Polyanna Vilanova[i]
Henrique Muniz[ii]
Os diversos efeitos da tributação na economia e os eventuais impactos de distorções tributárias no ambiente competitivo vêm ganhando espaço nos debates da comunidade antitruste.
Muito embora tais debates ainda necessitem de bastante aprofundamento, é possível identificar a formação de análises doutrinárias que buscam entender em que medida práticas tributárias (p. ex. sonegação fiscal e benefícios e incentivos fiscais) podem afetar a concorrência ao ponto de atrair a competência dos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e, em especial, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Por outro lado, verifica-se que, historicamente, o Cade opta por afastar sua competência quando se depara com casos de ilícitos tributários como meio de infração à ordem econômica, seja sob o fundamento de que quaisquer distúrbios na concorrência seriam sanados após o enfrentamento da questão no foro competente (Poder Judiciário, Receita Federal e demais órgãos), seja sustentando a impossibilidade de penalizar agentes econômicos que fazem uso de benefícios ou isenções fiscais concedidos pelo poder público, que, embora gerem diferenciação de agentes, não seriam práticas evasivas e tratar-se-iam de medidas positivadas no ordenamento jurídico.[1]
Inclusive, logo após tomar posse na presidência da autarquia antitruste, Alexandre Cordeiro, em entrevista ao Jota, quando questionado qual deveria ser o posicionamento do Cade na hipótese de outras infrações, como a sonegação de impostos, terem impacto no direito concorrencial, afirmou seguramente que seria um equívoco atuar, uma vez que o órgão teria que “ficar na seara da concorrência”. Complementou, em seguida, que a solução seria o correto funcionamento do sistema tributário, não sendo possível se transferir para o Conselho a responsabilidade que não é dele.[2]
Assim, diante de um cenário em que, de um lado, o Cade apresenta um histórico, reafirmado por seu atual Presidente, de afastar sua competência para analisar os efeitos de práticas tributárias na concorrência e em que, de outro, a comunidade antitruste está cada vez mais atenta para tal discussão e vem cobrando posicionamentos da autarquia sobre o tema, haveria alguma expectativa de mudança de paradigma pelo Cade em sua atual formação?
Pois bem. A gênese da discussão do tema tributação e concorrência no Brasil está intimamente ligada à questão dos impactos concorrenciais da guerra fiscal, com inspiração no latente debate europeu sobre a harmful tax competition[3]na ordem jurídica europeia.
Ainda em 1998, na União Europeia, onde o estudo das questões relacionadas à tributação e seus efeitos sobre o mercado já parecia ter um elevado amadurecimento, ficou estabelecido o Código de Conduta de Fiscalidade das Empresas, reconhecendo a existência de uma concorrência fiscal prejudicial entre os países-membros capaz de distorcer os padrões de comércio e de investimento e outros defeitos na esfera concorrencial. Nesse sentido, diversos são os casos julgados pela Corte Europeia de Justiça envolvendo a concessão de incentivos fiscais e seus impactos na dinâmica do mercado comum europeu[4]. Além disso, a OCDE, tendo em conta o cenário europeu, desenvolveu o relatório “Guidelines on Harmful Preferential Tax Regimes” com o objetivo de desencorajar a guerra fiscal entre os países europeus e trazer diretrizes para mitigação dos paraísos fiscais.
Paralelamente a essa relevante discussão europeia acerca da concorrência fiscal, o Cade, nos autos da Consulta nº 0038/99, foi instado a se manifestar quanto à “nocividade ou não à livre concorrência da prática conhecida como guerra fiscal, realizada principalmente entre estados e através de mecanismos fiscais e financeiro-fiscais relacionados ao ICMS[5]”. Isto é, questionou-se se uma determinada empresa detentora de benefício fiscal estaria em situação de vantagem em relação às suas concorrentes, na medida em que teria condições de praticar um preço inferior ou obter maior lucratividade. A conclusão do Conselho foi de que a guerra fiscal prejudica a concorrência e ocasiona efeitos danosos ao bem-estar da coletividade.
Inspirada no parecer exarado pelo Cade, a comunidade antitruste brasileira voltou os olhos para o tema da guerra fiscal e dos benefícios e incentivos fiscais como vantagem competitiva, produzindo literatura e acionando a autarquia para analisar tal imbróglio. Ocorre que em diversas oportunidades[6], o Conselho optou por afastar sua competência por entender que tais questões deveriam ser levadas à análise do Judiciário, uma vez que não estariam no rol de condutas abarcadas pela legislação antitruste, não havendo como imputar, ademais, aos entes federados infração à ordem econômica.
Nesse ínterim, contudo, outras práticas tributárias ganharam espaço no debate da relação entre tributação e concorrência. Passou-se a defender que determinadas práticas de evasão fiscal, que consistem em condutas praticadas por particulares em descumprimento a obrigações tributárias, podem estar na origem de distúrbios concorrenciais e, portanto, deveriam ser caracterizadas como infrações à ordem econômica.
Nesse ponto, não há entendimento unitário na jurisprudência do Cade a respeito da competência da autoridade antitruste para tratar de tais casos. Vê-se que, em algumas oportunidades, o órgão optou por negar sua competência ao entender que as distorções no mercado provocadas pela sonegação fiscal eram delimitadas no tempo. Em outros casos, quando avançou a etapa de análise de sua competência e se engajou numa análise concorrencial da questão, comumente o fez sob a ótica de preço predatório, concluindo invariavelmente por sua inexistência devido às diversas dificuldades de configurar tal conduta em concreto.[7]
Ocorre que recentes manifestações de atuais conselheiros conferem razões para se crer em uma possibilidade de análises mais acuradas do Cade sobre os impactos de práticas tributárias na concorrência.
Após o despacho de arquivamento da Superintendência-Geral nos autos do inquérito administrativo nº 08700.002532/2018-33, o Conselheiro Luis Braido apresentou proposta de avocação pelo tribunal administrativo, sustentando a necessidade de instrução complementar para apurar suposta conduta anticompetitiva decorrente do não pagamento de tributos, o que conferiria a possibilidade de praticar, de forma indevida e sem relação com sua maior eficiência, preços inferiores aos dos concorrentes adimplentes com suas obrigações tributárias, de modo a incrementar participação no mercado relevante e a causar prejuízos à livre concorrência. Muito embora tenha concluído pela não avocação, o Conselheiro Sérgio Ravagnani confirmou a competência legal do Cade para analisar práticas tributárias que possam produzir danos à concorrência, uma vez que a prática de sonegação fiscal reiterada, referida como “macrodelinquência tributária reiterada[8]”, poderia ser caracterizada como infração à ordem econômica. No entanto, durante a 1ª Sessão Extraordinária de Julgamento, realizada no dia 20 de janeiro de 2021, o plenário, por maioria, não homologou o despacho de avocação.
Desfecho diferente se deu no caso do Procedimento Preparatório nº 08700.001571/2022-08, em que o tribunal administrativo homologou o despacho de avocação (Despacho Decisório nº 5/2022) proferido pelo Conselheiro Gustavo Augusto Lima para instaurar o inquérito administrativo e proceder com o prosseguimento das investigações com o objetivo de apurar possível prática de discriminação de preços no mercado de comercialização de combustíveis derivados do petróleo produzidos na Refinaria de Mataripe, localizada no Estado da Bahia.
Segundo o Presidente Alexandre Cordeiro, durante a 197ª Sessão Ordinária de Julgamento do Cade, realizada no dia 25 de maio de 2022, considerando que o setor econômico está em evidência e que sua abertura consiste em uma medida estrutural objetivada pela autarquia, a investigação pode originar trabalhos de advocacy no sentido de elaborar normas interessantes para o setor junto à regulação setorial e a importante discussão tributária relacionada ao preço de referência do petróleo e seus critérios de fixação previstos na Resolução ANP nº 874/2022.
Nesse sentido, a Conselheira Lenisa Prado também registrou “me anima muito saber que grande parte deste tribunal está inclinada a investigar questões tributárias que surtem reflexo no âmbito concorrencial”. A conselheira afirmou que a questão de diferenciação de preço a maior de combustível adquirido dentro da Zona Franca de Manaus sugere a possibilidade de utilização de algum tipo de benefício fiscal ou a adoção de regime especial de tributação para favorecer um determinado grupo econômico ou concorrente. Complementou, ainda, que o Cade, por vezes, apreciou questões em que, infelizmente, por motivos alheios, não foi possível aprofundar o tema tributário com o concorrencial, mas que nesse caso seria possível identificar uma “curva ótima entre tributação e concorrência”.
Assim, é possível concluir que a oxigenação do debate da relação entre tributação e concorrência no direito brasileiro indica uma tendência para a mudança de paradigma no histórico de análises do Cade acerca do tema. Todavia, a confirmação da tendência se encontra nas mãos do atual quadro de conselheiros da autarquia e são cenas para os próximos capítulos.
[1] CARVALHO, Vinicius Marque de; MATIUZZO, Marcela. Tributação e concorrência: uma análise da evasão fiscal como ilícito concorrencial. Revista de Defesa da Concorrência, vol. 9, nº 2, dez. 2021, p. 54.
[2] Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/concorrencia/intervencao-estatal-inseguranca-juridica-cade-01092021
[3] PEROTTO, Gabriella. How to cope with harmful tax competition in the eu legal order: going beyond the elusive quest for a definition and the misplaced reliance on state aid law. European journal of legal studies, 2021, Vol. 13, No. 1, pp. 309-340. Retrieved from Cadmus, European University Institute Research Repository. Disponível em: https://cadmus.eui.eu/handle/1814/71283
[4] C-173/73 (Italy v. Comission); C-259/87 (France v. Comission); C-465/20 (Commission vs. Ireland and others). In: CAMPANILE, Vinicius Tadeu. Livre concorrência, tributação e desenvolvimento econômico: utilização de legítimas vantagens tributárias em prejuízo da livre concorrência. Dissertação (mestrado). Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2017, p. 127.
[5] BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Consulta nº 0038/99, p. 1.
[6] Processos Administrativos: 08012.000668/1998-06, 08012.006746/1997-41, 08000.018405/1997-11 e 08700.003984/2010-85, Consulta 08700.002380/2006-35; Averiguação Preliminar 08012.006665/2001-99.
[7] CARVALHO, Vinicius Marque de; MATIUZZO, Marcela. Op. cit., p. 56/57.
[8] Expressão cunhada pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski, no julgamento do RE 550.769, para práticas ilícitas perpetradas por devedores contumazes, que por meio da inadimplência reiterada e sistemática alcançam expressiva vantagem concorrencial.
[i] Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.
[ii] Henrique Muniz é trainee no escritório Vilanova Advocacia.