Polyanna Vilanova[1] & Catharina Araújo Sá[2]

A dosimetria da pena sempre foi um dos temas que gerou discussões ricas no Tribunal Administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Temas como estimação ou cálculo da vantagem auferida, metodologias adequadas para definir a multa, aplicação das atenuantes ou agravantes do art. 45 da Lei nº 12.529/2011, dentre outros, são temas recorrentes discutidos no Plenário. Recentemente, o Tribunal Administrativo, em caso envolvendo cartel em licitação da Infraero[1], tratou sobre metodologia para cálculo da multa a ser aplicada para pessoas físicas considerando a capacidade econômica do infrator e é especificamente sobre este tema que o presente artigo abordará.

Antes mesmo deste caso em específico, é importante relembrar discussões anteriores que envolveram a consideração da capacidade econômica do infrator pessoa física a ser computada na dosimetria da pena em casos de condutas anticompetitivas. No julgamento referente ao “Cartel de Distribuidoras e Revendedoras de Combustíveis em Joinville/SC”[2], o Conselheiro Sérgio Ravagnani requisitou informações sobre renda e patrimônio de pessoas físicas Representadas à Receita Federal[3], com o objetivo de observar a situação econômica do infrator (inc. VII, art. 45 da Lei nº 12. 529/2011) no estabelecimento da pena, em respeito ao caráter dissuasório e à proporcionalidade da multa, considerando o momento da condenação, não o momento dos fatos ocorridos.

À época, o Tribunal Administrativo homologou, por maioria, a requisição de informações apresentada pelo Conselheiro Sérgio Ravagnani na 170ª Sessão Ordinária de Julgamento. Na ocasião, o ex-presidente do Cade, Alexandre Barreto, questionou se esse seria um procedimento adotado em todos os processos do Cade, mesmo aqueles com elevado número de pessoas físicas representadas no polo passivo, ao que o Conselheiro Sérgio Ravagnani respondeu afirmativamente, sustentando que seria fundamental verificar a capacidade de pagamento da pessoa física para fazer a calibração da alíquota, de modo a conservar o caráter dissuasório da multa.

Posteriormente, no “Cartel de Filtros Automotivos”[4], da mesma forma, o Conselheiro Sérgio Ravagnani também requisitou os informes de rendimentos de pessoas físicas representadas à Receita Federal[5], dando seguimento à sua tese de dosimetria da multa a ser aplicada para pessoas físicas representadas.

Recentemente, na 200ª Sessão Ordinária de Julgamento, o Tribunal Administrativo de Defesa Econômica deu continuidade ao julgamento do caso envolvendo cartel em licitação da Infraero e voltou a discutir esta temática, que já vinha sido abordada em sessões anteriores contando com a atual composição do Conselho. No caso, o Tribunal Administrativo condenou as empresas e pessoas físicas por formação de cartel. No que se refere à dosimetria imposta às pessoas físicas, retomou-se a discussão sobre a capacidade econômica do infrator.

Na 196ª Sessão Ordinária de Julgamento, o Conselheiro Gustavo Augusto apresentou voto vista[6] destacando a necessidade da elaboração de uma metodologia para o cálculo da multa de pessoas físicas envolvidas em condutas anticompetitivas, não necessariamente como “uma fórmula matemática”, mas observando a necessidade de dar uma sinalização para os agentes de mercado, no sentido de garantir previsibilidade e segurança jurídica.

Em seu voto, o Conselheiro destacou que o Cade já vem buscando uma sistematização para a aplicação de multas de pessoas físicas em casos de condenação por cartel, por meio da jurisprudência. Nesse sentido, citou os votos do Conselheiro Sérgio Ravagnani nos casos já indicados e do Conselheiro Luiz Hoffmann no Processo Administrativo nº 08700.003390/2016-60, no qual o Conselheiro abordou os padrões de dosimetria considerados em outras jurisdições.

O Conselheiro Gustavo Augusto destacou, contudo, que o Cade ainda não tem uma metodologia específica para o cálculo da multa de pessoas físicas, especialmente considerando os dados obtidos a partir da Receita Federal para aferir a capacidade econômica dos representados a ser considerada na dosimetria da pena.

Tendo em vista este contexto, o Conselheiro Gustavo Augusto propôs uma metodologia de cálculo da multa composta de duas fases. Na “Primeira Fase”, constatou que devem ser observadas as circunstâncias da conduta, as quais devem ser consideradas para a fixação da alíquota aplicável. Tomando como base os padrões de dosimetria que são aplicados pelo Cade, propôs as seguintes faixas de alíquota a serem aplicadas: (i) cartel clássico ou cartel em licitação (12 a 20%) e (ii) cartel difuso, paralelismo plus, demais condutas colusivas e condutas individuais de menor gravidade (1 a 12%).

Após a determinação das faixas, sustentou que a determinação da alíquota exata no caso concreto, ainda na “Primeira Fase”, deve ser definida com base nas circunstâncias agravantes e atenuantes do art. 45 da Lei nº 12.529/2011, à exceção da “situação econômica do infrator” (inciso VII), pois esta deve ser considerada apenas na “Fase Dois”. Ainda na “Fase Um”, o Conselheiro destacou que eventual diferenciação entre a multa aplicada a administradores e não administradores deve ser ponderada de acordo com o caso concreto, pois a atuação de cada um depende do caso, de modo que não é possível afirmar que o administrador necessariamente atuará de forma mais gravosa em eventual conduta anticompetitiva.

Uma vez definida a multa na “Fase Um” (alíquota-base), com base nas circunstâncias da conduta, na “Fase Dois” (situação econômica), o valor da multa deverá ser adequado à situação econômica do infrator. Para tanto, o Conselheiro destacou que devem ser utilizadas preferencialmente as informações do Imposto de Renda da Pessoa Física com base em dados financeiros mais recentes, que deverão ser requisitadas à Receita Federal. Além disso, na visão do Conselheiro, também deve ser considerado o patrimônio do infrator.

Em seguida, estabeleceu que, em regra, a multa a ser aplicada não deve ser superior a 30% da renda bruta anual do infrator, tendo em vista ser este o percentual máximo que tem sido admitido no SuperiorTribunal de Justiça em face do superendividamento, somados a 6% do valor do patrimônio do infrator (valor que se refere aos juros legais da poupança). O Conselheiro ainda fez a ressalva de que se houver fontes de rendimentos ilícitos, considerando prova de lavagem de dinheiro ou participação em organização criminosa, o Tribunal Administrativo poderá deixar de aplicar os limites máximos da “Fase Dois”.

A proposta do Conselheiro Gustavo Augusto foi acatada pela maioria do Plenário e o caso ainda segue em discussão, tendo em vista a oposição de Embargos de Declaração.

O voto do Conselheiro Gustavo Augusto foi interessante para dar previsibilidade aos agentes que atuam em diferentes mercados, uma vez que criou uma metodologia com base na jurisprudência do Cade, tornando a aplicabilidade de eventuais multas às pessoas físicas representadas mais clara, no sentido de mostrar quais os critérios considerados e como estes critérios impactarão nas alíquotas.

Em 2020, o Cade havia submetido uma minuta de “Guia de Dosimetria de Multas de Cartel”[7] à Consulta Pública nº 02/2020, com o objetivo de apresentar uma metodologia geral para a aplicação de multas, tanto para empresas quanto para pessoas físicas representadas, com base na observância da jurisprudência do Conselho e com a sinalização de passos que devem ser seguidos. Apesar de não ter sido publicada uma versão final do Guia, o documento também demonstra um esforço da autoridade concorrencial para a consolidação de uma metodologia para a dosimetria da multa, com base em critérios mais claros que possam ser observados de forma mais objetiva por representados em processos administrativos.

Discussões no sentido de criar uma metodologia para a dosimetria da pena são relevantes para deixar claro quais as variáveis consideradas e como estão sendo aplicadas pelo Cade ao determinar a pena, além de revelarem uma preocupação do Conselho com o caráter dissuasório da multa, de modo a evitar que eventuais infrações concorrenciais voltem a ocorrer.


[1] Processo Administrativo nº 08700.007278/2015-17.

[2] Processo Administrativo nº 08700.009879/2015-64.

[3] CADE. Processo Administrativo 08700.009879/2015-64. Ofício nº 8732/2020/GAB5/CADE. 2020. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yM9ekr5pABrXDr-Tets2h4mia_kmQzI_NNPh3hRBx_Z4hQIyZE6R2fguxNqEJ9P-a6WQG-G_YW1vUFWZMB2su0u. Acesso em 08 set. 2022.

[4] Processo Administrativo nº 08700.003340/2017-63.

[5] CADE. Processo Administrativo 08700.003340/2017-63. Ofício nº 955/2021/GAB5/CADE. 2021. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yO0waFRhaHmauOKJu42n9EEegAScI7KJ-9sJvcbtdi9flfaIQ0Ygnii2CGp2QNyJ9lqAlBNEtuhvvAOBhXWchz6. Acesso em 08 set. 2022.

[6] CADE. Processo Administrativo n° 08700.007278/2015-17. Voto do Conselheiro Gustavo Augusto. 2022. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddYyad9C33RKmYladycJWo-r_O6NbCYIRlLsLUt3N2D0XWXbveNECtAUoxpvM8U2xSH6kTAo8FUwiyHTdCxw5hoy. Acesso em 08 set. 2022.

[7] CADE. Minuta do Guia de Dosimetria de Multas de Cartel. 2020. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2020/Cade%20estende%20prazo%20para%20contribuições%20à%20versão%20preliminar%20do%20Guia%20de%20Dosimetria%20de%20Multas%20de%20Cartel__Minuta_Guia_de_dosimetria.pdf. Acesso em 08 set. 2022.


[1] Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

[2] Catharina Araújo Sá é advogada no escritório Vilanova Advocacia.

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