Jorge Arbache & Luiz A. Esteves

A ideia central por trás da noção de Powershoring é que a mudança climática e fatores geopolíticos têm aberto uma janela de oportunidade para que países com vantagens comparativas na produção de energia limpa e renovável possam atrair plantas manufatureiras intensivas no consumo de energia em seus processos produtivos. Portanto, Powershoring refere-se a uma estratégia empresarial de localização de produção, a exemplo de outras estratégias locacionais, tais como Offshoring, Reshoring ou Nearshoring. Mas a proposta de valor do Powershoring é múltipla e vai além da energia verde, segura, barata e abundante, que são os fatores de interesse empresarial mais imediatos dessa estratégia.

No que diz respeito à mudança climática, eventos extremos, tais como ondas de calor, enchentes e inundações têm contribuído para o fechamento de fábricas e o colapso de rotas estratégicas da logística global. Os efeitos econômicos adversos da proliferação de eventos climáticos, combinados com o choque da pandemia do COVID-19, têm revelado uma evidência importante acerca das estratégias de localização de muitas corporações: os riscos associados à concentração geográfica da produção foram amplamente subestimados. A estratégia do Offshoring implicou em elevadíssimos níveis de concentração geográfica da produção, ao mesmo tempo que também concentrou os riscos logísticos e de intermitências produtivas – que sob choques adversos – produziu episódios de desabastecimentos generalizados de máquinas, equipamentos, partes, peças, produtos e insumos.

Fatores geopolíticos têm contribuído para tornar a transição energética ainda mais desafiadora. Dentre esses fatores geopolíticos destacam-se a competição entre Estados Unidos da América (EUA) e China e a crise energética na Europa, em decorrência do conflito bélico envolvendo russos e ucranianos. Algumas dimensões relevantes desta competição entre EUA e China incluem dados e cyber-segurança, energia e recursos naturais e mudanças climáticas. Algumas destas dimensões são centrais para o futuro da transição energética e da indústria verde do globo e são especialmente importantes para a discussão em torno do Powershoring. Já os países europeus têm protagonizado as principais iniciativas de compliance ambiental. Suas metas de descarbonização são ambiciosas e objetivam tornarem-se o primeiro continente com neutralidade de carbono até 2050. Contudo, um conjunto de circunstâncias tem dificultado as pretensões europeias de liderar a transição energética, incluindo fatores de ordem geopolítica.

Um ponto importante a ser destacado diz respeito aos fatores que determinam as vantagens comparativas na produção de energias limpas e renováveis. As principais energias limpas e renováveis atualmente disponíveis a custos competitivos são intermitentes e não estão disponíveis de forma abundante e simultânea em qualquer lugar do planeta. Na realidade, poucas localizações do globo são capazes de produzir todas as energias limpas e renováveis atualmente disponíveis a custos competitivos de forma simultânea e complementar, quesito este fundamental para mitigação do problema da intermitência. Um grupo de países da América Latina e Caribe (ALC) dispõe de condições que atendem a este requisito da simultaneidade e complementaridade da produção de energias verdes e limpas a custos competitivos. Portanto, apresenta-se como ambiente propício para a atração de investimentos baseados na estratégia de Powershoring.

Faz-se necessário destacar que, neste momento, as energias limpas e renováveis já se apresentam como alternativas altamente competitivas às energias fósseis tradicionais, uma vez que os custos operacionais de produção de energias limpas e renováveis desabaram na última década. Por exemplo, o custo nivelado (Levelized Cost of Energy, LCOE) da energia solar fotovoltaica foi reduzido em 88% no período 2010-2021 (US$ 0.417/kWh em 2010 e US$ 0.048/kWh em 2021). Já o LCOE da energia eólica Onshore foi reduzido em 68% (US$ 0.102/kWh em 2010 e US$ 0.033/kWh em 2021). Finalmente, o LCOE da energia eólica Offshore foi reduzido em 60% (US$ 0.188/kWh em 2010 e US$ 0.075/kWh em 2021).

No que diz respeito aos direcionadores de valor econômico do Powershoring, podemos destacar três vetores: (i) a combinação de resiliência com eficiência econômica; (ii) a combinação de compliance ambiental com desenvolvimento econômico; e (iii) a criação de alternativa para a transição e segurança energética de empresas, bem como de diferentes setores e cadeias globais de valor, reduzindo a pressão de demanda nos sistemas elétricos dos países originários dos investimentos externos.

A combinação de resiliência com eficiência está se tornando o principal direcionador da localização industrial em nível global e é esperado que tal combinação siga ganhando importância nos próximos anos. A resiliência, elemento novo nessa agenda, está ganhando centralidade na geografia internacional dos investimentos, em especial na estratégia corporativa de empresas com presença global, que buscam segurança produtiva e de mercado, para além da eficiência econômica. As vantagens comparativas refletidas nos custos de produção das energias limpas (com destaque para a eólica e solar fotovoltaica) e do hidrogênio verde (H2V) deverão ganhar influência neste tipo de tomada de decisão, em especial naqueles setores intensivos no consumo de energia em processos produtivos em que a demanda pela descarbonização se faz premente. Ao que tudo indica, a desconcentração e a diversificação da geografia das plantas se tornarão temas críticos da agenda de investimento da primeira metade do século XXI.

Outra característica distintiva do Powershoring é que ela combina compliance ambiental com desenvolvimento econômico. Ao fazer das energias limpas a engrenagem da estratégia, o Powershoring fomenta investimentos na agenda do clima e acelera a transição energética e a descarbonização da produção em nível regional e global. De outro lado, a atração de plantas manufatureiras voltadas para exportação promove o crescimento do PIB da ALC, o aumento do investimento, da tecnologia e da inovação, o aumento do emprego, a inserção da região em cadeias globais de valor, promove as pequenas e médias empresas, a arrecadação de impostos, o desenvolvimento local e regional e, finalmente, ganhos generalizados de produtividade.

O terceiro vetor diz respeito ao fato de as vantagens comparativas da ALC em produzir energias limpas e renováveis – num cenário geopolítico desafiador de transição energética e mudanças climáticas – proporcionarem a criação de uma nova classe de ativos e novas oportunidades para investimentos externos. Por exemplo, para os países de origem das empresas beneficiadas, o Powershoring ajuda a reduzir a pressão de demanda nos sistemas elétricos, o que melhora as condições e o planejamento da transição energética, servindo como motor da competitividade empresarial, criando alternativas de compliance ambiental para empresas sob pressão e viabilizando a importação de bens com preços relativamente menores e com baixa pegada de carbono. Em outras palavras, o Powershoring contribui para os compromissos ambientais e protege os interesses das empresas.

O Powershoring pode ser classificado como uma política industrial, já que promove a manufatura e a transformação da estrutura produtiva. Porém, diferentemente de outras políticas industriais previamente implementadas na região, trata-se de política que tem como pontos centrais a energia limpa, o investimento direto estrangeiro, a exportação, a tecnologia e a inovação e o seu avanço não dependente de incentivos fiscais, subsídios, protecionismo ou discriminação. Ao contrário, o fulcro da estratégia está nas vantagens comparativas e nos recursos naturais. Trata-se, portanto, de proposta inovadora de política industrial, em que mudanças climáticas e o fortalecimento dos mercados são seus pontos de partida.

Por outro lado, o sucesso do Powershoring como política de promoção e transformação da estrutura produtiva da ALC enfrenta alguns riscos e ameaças, que podem ser divididos em dois grupos: externos e internos. Os riscos e ameaças de natureza externa estão majoritariamente relacionados aos efeitos e impactos decorrentes da estratégia de Reshoring ancorada em subsídios generosos para a produção doméstica de energias limpas e renováveis em países desenvolvidos. Já os riscos e ameaças de natureza interna estão relacionados à maneira como algumas lideranças políticas e empresariais da ALC vislumbram explorar as oportunidades advindas das vantagens comparativas da região na produção de energias limpas e renováveis.

No âmbito das ameaças e riscos externos, destaca-se o esforço de economias desenvolvidas para tornarem o Reshoring uma estratégia locacional hegemônica, com a concentração da produção industrial nos EUA e na Europa. Um grande passo neste sentido foi a aprovação do Inflation Reduction Act de 2022 (IRA) nos EUA. Trata-se de um pacote de estímulos no montante de US$ 433 bilhões, sendo US$ 369 bilhões destinados a programas de segurança energética e mudanças climáticas. O IRA fornece subsídios na forma de créditos fiscais e condiciona esses créditos à produção baseada nos EUA e ao fornecimento de insumos da América do Norte e tem sido interpretado por analistas especializados, políticos e acadêmicos como uma potencial violação das regras de comércio internacional. Parece haver um consenso fora dos EUA de que o IRA tem potencial de erodir o sistema multilateral de cooperação, inclusive servindo como gatilho para uma “corrida transatlântica” de subsídios entre EUA e Europa.

Contudo, os desafios da transição energética e as metas globais de descarbonização tornam a hegemonia do Reshoring no EUA e na Europa uma tarefa não trivial por ao menos duas razões. A primeira delas é o próprio risco da concentração geográfica da produção industrial, fator que motivou uma reavaliação da pertinência de estratégias locacionais do tipo “winner takes all”.  A segunda diz respeito à ausência de vantagens comparativas relevantes na produção conjunta e complementar de diferentes energias limpas e renováveis por parte daquelas economias. Não restam dúvidas de que EUA e Europa dispõem de um conjunto único e extremamente valioso e sofisticado de ativos estratégicos tangíveis (infraestrutura física, recursos naturais e localização geográfica) e intangíveis (instituições e mercados sofisticados e capital humano e intelectual). Contudo, a produção de energias limpas e renováveis não é um deles, ao menos no curto e médio prazo.

Adicionalmente, não há consenso na literatura especializada de que barreiras tarifárias e não-tarifárias, subsídios e incentivos fiscais possam compensar em bases permanentes desvantagens comparativas no longo prazo. Portanto, os riscos associados aos efeitos do IRA e similares não devem ser desprezados pela ALC, da mesma maneira que seus benefícios e incentivos não deveriam ser superdimensionados por parte dos contribuintes, empresas e investidores privados.  

No âmbito das ameaças e riscos internos destaca-se, como já pontuado, a maneira como algumas lideranças políticas e empresariais da ALC vislumbram explorar tais oportunidades advindas das vantagens comparativas da região na produção de energias limpas e renováveis. Há um forte movimento para a constituição de uma espécie de “modelo primário-exportador” de energia verde, com destaque para a exportação do H2V transportado na forma de amônia. A estratégia da constituição de hubs de exportação de H2V ou amônia verde no Hemisfério Sul, com destaque para a ALC e continente africano, está mais alinhada à agenda europeia de transição energética, tais como o EU Green Deal e o EU Hydrogen Strategy do que com as estratégias dos países exportadores para as suas transições energéticas e de criação de valor.  

Parcerias envolvendo Europa e ALC para o desenvolvimento da produção e comercialização de H2V e amônia verde podem ser mutuamente vantajosos e benéficos. Da mesma forma que a constituição de hubs para exportação de H2V ou amônia verde na região da ALC não representa um problema, desde que outras oportunidades igualmente importantes para a geração de riqueza e valor econômico não sejam negligenciadas em função de uma estratégia de desenvolvimento monotemática e primário-exportadora.

Outro ponto a ser destacado a respeito do Powershoring diz respeito à sua proposta de valor empresarial.  As vantagens comparativas da ALC em produzir energias limpas e renováveis, com segurança energética a custos competitivos, num cenário desafiador de transição energética e mudanças climáticas, têm propiciado a criação de uma nova classe de ativos e de oportunidades para investimentos privados.

O fato é que as metas de descarbonização impostas às economias ao redor do globo implicam na emergência da transição energética. A emergência acomete a todos, mas os níveis de urgência variam consideravelmente de país-para-país e de setor-para-setor, a depender de vários fatores, incluindo as próprias estruturas das matrizes energéticas e dos perfis de capacidade instalada e geração de eletricidade, além das diferentes exposições a riscos de eventos climáticos e riscos geopolíticos. A partir desta perspectiva, parece claro que a estratégia do Powershoring constitui uma oportunidade única para aqueles projetos de investimento nos quais os custos incorridos na protelação da transição energética são crescentes e desproporcionalmente altos.

Além de produzir valor econômico aos investidores privados por meio de diversificação de riscos e maior resiliência, a estratégia do Powershoring está alinhada e em e conformidade com as agendas da governança ambiental, social e corporativa (ESG) e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Isto significa que o Powershoring é uma estratégia altamente aderente aos objetivos de empresas que perseguem o conceito de triple bottom line, ou tripé da sustentabilidade, um conceito de negócios que postula que as empresas devem se comprometer a medir seu impacto social e ambiental – além de seu desempenho financeiro – em vez de se concentrar apenas na geração de lucro ou no “resultado” padrão.

Os críticos do modelo do triple bottom line muitas vezes apontam a sustentabilidade como uma questão periférica, como uma moda passageira, como greenwashing ou como uma questão de negócios sem importância. Contudo, o fato é que tais tipos de críticas já superam o período de uma década e não há qualquer evidência de que estejamos tratando com uma moda passageira. Muito pelo contrário. Governos, consumidores, reguladores, investidores, acionistas, instituições bancárias, seguradoras, resseguradoras e agências de rating têm pressionado cada vez mais as empresas a perseguirem estes objetivos do triple bottom line.

A estratégia de Powershoring se alinha às novas propostas de geração de valor econômico para as organizações, tais como os modelos de Criação de Valor Compartilhado e o Modelo de Economia Circular. O ponto central é que os modelos de negócios que constituem a estratégia do Powershoring (produção, distribuição e comercialização de energias limpas e renováveis) foram originalmente concebidos à luz deste novo paradigma de “capitalismo de stakeholders” – em oposição ao paradigma anterior de “capitalismo de shareholders”, inclusive num período da história em que se acreditava que tais modelos de negócio não seriam economicamente viáveis, sustentáveis, replicáveis e escaláveis.

A adoção do Powershoring na ALC deveria considerar a “Estratégia de Três Vias.”

A primeira via consistiria em fomentar os fatores habilitadores para o aumento da produção da energia verde, segura, barata e abundante. A segunda via consistiria em promover a expansão da produção do H2V a níveis que garantissem ganhos de escala, ganhos de escopo e queda do preço, para enfrentar os subsídios dos EUA e Europa, além de ganhos de aprendizagem, conhecimento do modelo de negócios, formação de parcerias nacionais e internacionais e produção local de equipamentos, de tal forma a converter a região num grande hub global de H2V, aproveitando-se das vantagens comparativas de energia verde, terrenos industriais, água e posição geográfica favorável. A terceira via consistiria no uso prioritário desse gás para a promoção do Powershoring, exportando os excedentes.

Tais estratégias são complementares, embora não sejam temporalmente sincronizadas. Isto porque ainda estamos distantes de alcançar tecnologias seguras e economicamente viáveis de transporte marítimo do H2V na forma de amônia, bem como de tecnologias igualmente seguras e econômicas de reconversão da amônia verde em H2V para uso industrial nos portos dos países importadores.

O Powershoring é uma oportunidade única para converter a vantagem comparativa da região em energia verde, o distanciamento da agenda geopolítica internacional e a capacidade de atender a combinação de resiliência com eficiência em instrumentos potentes de promoção do desenvolvimento econômico e social. O Powershoring terá efeitos importantes na produtividade, na competitividade, na tecnologia, na inovação e contribuirá para a formação e consolidação de cadeias regionais de valor. Certamente, o Powershoring será muito útil e benéfico para a região, mas será ainda mais útil para as empresas que entenderem as virtudes dessa estratégia.


JORGE ARBACHE. Vice-presidente de setor privado da CAFJorge Arbache

LUIZ A. ESTEVES. Economista-chefe do Banco do Nordeste do Brasil

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