Fernando de Magalhães Furlan

Ao longo dos anos, tem sido prática comercial reiterada das agências de publicidade o desvirtuamento da competição por projetos de produção audiovisual (filmes publicitários), dentro de campanhas publicitárias, ao oferecerem tais serviços por meio de produtoras próprias, relacionadas ou parceiras, utilizando informações privilegiadas.

Além disso, o mercado de serviços de publicidade é altamente concentrado no Brasil, denotando posição dominante da parte de meia dúzia de mega agências, que, utilizando a sua influência econômica, desviam projetos de produção audiovisual para produtoras parceiras, fechando assim o mercado para as produtoras independentes.

Tal conduta das agências pode, potencialmente, caracterizar o chamado tying (venda casada, isto é, condicionar a venda de produto/serviço à aquisição de outro) ou o bundling (estratégia de venda de vários produtos ou serviços em conjunto, com supostos benefícios de aquisição para o cliente, em termos de preço e/ou funcionalidade)[1]. Além disso, essa atitude das agências de publicidade denota comportamento antiético[2], além de contrário à ordem econômica e à livre concorrência.

Além do tying (venda casa) e bundling[3] (venda em pacote), que se caracterizam por condutas unilaterais, o comportamento das grandes agências de publicidade também pode configurar condutas concertadas como o bid-rigging
(licitação fraudulenta) e a fixação de preços[4].

Aliás, a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça (DoJ) dos Estados Unidos da América investigou, durante os anos de 2016 e 2018, as agências de publicidade daquele país sobre o uso de unidades de produção internas para a manipulação de licitações e fixação de preços, chamando a atenção para práticas há muito reclamadas por produtoras independentes e estúdios de efeitos/produções visuais.

O DoJ investigou se as agências de publicidade distorcem o processo de licitação privada, utilizando informação privilegiada[5], em favor de suas próprias unidades de produção interna, forçando empresas independentes de produção e pós-produção a aumentar os seus preços e, consequentemente, perder a competição/licitação privada.

Nos Estados Unidos, aliás, a questão das unidades de produção interna e as práticas anticompetitivas é algo que a Associação de Editores de Criação Independentes – AICE (Association of Independent Creative Editors), por exemplo, vem trabalhando há algum tempo. Em 2014, a AICE emitiu uma declaração oficial destacando as preocupações com questões de transparência, neutralidade e a prática de “verificar licitações”, isto é, “convidar empresas independentes a fazer propostas irrealistas, um processo que pode custar a essas empresas milhares de dólares de uma só vez, simplesmente para fazer aumentar os números em um campo que eles não podem ganhar[6].

A investigação esteve focada no mercado estadunidense, mas também chamou a atenção para a tensão mais ampla entre unidades de produção internas e fornecedores independentes em mercados ao redor do mundo.

Em Londres, a Associação dos Produtores de Publicidade (Advertising Producers’ Association – APA) respondeu à revelação com um memorando aos seus membros. A declaração diz que a APA defende que seus membros não façam licitações (processos seletivos) contra produtoras independentes e que os clientes sejam mais questionadores, exigindo transparência.

A investigação do DoJ, ou de qualquer outra autoridade antitruste, deve também se concentrar em averiguar se o dinheiro dos clientes (anunciantes) está sendo efetivamente gasto da maneira a mais robusta e rigorosa possível, com os melhores talentos disponíveis, a fim de entregar o melhor resultado; ou se, ao contrário, é mera solução conveniente, para suportar um fluxo previsível e confortável de receita para as agências.

A questão, portanto, vai além da manipulação de licitações privadas para o fornecimento de serviços de audiovisual, por exemplo, favorecendo produtoras internas/associadas das próprias agências de publicidade. Pois, ao cortarem o orçamento automaticamente, as unidades de produção internas das agências não estão dando aos clientes acesso aos melhores talentos e maior valor ao seu dinheiro. Pelo contrário, estão se apropriando de um bem-estar que deveria ser do anunciante/cliente (consumidor).

Apesar de a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos Estados Unidos haver arquivado/encerrado a investigação[7] de 2 anos sobre possível fraude a licitações e fixação de preços, de parte das agências de publicidade, para favorecerem unidades de produção internas, merece ser ressaltado que permanece em aberto investigação do Federal Bureau of Investigation – FBI sobre transparência entre anunciantes e agências de compra de mídia[8].

Em 10 de outubro de 2018, a Associação de Anunciantes Nacionais (ANA) notificou os seus membros de que o FBI lhe havia solicitado que informasse a seus membros sobre a investigação e pedisse que cooperassem, caso eles acreditassem que pudessem ter sido fraudados por suas agências de publicidade. Assim, o tema continua sob investigação, agora criminal, por parte das autoridades estadunidenses.

Além disso, o enforcement das autoridades antitruste estadunidenses, em relação ao setor publicidade, continua firme. Recentemente, em abril de 2022, a Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Commission – FTC) e a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos EUA (DoJ) realizaram outra fase de sua “turnê de audição” (listening tour), com foco na indústria de mídia e entretenimento. Como nos fóruns anteriores, a FTC e o DOJ promoveram a discussão para permitir que participantes menores do mercado – como artistas, criadores de conteúdo, jornalistas e o público em geral – expressassem as suas opiniões sobre os efeitos da consolidação na indústria de mídia e entretenimento.

A presidente da FTC, Lina Khan, abriu o fórum destacando as mudanças significativas do mercado na indústria de mídia e entretenimento na última década. Kahn observou uma quantidade significativa de consolidação vertical entre empresas nos últimos anos e expressou preocupação de que, atualmente, apenas um punhado de empresas controla a maior parte da cadeia de suprimentos de entretenimento.

Essas mudanças levaram a uma preocupação semelhante por parte dos observadores e estudiosos da indústria da publicidade, de que essas entidades integradas exerceriam o seu poder de mercado contra criadores de conteúdo e limitariam a diversidade de conteúdo que chegaria aos consumidores. Em suma, Kahn alertou que a consolidação descontrolada na indústria de mídia e entretenimento pode permitir “poder descomunal sobre como a informação é distribuída” afetando, em suas palavras, o “sangue vital” da democracia.

Ao que se vê, a FTC e o DOJ estão perfeitamente sintonizados em relação ao impacto da consolidação na indústria de mídia e entretenimento nas condições econômicas[9].

Vejamos, por exemplo a “Nota de Esclarecimento”[10] da Associação dos Produtores Comerciais Independentes – AICP, dos Estados Unidos da América, sobre a operação de unidades de produção e pós-produção internas de muitas holdings e agências de publicidade, que geralmente são listadas sob nomes não relacionados. A AICP criou uma lista de unidades internas de agências conhecidas para referência de suas associadas e as aconselha a verificar a lista ao considerar uma solicitação de licitação de uma agência para determinar se está licitando contra uma empresa independente ou uma agência e/ou entidade pertencente a uma holding.

No Brasil,por meio da Nota Técnica nº 11/2016/CGAA4/SGA1/SG/CADE, no Processo Administrativo nº 08012.008602/2005-09, a Superintendência Geral do CADE assim se manifestou, em sua “Avaliação final” dos efeitos anticompetitivos (item 2.1.10.4) sobre conduta concertada e fixação de preços da parte das agências de publicidade e do Conselho Executivo de Normas-Padrão (CENP):

Parágrafo 461. Foram analisadas também as condutas de fixação de porcentagem uniforme da comissão de veiculação, o desconto padrão de agência, e de fixação de limites para o repasse de parte do desconto padrão de agência aos anunciantes. Concluiu-se que as condutas também são potencialmente anticompetitivas, já que excluem a possibilidade de concorrência por preços entre as agências, induzindo à uniformização de práticas comerciais e vedando ao consumidor dos serviços publicitários a possibilidade de optar por veicular publicidade com preços mais baixos”.

O próprio Conselho Executivo das Normas-Padrão (CENP), isto é, o fórum de autorregulação do mercado publicitário no Brasil, assim se posicionou, por meio da Comunicação Normativa No. 016, de setembro de 2010, sobre a Certificação de Agências de Publicidade, em seu artigo 6º:

O CENP não certificará, por considerar atividades incompatíveis com as de Agência de Publicidade, as pessoas jurídicas que tenham em seu contrato social, ou não o tendo, comprovadamente, exerçam atividades de comércio de qualquer natureza, representação de Veículos de Comunicação, locação de espaço publicitário, produção de audiovisual ou material gráfico, comércio de brindes, editoração, pesquisa de mercado, pesquisa de opinião, consultoria empresarial, marketing político, licenciamento de marcas e patentes, captação de recursos, impressão gráfica, desenvolvimento de sistemas, cursos, palestras, treinamento, montagem de feiras e estandes, locação de mão de obra e tudo o que se relacionar a atividade de indústria e comércio de bens e serviços;” (grifos).

Ou seja, o próprio ente autorregulador dos serviços publicitários no país considera a produção audiovisual incompatível com as atividades de uma agência de publicidade. Isto é a produção audiovisual deve, obrigatoriamente, ser terceirizada/subcontratada por empresa independente, não relacionada à agência.

Ao agir de outra maneira, as agências de publicidade no país estão potencialmente praticando condutas ilícitas, nefastas à concorrência, fazendo incidir as hipóteses previstas no art. 36, caput, da Lei 12.529/11, seus incisos, parágrafos e alíneas, conforme abaixo:

– Limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; e

– Exercer de forma abusiva posição dominante.

Além disso, podem configurar as seguintes hipóteses previstas no § 3º do artigo 36, da LDC, sem prejuízo de outras:

I – acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:

  1. os preços de bens ou serviços ofertados individualmente;

b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços;

c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos;

d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação (…);

II – Promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;

III – limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;

IV – criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;

V – impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;

VIII – Regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar (…) a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;

X – discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços; e XVIII – subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem.


[1] “A consensus has emerged that a necessary condition for anticompetitive harm arising from allegedly exclusionary agreements is that the contracts foreclose rivals from a share of distribution sufficient to achieve minimum efficient scale (“MES”). This foreclosure concern is inextricably intertwined with the RRC paradigm and is applied by courts and agencies in cases involving allegedly exclusionary agreements of all kinds, including exclusive dealings, market share discounts, shelf space share agreements, category management arrangements, refusals to deal, tying, and bundling (…)”. RRC theories require an analytical link to be established between the allegedly exclusionary agreement and the MES of production. Joshua D. Wright, Moving Beyond Naïve Foreclosure Analysis, 19 GEO. MASON L. REV. 1163, 1163–64 (2012).

[2] CENP – Fórum de Autorregulação do Mercado Publicitário. Comunicação Normativa No. 016 (set/2010). Certificação de Agências de Publicidade (Objeto Social):  (…) “Art. 6º – O CENP não certificará, por considerar atividades incompatíveis com as de Agência de Publicidade, as pessoas jurídicas que tenham em seu contrato social, ou não o tendo, comprovadamente, exerçam atividades de comércio de qualquer natureza, representação de Veículos de Comunicação, locação de espaço publicitário, produção de audiovisual ou material gráfico, comércio de brindes, editoração, pesquisa de mercado, pesquisa de opinião, consultoria empresarial, marketing político, licenciamento de marcas e patentes, captação de recursos, impressão gráfica, desenvolvimento de sistemas, cursos, palestras, treinamento, montagem de feiras e estandes, locação de mão de obra e tudo o que se relacionar a atividade de indústria e comércio de bens e serviços; (…)”. (Grifos).

[3] Venda de diferentes itens (bens ou serviços) em conjunto, como um pacote.

[4] WRIGHT, Joshua – Simple but Wrong or Complex but More Accurate? The Case for an Exclusive Dealing-Based Approach to Evaluating Loyalty Discounts. Bates White 10th Annual Antitrust Conference. Washington, DC 3 June 2013 -https://www.ftc.gov/sites/default/files/documents/public_statements/simple-wrong-or-complex-moreaccurate-case-exclusive-dealing-based-approach-evaluating-loyalty/130603bateswhite.pdf “Improving foreclosure analysis to align more closely with the raising rivals’ cost framework and thereby to focus more intensely upon the ultimate competitive effects of the contracts at issue would significantly improve the existing legal framework. For example, I have suggested elsewhere that measuring the foreclosure attributable to the defendant’s conduct in loyalty discount cases – and all cases alleging contracts create market power via the raising rivals’ cost mechanism – should require a “counterfactual” analysis of the degree of foreclosure without the contracts in question”.

[5] Limites orçamentários do cliente contratante dos serviços, interesses estratégicos dos clientes etc.

[6] Disponível em: https://www.lbbonline.com/news/us-probe-into-agency-in-house-production-bid-rigging-sends-shockwaves-round-industry. Acesso em: 31/07/2023.

[7] Disponível em: https://www.clubedecriacao.com.br/ultimas/departamento-de-justica-dos-eua/. Acesso em: 10/07/2023.

[8] Disponível em: https://www.adotat.com/2018/11/fbi-initiates-media-buy-fraud-investigation/. Acesso em: 10/07/2023.

[9] Disponível em: https://www.hklaw.com/en/insights/publications/2022/05/media-and-entertainment-industry-gets-a-turn-in-doj-ftc-antitrust. Acesso em: 31/07/2023.

[10] Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.aicp.com/assets/editor/Agency_InHouse_List_Final_March2018.pdf. Acesso em: 31/07/2023.

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