Juliana Oliveira Domingues[*]
A fumaça natural é muito diferente da “cortina de fumaça”. A expressão cortina de fumaça costuma ser utilizada como uma alusão às estratégias militares e de mágicos (ilusionistas). Essas “cortinas” são produzidas, artificialmente, para “confundir”. Trata-se de tradicional manobra direcionada à desorientar. Agora, muito se engana quem imagina que essa tática só é utilizada por mágicos e ilusionistas.
No mês passado, por exemplo, houve evento muito interessante onde levantou-se uma cortina de fumaça sobre o PIX. A fala polêmica, por assim dizer, deu-se no evento da ABIPAG, com o apoio do IBRAC (Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional) e de diversas associações sobre “Concorrência no Mercado Financeiro: Desafios da Nova Economia Digital”. Organizado em cinco painéis temáticos compostos por painelistas e moderadores do mercado, autoridades públicas e membros da academia, o evento debateu os impactos das inovações tecnológicas no mercado financeiro e seus reflexos na defesa da concorrência.
Nesse sentido, foram focos dos debates open finance, open banking, novidades que envolvem os meios eletrônicos de pagamento e evoluções decorrentes de plataformas digitais, entre outros exemplos. Regra geral, aqueles que são naturalmente pró-concorrência partem da premissa que “competition drives innovation”, ou seja, concorrência e inovação caminham juntas.
Foi interessante observar, ao longo do evento, as posições quase uníssonas confirmando aspectos positivos ao bem-estar social, diante das recentes inovações tecnológicas. Inegavelmente, mercados secularmente fechados tornaram-se mais competitivos. No caso do PIX não foi diferente, especialmente quando falamos sobre os métodos de pagamento. Dados do Bacen indicam que 80% das transações com PIX substituíram as transações em dinheiro. O pagamento em “cash” (dinheiro) possui custo de logística para o Bacen, para as instituições financeiras, para as próprias empresas (tal como Ronald H. Coase e Oliver Williamson explicam) e tais custos acabam sendo repassados para a sociedade.
Com base em dados do Bacen e diversos estudos recentes, o PIX tem se destacado como exemplo exitoso para a transformação do mercado de pagamentos, trazendo inúmeros benefícios em razão da diminuição de custos, democratização de acesso e desburocratização. Desse modo, surpreendeu a fala de professor de direito e economia da FGV/SP ao afirmar que: i) o PIX não respeitou (ou não foi precedido) da AIR e que ii) haveria maior judicialização a partir de seu uso massificado.
Neste breve artigo, dedico-me a assoprar a fumaça levantada em cima do tema de AIR.
Afinal: AIR seria aplicável, ou não, para o PIX?
Pois bem, retomo esse tema, após dois anos da publicação com Miele e Silva do texto “Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas”[1]. A força normativa à AIR está na LLE (lei da Liberdade Econômica – Lei nº 13.848/2019) vinculando a sua aplicação. A LLE foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente, entrando em vigor no dia 20 de setembro de 2019.
Contudo, tal como reiterada em diversas Notas Técnicas da Senacon[2] e em produções acadêmicas anteriores, a produção dos efeitos quanto à AIR ocorreu apenas em 15 de abril de 2021 para o Ministério da Economia, para as agências reguladoras (Lei nº 13.848/2019) e para o Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia) e, a partir de 14 de outubro de 2021, para os demais órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional (art. 24)[3].
E o que motivou o legislador a prever esse regime de transição?
Obviamente, quando há nova orientação passa a ser necessária adequação e capacitação das estruturas que farão a análise. Vimos a mesma situação na entrada em vigor da lei 12.529/2011, há 10 anos, quando a estrutura do CADE passou a ser adequada à análise prévia de atos de concentração empresarial, por exemplo.
No que diz respeito ao AIR, quem trabalhou com políticas públicas na transição da norma (i.e. no Ministério da Economia, nas agências reguladoras, Inmetro e nos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional), e/ ou segue acompanhando essa transição, testemunha muitos desafios durante a execução de referida análise.
Cabe dizer, ainda, que há dispensa da aplicação da AIR quando há ato normativo de “baixo impacto” ou seja, aquele que: “b i. não enseja aumento excessivo tanto de custos para os usuários de determinados serviços e para os agentes econômicos quanto de despesa orçamentário ou financeira para o Estado; e ii. não impacta de forma substancial nas políticas públicas de saúde, de segurança, ambientais, econômicas ou sociais”[4].
Em resumo, explicado o contexto acima, temos premissas que sopram a fumaça para longe: AIR não era necessária para o open banking visto que a previsão da LLE é superveniente a esse processo. E, ainda que por hipótese fosse exigida, há muito espaço para se discutir se não seria o caso de dispensa. Para além disso, vale lembrar que a concorrência entre as fintechs e as grandes instituições financeiras e de meios pagamento não deve ser considerada como “despesa financeira”.
Afinal, para quem o PIX causou “aumento excessivos de custos?” Bem, para os consumidores e cidadãos não houve custo, muito pelo contrário! O PIX notadamente promoveu maior inclusão social. Schumpeter estaria comemorando essa grande revolução dos meios de pagamento. Hoje, é possível observar vendedores ambulantes aceitando o PIX como forma de pagamento, em todos os cantos do Brasil. É um fenômeno raro, mas de fato o PIX foi bem recebido em todas as classes sociais e em pouco tempo se tornou importante ferramenta.
De todo modo, tirando as imprecisões interpretativas[5] naturais de toda norma jurídica, há ao menos 03 premissas que assopram para muito longe a fumaça artificial levantada pelo colega professor em torno do PIX:
- O PIX foi previsto e entrou em vigor após o início da primeira etapa do open banking e sem obrigatoriedade, por lei, de AIR, mas foi construído com participação do setor privado por meio do Fórum PIX (com instituições financeiras e de pagamentos, além de empresas de tecnologia e muitos representantes do varejo).
- O PIX não enseja aumento excessivo de custos (i. e. perda eventual de lucro dos tradicionais métodos de pagamento não é despesa) e não impacta negativamente as políticas públicas. Aliás, o PIX é um mecanismo disruptivo e eficiente para maximizar a competitividade do setor financeiro, de forma a funcionalizar o alcance do bem-estar social (consumer welfare) previsto na análise econômica e nas políticas públicas regulatórias e de defesa da concorrência;
- O PIX permanece sob permanente monitoramento do Bacen, com base em suas competências. Isto significa que o regulador/ agente público poderá criar mecanismos de correções de eventuais percursos não esperados. Isso faz parte de toda inovação e não deve “matá-la”.
A Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) – interessante mecanismo de análise dos efeitos – segue prevista. O ARR permite o controle de efeitos dos atos já editados, confere o atingimento dos seus objetivos e avalia os outros impactos para mercado e para a sociedade (art. 2º, inc. III). Entretanto, as agências mais maduras neste tema (entre as quais ANVISA, ANEEL, ANCINE, ANATEL, ANAC) ainda encontram desafios para adequar a abrangência e a implementação tanto da AIR quanto da ARR.
Em resumo, o PIX é uma realidade que nos obriga a compreender os efeitos da liberdade econômica e da economia criativa digital. Isso tira muitos de suas zonas de conforto e será uma prova àqueles que sempre defenderam a bandeira liberal: não dá para defender a liberdade, a eliminação dos custos de transação e o empreendedorismo e, ao mesmo tempo, fomentar ruídos para garantir reservas de mercado.
É verdade que “[p]or muitas décadas, conformamo-nos a viver em um país avesso à liberdade econômica, ao empreendedorismo, […]”[6], como afirma a Professora Luciana Yeung (Insper) no capítulo “uma chama de esperança”, em livro organizado pela professora Ana Frazão com os Ministros Ricardo Villas Boas Cueva e Luis Felipe Salomão com comentários à LLE. Sim, após anos de entraves, muitos se conformaram com o ambiente pouco favorável à entrada de novos negócios, às novas tecnologias e com a ausência de concorrência. Não é de hoje que falhas de mercado são combatidas pelos reguladores. Assim, passa a ser mais importante a valorização das alternativas criadas no sistema financeiro (precisamente com o open banking) que o Bacen buscou corrigir.
Portanto, impossível compararmos os efeitos ocasionados em Pompeia após a erupção do Vesúvio com os efeitos do gelo seco em um palco de show de mágica. A fumaça artificial do ilusionista se dissipa facilmente, mas aquela decorrente de mudanças profundas – decorrentes de um “vulcão”, fazendo alusão à frase de Victor Hugo do início do artigo – tendem a seguir por muito tempo. Firmam-se os efeitos da revolução (neste caso, a digital) e da economia 4.0, com marcas perenes e permanentes das chamas de um grande vulcão da disrupção.
[1] DOMINGUES, Juliana O; MIELE, Aluísio de F.; SILVA, Pedro Aurélio de P. Q. da. Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas. 27/11/2020. Disponível em: < Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas – JOTA Acesso em: 22 de set. de 2022.
[2] Veja-se, Nota Técnica n.º 48/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, elaborada pela Senacon em 2020, com o objetivo de esclarecer os objetivos do Open Banking. A nota técnica traz conclusões positivas e recomendações sobre o assunto. Mais sobre o tema, veja-se: DOMINGUES, Juliana O. PARAVELA, Tatyana C. Open banking: o futuro do sistema financeiro aberto no Brasil na perspectiva do Consumidor. v. 15 n. 2 (2021): Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central. Disponível em: < https://revistapgbc.bcb.gov.br/revista/article/view/1133 > Acesso em 22 de set. de 2022.
[3] CF. DOMINGUES, Juliana O; MIELE, Aluísio de F.; SILVA, Pedro Aurélio de P. Q. da. Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas. 27/11/2020. Disponível em: < Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas – JOTA Acesso em: 22 de set. de 2022.
[4] Id.Ibid.
[5] A lei traz conceitos abertos como “aumento expressivo” e “forma substancial” (art. 2º., II, a, b e c).
[6] YEUNG, Luciana L. Friedrich Hayek, Liberdade Econômica, a MP e a Lei da Liberdade Econômica: Por Que É Necessária? In: Luis Felipe Salomão; Ricardo Villas Bôas Cueva; Ana Frazão. (Org.). Lei da Liberdade Econômica e seus Impactos no Direito Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2020, v. 1, p. 88.
[*] Juliana Oliveira Domingues. Professora Doutora de Direito Econômico da USP e Ex-Secretária Nacional do Consumidor. As informações dispostas neste conteúdo refletem exclusivamente a opinião acadêmica da Professora Juliana Oliveira Domingues.
[1] Com especial agradecimento ao debates realizados com exímios profissionais que contribuíram para o amadurecimento do texto: Mariana Zilio (advogada e ex-assessora/ chefe de Gabinete da Senacon), Andrey Freitas (Ex-Coordenador Geral na Senacon e subsecretário da SEAE/ME, também colunista do Webadvocay), Conselheiro Gustavo A. Freitas de Lima (que acompanhou o tema na Casa Civil e esteve no debate sobre o PIX como representante do CADE), Aluísio de Freitas Miele (professor, pesquisador e coautor de artigos que envolvem o tema) e Ângelo Duarte (chefe de departamento de Competição e de Estrutura do Mercado Financeiro do Bacen).