Fernando de Magalhães Furlan
No início de outubro de 2021 foi publicado parecer favorável[1] da Comissão Especial destinada a analisar o Projeto de Lei nº 2303/2015, que “dispõe sobre a inclusão das moedas virtuais (…) na definição de ‘arranjos de pagamento’, sob a supervisão do Banco Central do Brasil”.
A Comissão Especial, que discute a regulação de criptoativos no país, já havia aprovado, em 28/09/2021, o substitutivo apresentado pelo relator da matéria. O texto aprovado apresenta conceitos gerais e deixa aos reguladores (Banco Central do Brasil[2] e Comissão de Valores Mobiliários – CVM[3]) a normatização infralegal da matéria.
A proposta legislativa agora segue à votação pelo plenário da Câmara dos Deputados e, se aprovado, vai a votação no Senado Federal para posterior sanção do presidente da República.
Em sua análise de constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa do Projeto de Lei nº 2303/2015, o parecer aprovado pela Comissão Especial assim consignou:
“(…) Não se verificam máculas na proposição quanto aos princípios constitucionais e legais que regem a possibilidade de regulação das chamadas moedas virtuais (…). De fato, além da falta de dispositivo contrário na Carta Magna, a norma tem como pressuposto atender o princípio basilar da Ordem Econômica, assentado expressamente no inciso V do artigo 170, ou seja, a defesa do consumidor”.
Outrossim, o artigo 170 da Constituição Federal, em seu inciso IX, também elege o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte como princípio geral da atividade econômica. Além disso, a Carta Magna erige a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica (art. 170, caput) e da própria República (art. 1º, IV).
Em síntese, a proposta legislativa pretende: a) tipificar o crime de “fraude em prestação de serviços de ativos virtuais”; b) inclusão das prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol constante do art. 16 da Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986, caracterizando crime a situação em que a prestadora opere sem que estar devidamente autorizada; c) aumento da pena para os crimes de lavagem de dinheiro, com o uso de ativos virtuais; e d) regras transitórias para as prestadoras de serviços de ativos virtuais em atividade na data da publicação do novo regramento, dispondo que estas terão o prazo de cento e oitenta dias, para ajustarem-se às normas emanadas pelos órgãos reguladores sobre as atividades realizadas.
O art. 2º da proposta prevê que as prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão funcionar no país mediante prévio registro, podendo ser exigida autorização de órgão ou entidade da Administração Pública Federal a ser indicado em ato do Poder Executivo.
Além disso, o parágrafo único do art. 3º estipula que competirá a órgão ou entidade da Administração Pública Federal, definido em ato do Poder Executivo, estabelecer quais serão os ativos financeiros regulados, para fins desta Lei.
De acordo com o art. 4º, a prestação de serviços de ativos virtuais deve seguir os parâmetros a serem estabelecidos pelo órgão ou pela entidade da Administração Pública Federal, consoante os arts. 2º e 3º, além de observar as seguintes diretrizes: a) livre iniciativa e livre concorrência; b) boas práticas de governança e abordagem baseada em riscos; c) segurança da informação e proteção de dados pessoais; d) proteção e defesa de consumidores e usuários; e) proteção à poupança popular; f) solidez e eficiência das operações; e g) prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais.
Praticamente todos os incisos do artigo 4º da proposta são programáticos e, no mais das vezes, até mesmo redundantes, visto que enfatizam a aplicação de legislação já em vigor a situações, atos e fatos já regulamentados, seja pela perspectiva da defesa do consumidor, da proteção de dados, da proteção à poupança popular, da governança e mesmo do combate ao terrorismo e às armas de destruição em massa.
Aliás, esta última orientação soa um tanto hiperbólica, já que não é o meio que determina o ilícito, mas a sua própria essência. Ou seja, não é porque alguns utilizam ativos digitais para a prática de crimes que esses ativos se tornam ilegais por si sós. Assim fosse, o papel-moeda circulante também deveria ser considerado ilícito em seu cerne, visto que é amplamente utilizado para a prática de atos ilegais.
Ainda, consoante o art. 7°, compete ao regulador indicado em ato do Poder Executivo Federal: a) autorizar o funcionamento, a transferência de controle, fusão, cisão e incorporação da prestadora de serviços de ativos virtuais, na hipótese de autorização mencionada no caput do art. 21; b) estabelecer condições para o exercício de cargos em órgãos estatutários e contratuais em prestadora de serviços de ativos virtuais e autorizar a posse e o exercício de pessoas para cargos de administração na hipótese de autorização mencionada no caput do art. 21; c) supervisionar a prestadora de serviços de ativos virtuais e aplicar as disposições da Lei n° 13.506, de 13 de novembro de 2017, em caso de descumprimento desta Lei ou de sua regulamentação; d) cancelar, de ofício ou a pedido, as autorizações de que tratam os incisos 1 e II, quando exigidas; e) dispor sobre as hipóteses em que as atividades ou operações de que trata o art. 5º serão incluídas no mercado de câmbio ou em que deverão se submeter à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no País.
Em tempos de propalada liberalização da economia, com a edição da chamada Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019[4]) e outras[5], dentro do mesmo contexto, parece atitude farisaica aquela de restringir, condicionar, limitar e, até mesmo, cancelar o funcionamento de empresas de um setor altamente inovador, em sua maioria, de pequeno ou médio portes.
É certo que alguma regulação do setor de criptoativos era esperada, mas se supunha que seria direcionada a criar um ambiente legal e regulatório propício ao desenvolvimento dessas inovações no mercado financeiro, não partir do pressuposto de que as empresas do setor já nascem suspeitas, simplesmente porque manejam ativos financeiros não lastreados pelo Estado.
Infelizmente, o viés político-eleitoral, acima do legislativo, parece haver contaminado, tanto a iniciativa, quanto a discussão e eventual aprovação da proposta. Há redundância com atos normativos já existentes, inclusões desnecessárias na legislação, criação de situações específicas que já se encontravam incluídas nas hipóteses genéricas da legislação em vigor, enfim, uma série de aspectos que revelam interesses secundários, ainda que legítimos do ponto de vista parlamentar.
O art. 10 estipula a inclusão do artigo 171-A ao Decreto-Lei n° 2.848/1940 (Código Penal), nos seguintes termos:
“Fraude em prestação de serviços de ativos virtuais.
Art. 171-A. Organizar, gerir, ofertar carteiras ou intermediar operações envolvendo ativos virtuais, com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos e multa.”
Quanto ao dispositivo acima, impressiona o fato de haver passado ileso pela análise de juridicidade da Comissão Especial. O que se propõe é a criação de um novo tipo penal, com artigo específico no código, quando o tipo penal já existe e está previsto no caput do artigo 171.
O que o projeto de lei pretende é simplesmente incluir a expressão “organizar, gerir, ofertar carteiras ou intermediar operações envolvendo ativos virtuais” ao texto já em vigência e que lê:
“obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.
Como já dito, não parece correto criminalizar o meio, a tecnologia ou a inovação, mas, ao contrário, é preciso concentrar esforços na persecução àqueles que se utilizam dela para a prática de crimes.
A proposta, ademais, ao pretender criar tipo penal, também se propõe a aumentar a pena de 1 a 5 anos de reclusão e multa (crime de estelionato) para 4 a 8 anos de reclusão e multa (fraude com ativos virtuais), como se o simples fato de serem utilizados “ativos virtuais” no ilícito, teria o condão de ampliar a sua antijuridicidade ou punibilidade.
Já o art. 11 altera a redação do art. 16, da Lei n°7.492/1986 (Lei dos Crimes contra o SFN), que passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 16. Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de câmbio, bem como a prestadora de serviços de ativos virtuais”.
Pois bem, o projeto de lei busca inserir a expressão “bem como a prestadora de serviços de ativos virtuais” na redação do atual art. 16. Novamente, a alteração do dispositivo parece retórica, eis que a própria Lei nº 7.492/86 já dispõe em seu artigo 1º, parágrafo único que:
“Parágrafo único. Equiparam-se à instituição financeira:
I – a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros;
II – a pessoa natural que exerça qualquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual”.
Ora, se a própria lei já equipara à instituição financeira qualquer pessoa jurídica que capte ou administre (…) recursos de terceiros, bem como qualquer pessoa física que exerça qualquer das atividades referidas, ainda que de forma eventual, desnecessária a adição do termo ao artigo 16 da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro. Mesmo porque o próprio caput do art. 1º também inclui a custódia de valores nas atividades típicas das instituições financeiras e equiparadas.
O art. 12 acrescenta o termo “ou por meio da utilização de ativo virtual” ao § 4º do artigo 1º da Lei n° 9.613/1998 (Lei de lavagem de Divisas), que passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
§ 4º A pena será aumentada de um a dois terços se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada, por intermédio de organização criminosa ou por meio da utilização de ativo virtual“.
Dito de outra forma, o que o legislador aqui almeja é equiparar a utilização de “ativo virtual” à organização criminosa, para fins de aumento de pena de um a dois terços. Ou seja, para a Comissão Especial, o uso de “ativos digitais” é, por si só, tão reprimível e condenável quanto a “associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente (…) para a prática de infrações penais(…)”.
Além disso, o art. 12 também acrescenta o inciso XIX ao parágrafo único do artigo 9º da mesma Lei nº 9.613/98 (Lei de Lavagem de Divisas), verbis:
“9º. Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não:
(…)
Parágrafo único. Sujeitam-se às mesmas obrigações:
XIX – as prestadoras de serviços de ativos virtuais.”
Aqui também caberiam os mesmos comentários já feitos sobre o artigo 12 do projeto de lei. Contudo, como nisto o espírito do legislador parece ter sido, ao longo do tempo, o de identificar novas modalidades e incluí-las no texto legal, mister reconhecer a adequação de mais este adendo às situações previstas no art. 9º da Lei nº 9.613/98, ainda que o caput do art. 9º, e seus incisos, já abranjam, de forma genérica, todas as possibilidades descritas no parágrafo único.
E, finalmente, o art. 12 também acrescenta a expressão: “ativos virtuais” ao inciso II do art. 10 da Lei nº 9.613/98:
“Art. 10 As pessoas referidas no art. 9º:
(…)
II – Manterão registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ativos virtuais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas;”.
Mais uma inovação legislativa desnecessária, já que a expressão “ou qualquer ativo possível de ser convertido em dinheiro” abarca os “ativos virtuais”.
Mas nem tudo são críticas, se há um reconhecimento que deve ser feito em relação ao projeto de lei, é que ele tem a modéstia de endereçar aos entes reguladores a regulamentação desse mercado.
Esperemos que o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) busquem uma regulamentação[6] inclusiva, desburocratizada, orientada por bases técnicas, e não apenas financeiras. Também se espera desses reguladores que desenhem formas de consulta ao setor privado e prestação de contas à sociedade.
[1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1555470. Acesso em: 08/11/2021.
[2] Sobre BACEN e criptoativos, vide: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379. Acesso em: 08/11/2021.
[3] Sobre a CVM e os criptoativos, vide: https://www.investidor.gov.br/publicacao/Alertas/alerta_CVM_CRIPTOATIVOS_10052018.pdf. Acesso em: 08/11/2021.
[4] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 08/112021.
[5] Entre outras, a Lei nº 13.848/2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13848.htm. Acesso em: 08/11/2021.
[6] Ver: https://www.seudinheiro.com/2021/economia/presidente-do-bc-revela-conversa-com-cvm-sobre-regulacao-de-bitcoin-e-outras-criptomoedas/. Acesso em: 08/11/2021.