Andrey Vilas Boas de Freitas

Introdução

A Lei 14.758, publicada em 20 de dezembro de 2023, institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. Com um período de “vacatio legis” de 180 dias, esperava-se que a regulamentação da lei ocorresse até junho de 2024. No entanto, já se passaram 223 dias e ainda não há regulamentação efetiva por parte do Ministério da Saúde. Esse atraso compromete a implementação das políticas previstas e a garantia de atendimento adequado aos pacientes oncológicos no Brasil. Este artigo destaca os principais pontos da Lei 14.758 que necessitam de imediata regulamentação e a importância de flexibilidade na adaptação das normativas conforme as realidades locais.

  1. Da definição de critérios e procedimentos para otimizar a navegação dos pacientes

A “navegação do paciente” refere-se a um sistema de acompanhamento personalizado para pacientes com doenças complexas, como o câncer, com o objetivo de facilitar o acesso ao diagnóstico, tratamento e cuidados contínuos. O conceito foi desenvolvido para ajudar os pacientes a superarem as barreiras que dificultam a obtenção de cuidados médicos adequados e oportunos. Envolve a coordenação entre diferentes profissionais e serviços de saúde para garantir que o paciente receba cuidados contínuos e integrados. Isso pode incluir a organização de consultas com especialistas, a coordenação de tratamentos em diferentes locais e a comunicação entre os diferentes membros da equipe de saúde.

A regulamentação deve definir os critérios de seleção e capacitação dos navegadores de saúde[1], suas atribuições e responsabilidades, incluindo o acompanhamento do paciente desde o diagnóstico até o término do tratamento, além dos mecanismos de monitoramento e avaliação do programa para garantir sua eficiência e eficácia.

A ideia é de que os navegadores ajudem os pacientes a superarem barreiras que podem incluir dificuldades financeiras, problemas de transporte, falta de informação sobre a doença e o tratamento, barreiras linguísticas e culturais e obstáculos administrativos. Nesse sentido, sua ação envolve o fornecimento de informações sobre a doença, opções de tratamento e recursos de apoio disponíveis, ajudando os pacientes a tomarem decisões informadas sobre seu cuidado. Também cabe aos navegadores a oferta de suporte emocional e prático para ajudar os pacientes a lidarem com o impacto da doença.

Além disso, é papel dos navegadores o monitoramento do progresso do paciente ao longo do tratamento e a avaliação da eficácia do plano de cuidados, de modo a permitir a realização de ajustes conforme necessário. Essa atividade está centrada, portanto, na coleta de dados para identificar áreas de melhoria e garantir que o paciente esteja recebendo o melhor atendimento possível.

A navegação do paciente é uma abordagem essencial para melhorar a qualidade e a eficiência dos cuidados de saúde para pacientes com câncer. Ao fornecer suporte personalizado, superar barreiras, coordenar cuidados e monitorar o progresso, os navegadores de saúde ajudam a garantir que os pacientes recebam o tratamento adequado de maneira oportuna e eficaz. A implementação de um programa robusto de navegação do paciente, conforme previsto pela Lei 14.758/2023, é fundamental para alcançar os objetivos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e melhorar a qualidade de vida dos pacientes oncológicos no Brasil.

Exemplos de Navegação do Paciente em Oncologia

Diagnóstico Rápido e Tratamento Inicial

Um paciente diagnosticado com câncer de mama pode ser designado a um navegador de saúde que ajuda a agendar rapidamente consultas com oncologistas, exames de imagem e biópsias. O navegador também pode ajudar o paciente a entender os resultados dos exames e discutir opções de tratamento.

Acesso a Tratamentos Especializados

Um paciente em uma área rural pode enfrentar dificuldades para acessar tratamentos especializados. O navegador pode organizar transporte para o paciente até um centro oncológico regional, coordenar consultas com especialistas e facilitar o uso de telemedicina para consultas de acompanhamento.

Suporte durante o Tratamento

Durante a quimioterapia, o navegador pode ajudar o paciente a gerenciar os efeitos colaterais, pode fornecer informações sobre nutrição e cuidados de suporte e mesmo organizar serviços de apoio, como aconselhamento psicológico ou grupos de apoio.

Transição para Cuidados Pós-Tratamento

Após o tratamento, o navegador pode ajudar o paciente a fazer a transição para os cuidados de sobrevivência, coordenando consultas de acompanhamento, exames regulares de monitoramento e programas de reabilitação.

  • Das fontes de financiamento

A implementação efetiva da Lei 14.758/2023 depende de um financiamento robusto e sustentável. A regulamentação das fontes de financiamento é crucial para garantir que os recursos necessários estejam disponíveis e sejam utilizados de forma eficiente e equitativa. A falta de clareza e transparência sobre as fontes de financiamento pode levar a desigualdades na distribuição de recursos, comprometendo a efetividade das políticas de prevenção e controle do câncer.

A regulamentação deve definir claramente as fontes de financiamento, que podem incluir orçamento federal, estadual e municipal, além de parcerias com a iniciativa privada e organizações não-governamentais. Isso assegura que todas as partes interessadas estejam cientes de suas responsabilidades e compromissos financeiros.

A regulamentação deve ainda estabelecer critérios claros e justos para a distribuição dos recursos financeiros. Isso pode incluir a avaliação das necessidades locais, considerando fatores como a incidência de câncer, a infraestrutura de saúde existente, a disponibilidade de profissionais qualificados e a capacidade de implementação das políticas.

Por exemplo, municípios com alta incidência de câncer e infraestrutura limitada devem receber mais recursos para desenvolver suas capacidades. Em contraste, grandes centros urbanos com recursos adequados podem focar em programas de inovação e aprimoramento da qualidade dos cuidados.

Importante destacar também a necessidade de a regulamentação incluir mecanismos de monitoramento e transparência para garantir que os recursos sejam utilizados de maneira eficaz e ética. Isso pode envolver auditorias regulares, relatórios públicos sobre a alocação e uso dos recursos, e a participação da sociedade civil no monitoramento das políticas de financiamento.

Uma via interessante seria estimular parcerias com o setor privado para complementar o financiamento público, trazendo investimentos adicionais e inovações tecnológicas para o sistema de saúde. Empresas farmacêuticas, por exemplo, podem colaborar em programas de acesso expandido a medicamentos oncológicos, enquanto organizações não-governamentais podem oferecer apoio logístico e educacional.

  • Dos protocolos clínicos

A uniformização dos tratamentos oncológicos é crucial para garantir a qualidade do atendimento. A regulamentação deve definir protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas baseadas em evidências científicas e estabelecer a obrigatoriedade da adoção desses protocolos por todas as unidades de saúde, públicas e privadas.

Além de garantir a qualidade, a adoção de protocolos clínicos facilita o atendimento de pacientes que, eventualmente, precisem se deslocar para municípios diferentes daqueles nos quais iniciaram seu tratamento.

Vale lembrar também que, para garantir a qualidade do atendimento, é fundamental investir na formação continuada dos profissionais de saúde. A regulamentação deve estabelecer programas de capacitação em oncologia para médicos, enfermeiros e demais profissionais envolvidos no cuidado dos pacientes, além de promover parcerias com universidades e instituições de ensino para o desenvolvimento de cursos e treinamentos especializados.

É preciso ainda buscar a estruturação de uma rede de assistência oncológica integrada e eficiente, abrangendo a definição de centros de referência em oncologia, garantindo acesso a tratamentos especializados, e a criação de mecanismos de regulação e encaminhamento de pacientes, evitando longas filas de espera e deslocamentos desnecessários.

  • Da necessária adaptação da política à diversidade regional e local

A diversidade regional do Brasil exige que a regulamentação da Lei 14.758/2023 seja flexível o suficiente para se adaptar às diferentes realidades locais. Municípios e estados possuem diferentes níveis de infraestrutura e disponibilidade de profissionais de saúde. A regulamentação deve permitir que cada local adapte as normativas conforme suas capacidades, garantindo a implementação eficiente da política em todo o território nacional.

Estimular parcerias entre governos locais, instituições de ensino, organizações não-governamentais e a iniciativa privada pode acelerar a implementação das políticas e melhorar a qualidade do atendimento. Incentivar o uso de tecnologias, como telemedicina e sistemas de informação em saúde, é fundamental para superar barreiras geográficas e otimizar o atendimento aos pacientes oncológicos.

A diversidade do sistema de saúde brasileiro torna imperativo que a regulamentação seja adaptável às necessidades e capacidades locais. Por exemplo, em grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, a infraestrutura de saúde é mais desenvolvida, com a presença de diversos hospitais especializados em oncologia, tecnologias avançadas e uma quantidade significativa de profissionais qualificados. Nesse contexto, a implementação dos programas previstos pela lei pode ser mais rápida e abrangente.

Por outro lado, em municípios menores e regiões mais remotas, como no interior do Amazonas ou no sertão nordestino, a realidade é bem diferente. A escassez de profissionais de saúde especializados, equipamentos médicos adequados e infraestrutura hospitalar torna a implementação da política de prevenção e controle do câncer um desafio muito maior. Nesses locais, a regulamentação deve permitir adaptações, como a utilização de telemedicina para consultas e acompanhamento de pacientes, parcerias com hospitais regionais para o encaminhamento de casos mais complexos e programas de capacitação específicos para profissionais de saúde locais.

Nos casos concretos em que existem dificuldades logísticas e de infraestrutura para oferecer tratamento oncológico adequado, a regulamentação flexível permitiria a criação de um sistema de navegação que integrasse a telemedicina para consultas iniciais e de acompanhamento, além de prever a realização de mutirões de saúde periódicos com equipes médicas especializadas que se deslocariam até a região para atendimento presencial e capacitação dos profissionais locais.

Outro aspecto crítico que necessita de regulamentação é a questão da oferta desigual de medicamentos oncológicos entre os diversos estados e municípios brasileiros pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo os medicamentos que já foram incorporados há anos ao sistema público não estão disponíveis de maneira uniforme em todo o país. Essa desigualdade no fornecimento compromete significativamente o tratamento de pacientes oncológicos, criando uma disparidade no acesso a terapias essenciais.

Por exemplo, medicamentos como o trastuzumabe, usado no tratamento do câncer de mama HER2 positivo, e o imatinibe, utilizado para tratar leucemias e tumores gastrointestinais, são amplamente reconhecidos e incorporados ao SUS. Contudo, pacientes em estados do Norte e Nordeste frequentemente enfrentam dificuldades para acessar esses medicamentos, diferentemente de pacientes em estados do Sudeste e Sul, onde a disponibilidade é mais regular.

A regulamentação precisa estabelecer mecanismos para garantir a distribuição equitativa de medicamentos oncológicos em todas as regiões do país. Isso pode incluir a criação de um sistema centralizado de gestão de estoques e distribuição, que leve em consideração as necessidades específicas de cada localidade, e a implementação de políticas que assegurem o reabastecimento constante dos medicamentos essenciais, evitando interrupções no tratamento. Experiências internacionais bem-sucedidas podem servir de referência e permitir a economia de tempo e de recursos na implementação das medidas necessárias.

Conclusão

A regulamentação da Lei 14.758/2023 é urgente para garantir a efetividade da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e do Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. A definição clara das diretrizes de implementação, financiamento, protocolos clínicos, capacitação de profissionais e garantia de distribuição equitativa de medicamentos é essencial para que os pacientes oncológicos recebam o atendimento adequado e oportuno.

Além disso, a flexibilidade na regulamentação permitirá a adaptação das políticas às diferentes realidades locais, promovendo equidade no acesso aos serviços de saúde em todo o Brasil. É imperativo que o Ministério da Saúde agilize esse processo para garantir a plena implementação da lei e a melhoria da qualidade de vida dos pacientes oncológicos no País.


[1] Os navegadores de saúde, que podem ser profissionais da área médica, enfermeiros ou assistentes sociais, são designados para cada paciente para oferecer suporte contínuo. Eles ajudam a coordenar consultas, exames, tratamentos e outras necessidades do paciente ao longo do percurso de cuidado.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


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