Andrey Vilas Boas de Freitas
O crescente interesse na utilização das evidências do mundo real reflete uma mudança no paradigma da pesquisa clínica, que reconhece a necessidade de dados obtidos fora dos ensaios clínicos randomizados para informar de maneira mais abrangente as decisões em saúde. No contexto brasileiro, em que as políticas de saúde são moldadas por uma diversidade de fatores, incluindo características da população, limitações de recursos e vieses ideológicos, a utilização das evidências do mundo real pode ser um divisor de águas para uma tomada de decisão mais contextualizada e eficaz.
As evidências do mundo real (RWE, na sigla em inglês) derivam da análise de dados do mundo real, compreendendo informações obtidas durante a prática clínica rotineira, em contraste com os tradicionais ensaios clínicos randomizados. AS RWE incluem dados de estudos observacionais retrospectivos ou prospectivos, bem como registros observacionais. Ao contrário dos ensaios clínicos randomizados, nos quais a seleção de tratamentos é rigidamente controlada, os estudos de mundo real refletem as escolhas reais de pacientes e médicos, proporcionando uma visão mais alinhada com a prática clínica diária.
Embora as evidências do mundo real proporcionem uma visão inestimável da eficácia e segurança dos tratamentos em ambientes do mundo real, não se deve ignorar os desafios inerentes a essa abordagem. Questões relacionadas à incerteza sobre a validade interna, registro impreciso de eventos de saúde e a possibilidade de viés na literatura são preocupações legítimas que exigem abordagens proativas para garantir a credibilidade e utilidade desses dados.
A validade interna de estudos baseados em evidências do mundo real muitas vezes é questionada devido à falta de controle estrito sobre variáveis que podem confundir a análise. Ao contrário dos ensaios clínicos randomizados, em que as condições são altamente reguladas, os estudos de mundo real enfrentam o desafio de capturar uma ampla gama de fatores que influenciam as decisões de tratamento na prática clínica. Essa variabilidade pode introduzir incertezas nos resultados, levando a dúvidas sobre a robustez e confiabilidade dos dados.
Ao abordar essa incerteza, os pesquisadores devem empregar métodos estatísticos avançados, como ajustes de propensão e modelagem de causalidade, para minimizar o impacto de variáveis de confusão. Além disso, a transparência na divulgação das limitações e do escopo dos estudos é crucial para que os decisores entendam a extensão da incerteza associada aos resultados apresentados.
Outro desafio enfrentado nas evidências do mundo real reside no registro impreciso de eventos de saúde. Diferentemente dos ensaios clínicos randomizados, nos quais os eventos adversos são monitorados de perto em um ambiente controlado, os estudos de mundo real dependem muitas vezes de registros médicos e sistemas de saúde, que podem não capturar completamente todos os eventos relevantes. Esta lacuna pode levar a uma subestimação ou superestimação da segurança dos tratamentos.
Para abordar essa preocupação, é fundamental implementar estratégias que melhorem a qualidade dos dados de saúde utilizados nos estudos de mundo real. Isso pode envolver a integração de sistemas de informação, aprimoramento da padronização nos registros médicos e, quando possível, a validação cruzada de eventos de saúde por meio de diferentes fontes de dados. Além disso, os pesquisadores devem ser transparentes sobre as limitações nos dados de eventos de saúde e destacar as medidas tomadas para mitigar essas limitações.
Além disso, a possibilidade de viés na literatura é uma inquietação legítima, especialmente considerando preocupações sobre “data dredging” (realização de múltiplas análises até encontrar um resultado desejado) e a preferência das revistas por publicar resultados positivos. Esse viés pode distorcer a percepção dos tratamentos e influenciar indevidamente a tomada de decisões em saúde.
Para mitigar essa preocupação, um passo significativo na promoção da confiança nas evidências derivadas de estudos de mundo real é a implementação de boas práticas procedimentais como, por exemplo:
- a pré-especificação clara de hipóteses, protocolo e plano de análise, seguido pela publicação desses documentos antes da condução do estudo para reduzir o viés de publicação;
- a diferenciação entre estudos exploratórios e estudos de avaliação de hipóteses de eficácia (HETE) para uma compreensão clara dos objetivos do estudo;
- a publicação dos resultados do estudo com uma declaração contendo informações detalhadas sobre conformidade ou desvio do plano de análise original oferece uma visão honesta e completa do estudo, melhorando a confiabilidade e transparência;
- a criação de oportunidades para a replicação do estudo por outros pesquisadores sempre que possível, promovendo a transparência e confiabilidade;
- a realização de estudos HETE em fontes e populações diferentes daquelas usadas para gerar as hipóteses, quando viável;
- a produção de respostas a críticas metodológicas pelos autores do estudo original, promovendo a discussão pública e o aprimoramento contínuo do estudo;
- o envolvimento de partes interessadas (stakeholders) que sejam essenciais para o design, a condução e a disseminação do estudo, para garantir relevância e aplicabilidade.
Ao abordar proativamente essas preocupações, é possível otimizar a utilização das evidências do mundo real para aprimorar a tomada de decisões em saúde no Brasil. Os desafios não devem ser vistos como obstáculos intransponíveis, mas como áreas que demandam constante aprimoramento e inovação. A transparência, a colaboração entre stakeholders e o compromisso com práticas metodológicas robustas são os pilares para transformar os desafios em oportunidades.
À medida que o Brasil busca aprimorar suas políticas de saúde, a incorporação de evidências do mundo real na tomada de decisões emerge como uma estratégia vital. Ao seguir boas práticas procedimentais, é possível promover não apenas a transparência, mas também a confiança necessária para utilizar plenamente essas evidências. Essa abordagem, combinada com a consideração das nuances locais, promete uma tomada de decisão em saúde mais informada e alinhada com as necessidades específicas da população brasileira.
O caminho para a integração bem-sucedida das evidências de mundo real às políticas de saúde do Brasil exige um esforço colaborativo de pesquisadores, decisores políticos e outros stakeholders para impulsionar uma mudança positiva em direção a práticas mais eficazes e contextualizadas.
Ao reconhecer e enfrentar os desafios inerentes às evidências do mundo real, o Brasil pode construir uma base sólida para decisões em saúde mais informadas, eficazes e alinhadas com a realidade dos cuidados médicos diários. A busca pela excelência na utilização de evidências de mundo real é uma jornada contínua, mas os benefícios potenciais para a saúde da população brasileira são inestimáveis.