Cristina Vargas

Dentre os dois modos de produção antagônicos propugnados pelas definições das economias liberais e socialistas, a constituição de um Estado Regulacionista vem se apresentando cada vez mais como uma solução instrumental. A abordagem regulacionista parte do princípio de que a economia capitalista está sujeita a crises cíclicas, que no entanto podem ser amenizadas pelo aparato regulatório, permitindo a continuidade de reprodução do sistema. No entanto, para o funcionamento eficaz desse aparelho regulador é necessária a sua aceitação pelos diversos agentes sociais. O processo de destruição criadora envolvido na constituição desse aparato vem acontecendo de forma dinâmica, em que o novo surge antes mesmo que o velho esteja suplantado. Entre o extremo de uma sociedade produtiva totalmente estatal ou aquela na qual os meios de produção são totalmente apropriados e gerenciados pelo mercado, a regulação sobre quem pode gerir com maior eficiência os meios de produção pode tornar-se cada vez mais participativa. Os novos instrumentos tecnológicos de informação e comunicação estão cada vez mais facilmente acessíveis pela sociedade. A estrada da informação, como era chama a internet no início dos anos 1990, era anunciada como um futuro lócus de comércio e interação cultural. Embora tenha nascido como resultado de pesquisas do departamento de defesa dos EUA durante a guerra fria, isto é, fruto do conflito entre os regimes econômicos antagônicos, cada vez mais a internet oferece a possibilidade de maior participação da sociedade acerca dos processos de fiscalização da coisa pública. A exemplo disso podemos citar as consultas públicas feitas pelas agencias reguladoras, e a própria definição dos projetos nos quais serão aplicados os recursos públicos orçamentários. Sabemos que com a tecnologia atual disponível poderíamos ter um mundo completamente diferente. A participação social atuando conjuntamente `a atividade de regulação dos recursos públicos pode representar um importante avanço na resolução dos conflitos, e contribuir para conciliação social necessária para a retomada do crescimento econômico. A história da humanidade nos mostra que o amadurecimento da democracia aconteceu entre avanços e retrocessos. Robsbawn (1996) já afirmara categoricamente que “a Revolução Francesa começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado”, e no entanto o resultado foi o avanço obtido com a declaração dos direitos dos homens e cidadãos. Mais recentemente Piketty (2016:79) afirmou que estamos ainda muito longe das luzes do século, e a resposta precisa ser dada a seguinte pergunta: “que formas de governança alternativas devemos criar no século XXI para escapar da ditadura do proprietário todo-poderoso e finalmente permitir um controle democrático e participativo do capital e dos meios de produção?” Numa perspectiva inspirada nas revoluções pacíficas da história mundial, como a Marcha do Sal ou a Primavera de Praga, a pergunta pode ser estendida ao conceito de democracia cidadã: como escapar de qualquer tipo de ditadura dos meios de produção, estatal ou de mercado, e ainda conciliar os interesses individuais e coletivos em uma sociedade que promova o crescimento econômico e uma política de paz?

A Teoria da Captura preconiza a possibilidade de que as Agências Reguladoras sofram captura por parte dos agentes regulados, e que em conseqüência os interesses desses agentes sejam atendidos em detrimento dos interesses dos consumidores, ou em outras palavras, que serviços de interesse público repassados à atividade privada obtenham ganhos não por aumentos de eficiência, mas por desfrutarem de alguma situação de proteção ou beneficiamento, que por fim indicaria a perda de autoridade e de comprometimento com o interesse público por parte da Agência.

“A doutrina cunhou a expressão ‘captura’ para indicar a situação em que a agência se transforma em via de proteção e benefício para setores empresariais regulados. A captura se configura quando a agência perde a condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo e passa a produzir atos destinados a legitimar a realização dos interesses egoísticos de um, alguns ou todos os segmentos empresariais regulados. A captura da agência se configura, então, como mais uma faceta do fenômeno de distorção de finalidades dos setores burocráticos estatais.” (Justen Filho, 2002: 369).

Aparentemente, o agente que pratica a captura está bem definido, conquanto a forma como o Estado constitui-se em capturado tem sido objeto de estudos e pesquisas. Dificilmente enxergaremos os mecanismos pelo qual o Estado torna-se o agente capturado se o enxergarmos de forma mítica, isto é, uma entidade sem rostos e sem personalidade. Stigler (1971) por exemplo, aponta a importância da pressão de grupos de interesse que financiam partidos políticos cujos projetos regulacionistas são de seu interesse para auferir renda que deveria ser revertida em benefícios dos consumidores. A partir da concepção institucionalista de causação circular, em que as instituições e os

indivíduos se influenciam reciprocamente podemos tentar compreender como se constituem os valores que irão determinar quais regramentos irão reger a sociedade.

Enfatizando o poder da captura em nível de política nacional Cagé (2020) afirma que “o dinheiro compra eleições”, estimando para a França o preço do voto em 35 euros, e apontando uma influencia decisiva do investimento privado sobre os resultados das eleições. Cagé (2017) afirma que não é só no Brasil que a democracia está em crise. O fenômeno de desencanto com a política, também observado nos países avançados, provém de um sentimento de desapropriação sentido pela maioria dos eleitores. Eles têm a impressão de que suas escolhas são confiscadas por uma minoria com forte poder econômico.”

Além do sentimento de ausência de poder emanado diretamente do povo, por melhores e mais racionais que possam ser as escolhas dos indivíduos, devemos considerar também a influência do ao auto-engano nas escolhas, ainda que feitas por mecanismos de participação direta.

“ mentimos para nós mesmos o tempo todo, lembramos e esquecemos de acordo com nossas convicções. O auto-engano permeia grande parte das escolhas que fazemos. Ao nos auto iludirmos geramos implicações éticas na vida publica e pessoal.” (Giannetti: 2005)

Como então garantir que a concorrência será devidamente regulada e não influenciada pela relação por vezes perniciosa entre agentes do Estado e entidades privadas? De acordo com Aktouf (2004) o fato que está latente na atual conjuntura econômica é que a administração pública não pode ser o braço armado da captura por diferentes grupos ou pessoas na definição das políticas públicas.

Alguns exemplos de boas práticas e avanços na administração pública tem se verificado pelo uso de instrumentos que possibilitam o acesso da sociedade civil ao planejamento e à execução das políticas públicas.

A administração pública brasileira dispõe de um rol de instrumentos que podem auxiliar na elaboração de seus regulamentos por meio da participação social, tais como: audiências públicas, consultas regionais, consultas públicas, consultas para revisão de Guias, canais eletrônicos para recepção de denúncias, tomada pública de subsídios, realização pública de Webinars, consultas dirigidas, diálogos setoriais, criação de grupos de trabalho e conselhos participativos. A criação de tais instrumentos tem

contribuído para democratizar o processo de regulação, mas para ser eficaz depende de publicidade eficaz e transparência na fiscalização da gestão.

Assegurar as condições de transparência que garantam a concorrência de fato em processos de regulação, ou mesmo licitatórios, dada a conjuntura recente brasileira passa a ser pré-requisito obrigatório para a manutenção de uma estrutura social pacifica.

Em pleito eleitoral recente no Brasil, parte das campanhas apresentavam uma escolha entre democracia ou corrupção, como se ambos fossem eventos mutuamente exclusivos, quando na verdade nunca o foram. As mídias sociais eram inundadas de acusações que salientavam a idéia de polarização entre denúncias de corrupção e denuncias de autoritarismo. No entanto, o combate efetivo à corrupção depende diretamente de assegurar transparência e efetividade na participação social sobre os processos públicos. Quanto maior a participação social direta na avaliação da eficiência acerca da prestação dos serviços públicos concedidos, menores serão os incentivos para a implementação de práticas de capturas e relações público-privada permeadas por atos de corrupção. Entre 1990 e 2021 o número de indivíduos que utilizam a internet no Brasil passou de zero para 81% da população. A administração pública federal já deu passos significativos para impulsionar a digitalização da economia, buscando oferecer diversos serviços públicos por meio de plataformas digitais. No entanto, conforme Ruess et al.(2021) as pesquisas sobre participação política on line (PPO) ainda são escassas, e por vezes, limitadas a aspectos relacionados a facilidades de acesso técnico. Dois fatos já foram observados: o primeiro é que os mais jovens tendem a ter maior confiança na prática da participação política on line, e a segunda é que diferentes plataformas atraem diferentes perfis de usuários. Além disso, comportamentos adotados on line, como marcar e encaminhar postagens sobre políticas públicas por exemplo, por vezes não apresentam um equivalente direto off line. A discussão sobre a definição do que são atos políticos por via digital ainda é muito ampla, mas os conceitos embrionários parecem estar relacionadas à capacidade de engendrar uma mudança social efetiva. Embora o debate acadêmico sobre a conceituação de OPP tenha sido intenso – particularmente sobre a distinção entre comportamentos políticos passivos e ativos – pouco se sabe sobre seu impacto nas abordagens empíricas do fenômeno. O que já se vislumbra em alguns estudos é que plataformas de mídias sociais estão intrinsecamente ligadas com as manifestações de participação on line. Os resultados das eleições de 2010 e 2014 nos EUA coincidiram fortemente com as estratégias de mídia social das campanhas.

Assim parece estar claro o grande poder de alcance e influencia que a PPO pode produzir na promoção de um ambiente mais ético, tanto na esfera da regulação quanto das contratações e políticas públicas em geral. Alguns economistas acreditam que uma retomada do crescimento econômico associado a investimentos diretos públicos, bem como, o abandono das políticas neoliberais implementadas a partir da década de 1990 seriam o primeiro passo para retomada de um ambiente social mais estável. No entanto, esse caminho parece conduzir ao acirramento do processo de polarização instaurado nos últimos anos, e por si só não resolveria o problema da captura ou da corrupção. Assim, parece uma atitude sábia buscar uma solução via caminho do meio, dando continuidade aos projetos inclusivos e redistributivos, ao mesmo tempo em que a atuação de regulação e fiscalização do Estado nos casos de concessão ao setor privado deve ser aprimorada. A ampliação da participação on line sobre os destinos dos recursos públicos pode conduzir a uma transformação institucional, capaz de levar a relação entre a liderança empresarial e as lutas sociais a um novo patamar. Mesmo em economias fortemente centralizadas como a China, foi preciso encontrar um caminho do meio entre a atividade estatal e as atividades e aspirações individuais privadas no livre mercado, em que pese não tratar-se de um regime democrático. O fato é que não se pode impedir a inovação, ela faz parte do lema jurássico ‘a vida sempre encontra um meio’, então o que nos resta é avançar na atividade de regulação a fim de melhor distribuir os ganhos entre os diversos agentes sociais.


Referências:

AKTOUF, Omar. Pós-globalização, administração e racionalidade econômica. A Síndrome do Avestruz. São Paulo: Atlas, 2004.

CAGÉ, Julia. The price of democracy. How money shapes politics and what to do about it. Cambridge,Massachusetts, London, England: Harvard University Press: 2020.

CGU-Controladoria Geral da União, Revista da CGU, Brasilia/DF, out, 2007. Disponível em https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/34468/10/V2.n2_Democracia.pdf

GIANNETTI, Eduardo. Autoengano. Companhia de Bolso:2005.

HOBSBAWM, Eric. A Revolução Francesa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002.

PIKETTY, Thomas. Às urnas cidadãos. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

RUESS, Christina et al. Participação política online: a evolução de um conceito

Disponível em https://www.researchgate.net/profile/Christian-Hoffmann-14/publication/357176371_Online_political_participation_the_evolution_of_a_concept/links/61dc12b93a192d2c8aee01e7/Online-political-participation-the-evolution-of-a-concept.pdf

SCHUMPETER Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

STIGLER, George J. The theory of Economic Regulation. Bell Journal of Economics and Management Science, 1971.

WORLD BANK. Individuals using the Internet (% of population). Disponível em https://data.worldbank.org/indicator/IT.NET.USER.ZS?locations=BR

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