim, a responsabilidade e a reparação em caso de danos também necessitam de regulamentação. A responsabilidade dos pesquisadores e das instituições em caso de danos aos participantes não é totalmente clara na lei, especialmente no que tange à reparação de danos físicos, psicológicos ou materiais. Uma alternativa seria basear-se em normas como as do NIH (National Institutes of Health) dos Estados Unidos[4], que estipulam a obrigatoriedade de seguros de responsabilidade civil para pesquisas envolvendo seres humanos. A regulamentação deve prever mecanismos claros e céleres para a reparação de danos, além de um fundo de compensação para vítimas em casos de insolvência dos responsáveis.
Em conclusão, a Lei nº 14.874/2024 é um marco importante, mas sua eficácia depende de uma regulamentação detalhada e bem estruturada. A adoção de melhores práticas internacionais pode contribuir para um sistema robusto de proteção aos participantes de pesquisa no Brasil, equilibrando o avanço científico com a defesa dos direitos humanos. A regulamentação desses aspectos críticos não só fortalecerá o SINEPSH, como também garantirá que o Brasil se alinhe aos mais altos padrões éticos globais em pesquisa científica.
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L14874.htm
[2] The Independent Ethical Committee – European Commission (europa.eu)
[3] https://cioms.ch/
[4] https://www.nih.gov/
Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996